As mulheres por trás de nossas roupas

Elas, que materializam o que vestimos, contam suas histórias de vida com a moda neste Dia Internacional da Mulher.


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Poucas roupas não passam pelas mãos de mulheres. Elas somam 75% da cadeia produtiva da moda brasileira, mas, mesmo assim, não têm o protagonismo equivalente em desfiles, produções e imprensa. A enorme porcentagem não é ao acaso, já que em 1838 o trabalho feminino branco e infantil representava 77% da mão de obra nas indústrias têxteis inglesas. Em 1894, em São Paulo, esse número era de 62%. Inclusive, a cidade foi protagonista da primeira greve têxtil em grande proporção, organizada em suma por mulheres da fábrica Cotonifício Crespi, na Mooca, no ano de 1917. Mesmo sofrendo com péssimas condições de trabalho ao longo da história, as mulheres sempre foram a base da indústria têxtil e do vestuário e forjaram a base da luta sindical e social pelos seus direitos.


A seguir, seis mulheres da cadeia produtiva da moda, de diferentes segmentos e modalidades de trabalho, falam sobre seus desafios, conquistas e vislumbres.

Engenheira de gente

Anny Gonçalves escolheu a engenharia têxtil porque sempre gostou de investigar como as coisas começam, do fio à roupa. Curiosa, ela descobriu também o coração das pessoas que dão vida a tantos números da indústria. Hoje, Anny é gerente de produção na varejista Riachuelo, que soma 40 mil funcionários pelo Brasil, mas começou como estagiária há 10 anos. Ela coordena mais de três mil trabalhadoras (a maioria costureiras), em Natal (RN), e se orgulha de contribuir com a história de cada uma. “Ter a oportunidade de poder ajudar e empoderar essas pessoas a viverem dignamente dá match com meu propósito”, afirma.

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Anny no seu local de trabalho, nas fábricasFoto cortesia Riachuelo

Anny no seu local de trabalho, nas f\u00e1bricas

Embora alocada em uma área predominantemente masculina – a engenharia – Anny nunca se deixou acanhar e sempre teve o apoio das mulheres que trabalham junto dela. Ela ocupa um cargo de gerência na varejista – o que é incomum numa indústria da moda erguida por mulheres, mas frequentemente creditada e comandada por homens. Por exemplo, em cargos de liderança de grandes marcas de moda no mundo, a presença feminina é de apenas 15%; o número cai para 7% quando falamos de mulheres negras à frente de outros segmentos.

Há quem diga que a profissão de costureira está em extinção devido à indústria 4.0 e à robotização, mas a gerente acredita que nada disso tem sentido se não evoluir em sinergia com nossa humanidade. “Nunca seremos máquinas”, afirma, enquanto relembra as dezenas de pessoas envolvidas para a criação de uma única peça de roupa: pilotista, modelista, talhadeira, costureira, revisora, etc. “Não sei se estou muito esperançosa ou otimista, mas acredito que precisamos olhar por esse lado: como que nós, humanos, seremos mais humanos [com a tecnologia]”, complementa.

Na casa de Anny, era sua avó que costurava. Por isso, ela diz que a vê em cada rosto da fábrica. Manter os olhos fixos nas pessoas que dão vida à moda, enquanto gere toda uma rede produção, talvez seja a equação mais exata que ela já fez na vida. Por fim, seu último comentário faz referência a uma frase da escritora Clarice Lispector: “o que desejo para as mulheres é muito mais que liberdade, o que eu desejo ainda não tem nome.”

Modelando sonhos

Marilia Tavares acredita nas “bruxas da costura”. Atual professora, a modelista e costureira é de Uberlândia (MG) e graduou-se em moda em Belo Horizonte. O estado é o terceiro que mais concentra trabalhadores formais no setor do vestuário (IEMI, 2016). Desde criança, ela gostava “de modelagem, de quebrar a cabeça e de estudar os tecidos”. O método do Corte Centesimal (metodologia de modelagem desenvolvida há quase 100 anos) foi um grande aliado na sua trajetória profissional.

Buscando “levar autonomia através da costura”, ela diz que as costureiras são invisibilizadas, pois “quem vê desfile, não vê backstage”. Além de docente, Marília também representa o movimento Fashion Revolution na sua cidade, e tem fé na força das trabalhadoras: “Vai chegar o dia em que [elas] vão visualizar todo esse poder. Se todas cruzassem os braços, tudo iria quebrar.”

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Marília em seu ateliêFoto: acervo pessoal

Na costura, ela vê a liturgia da vida. Assim como nada é para já, nenhuma peça fica pronta instantaneamente e fazê-las exige paciência: “se aprende que roupa barata não existe. O cuidado de fazer a roupa desperta o cuidado com as pessoas, o cuidado do mundo”. Quando comenta das aulas que leciona, até brinca: “Chamo de costura-terapia, vem para aprender um ofício e faz uma sessão terapeutica”.

Além do caráter psíquico, a prática, como trabalho, possibilita emancipação financeira e geração de renda. Como uma manualidade, permite que o simbólico seja expressado por meio do material: a roupa. São vários casos de mulheres que relatam um escape de situações de violência e vulnerabilidade social por meio dela. Porém, vale o exercício de investigar por que as desigualdades ainda instrumentalizam as relações, para que possamos usar a moda como ferramenta integral de superação dessas mazelas.

Grito de resistência

Erica Leal tem 31 anos de luta em vida. Chegou na cidade de Santa Cruz do Capibaribe (PE), em 2010, a procura de um trabalho. Como a região, que engloba Toritama e Caruaru, é dominada pela produção de roupas, logo começou a costurar. Só nas 3 cidades, estimativas da Aliança Empreendedora apontam a existência de 14 mil empreendimentos de vestuário, entre formais e informais, e mais de 100 mil pessoas envolvidas neles diretamente.

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Érica LealFoto: acervo pessoal

Porém, nem tudo foram flores. Seu primeiro trabalho foi como costureira em uma marca da cidade. Lá, ficou sete anos, mas conta que até o papel higiênico era regulado: as funcionárias só podiam usar um rolo por dia. “A profissional costureira não é valorizada aqui, recebemos um salário [mínimo] e passamos o dia todo sentadas numa máquina. Nem podemos nos levantar para tomar água, a contagem [de idas ao] banheiro é medida, não temos plano de saúde e nem vale combustível”, desabafa.

Mulher trans residente no país que mais mata transexuais no mundo, ela relata casos de transfobia em várias experiências profissionais, até no dia a dia da cidade. “O mercado de trabalho abre oportunidade para essas pessoas, mas começam a humilhar”, compartilha. Foram várias situações: desde ser chamada de “gambiarra” pela sua primeira chefe até ser demitida da segunda fábrica onde trabalhou logo após a cirurgia de mudança de sexo. Hoje, ela tem sua oficina em casa e entoa uma oração: “peço a Deus que eu nunca mais precise trabalhar em fábrica!”

O salário mínimo, de R$ 1.100, é a base para as trabalhadoras formais do setor em Santa Cruz. Na região, se veem diversas plaquinhas de fábricas com “procura-se costureira”, mas, conforme Érica, elas preferem ficar em casa pois o trabalho residencial é mais rentável e prazeroso, mesmo sem as proteções convencionais da carteira assinada. Esse valor, de pouco mais de mil reais, é muito abaixo do que o Dieese considera o mínimo para se viver com dignidade e acesso à moradia, saúde, educação, cultura e lazer de qualidade. O Departamento calcula que o salário mínimo deveria ser de R$ 5.495,52.

Como nem tudo são dores, Érica adora costurar e fica orgulhosa toda vez que termina uma peça. “As vezes faço um vestido e digo ‘que coisa mais linda’. É um quebra cabeça e a gente monta tudinho.” Segundo ela, a costura é uma sustentabilidade para as mulheres. “É uma boa oportunidade de se empoderar por meio da costura? É. Mas não deixa de ser algo desvalorizado”, diz. Por isso, foi candidata a vereadora em 2020, entoando a voz de todas que ocupam as máquinas ao seu lado. “Vou me acomodar, se eu luto por um mundo melhor? Eu não! Morro como uma guerreira, mas nunca como uma covarde.”

O match perfeito

Letícia Michels é fascinada por moda, mas a real motivação para criar sua própria marca foi o incômodo com a dinâmica da grande indústria. Surgiu então, no ano de 2016, a Letíia Michels Atelier, localizada em Joinville (SC). As roupas são produzidas sob os princípios da sustentabilidade, não apresentam coleções sazonais e atendem todos os pedidos sob demanda – para não gerar mais resíduos ou estoques parados. Aos 27 anos, ela conta que sempre esteve envolvida com atividades manuais e artísticas, mas escolheu graduar-se em moda quase no susto, meses antes de prestar o vestibular.

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Letícia com as encomendas de sua marcaFoto: acervo pessoal

O empreendedorismo feminimo, de fato, vem crescendo no Brasil. Hoje, 48% dos microempreendedores são mulheres. Para Letícia, não é fácil, mas errando é que se aprende. “Minha experiência profissional vem dos meus erros, trajetórias e das pessoas que trabalharam comigo, por isso gosto de pedir opinião para todas, pois elas têm experiências que não vivenciei”, conta, se referindo a sua equipe só composta por mulheres – hoje, são 11 ao todo. “Sempre dou prioridade para [elas], nem penso em ter um funcionário homem”, afirma.

A jovem estilista diz que confia de olhos fechados naquelas que trabalham no Atelier e nunca perde de vista a importância de cada uma. Um diferencial é que o showroom, escritório e produção são todos no mesmo ambiente. Isso possibilita uma relação de amizade e união, que vai desde levar um almoço conjunto até aparecer de roupa íntima entre as provas. “Essa proximidade que temos nas relações (algo que, às vezes, uma grande indústria não tem) melhora nosso produto e serviço”, analisa.

Leticia acredita que “a indústria da moda transforma muito a vida das mulheres, sendo uma ferramenta de independência para elas serem o que quiserem e ganharem seu próprio dinheiro”. Sua felicidade é ouvir os inúmeros feedbacks daquelas que conseguem se expressar por meio das roupas de sua marca, mas a maior realização tem sido “principalmente trabalhar com grade plus size“.

O que ela mais gosta é de aprovar a peça piloto – coisa que só é possível com o trabalho de Verônica de Souza, pilotista da marca. Ela é várias em uma só: costureira, modelista, talhadeira e o que mais aparecer. Se parar de trabalhar com isso, adoece. “Já troquei de ramo e não consegui ficar. Vendi minhas máquinas e abri um restaurante, mas entrei em desespero e comecei a fazer as roupas na mão”, relembra ela.

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Verônica de SouzaFoto: acervo pessoal

É uma vida costurando. Desde os 12, Verônica se aventura entre linhas, tecidos e agulhas. Aprendeu tudo sozinha: “quando eu nasci, já vim com a paixão pela costura”, diz. Natural de Presidente Epitácio (SP), a pilotista já morou em várias cidades do Brasil e trabalhou com tudo, de jeans até moda praia, mas gosta mesmo da Letícia Michels Atelier: “aqui é o melhor lugar que já trabalhei”, afirma, ao lado de Letícia – que abre um sorriso com os olhos e com a boca.

Verônica não é apaixonada só pela costura, mas por si mesma. “Amo minha história”, diz, enquanto discorre sobre fases da adolescência em que ia para um sítio com seu pai e usava os espinhos de uma espécie de coco para alfinetar suas criações, ou de quando desmanchou o vestido de noiva de sua mãe para fazer quatro peças e usar no Ano Novo. “Diziam que eu tinha mãos de fada”, conta. Mas, talvez, sejam só as mãos de Verônica de Souza mesmo.

Ela, felizmente, não se sente desvalorizada, mas também reconhece que a costura tem um caráter empoderador. “Ensinei muitas mulheres a costurar e sei que foi um salto para liberdade delas. Mulheres que, quando começaram, se libertaram de um casamento abusivo”, relata.

O seu negócio

Grace Santos nunca havia costurado até 2017. Demitida do seu emprego na área comercial de uma multinacional, ela resolveu abrir seu próprio negócio na capital do estado que concentra 27% da indústria têxtil e de vestuário nacional: São Paulo. Juntou-se com uma amiga, comprou algumas máquinas e passou a frequentar a região do Brás para aprender as dinâmicas do jogo. No início, não foi fácil. “A gente costurava muito e recebia pouco. Já fiz calça legging, com ribana, bolso, punho e cós, a um real”, comenta.

Hoje as dificuldades continuam, mas fazem parte de um propósito maior. Grace tem sua oficina, com a mesma amiga, focada no atendimento de pessoas com deficiência, e com a pandemia todo o trabalho tem sido confeccionar máscaras transparentes, que permitem a leitura labial.

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Grace SantosFoto: acervo pessoal

Em sua visão, no Brasil, “ainda é muito forte essa questão do gênero feminino, da mulher ser costureira, cuidar da casa, e ser uma pessoa invisível ali”. A costura sempre teve um papel associado ao trabalho doméstico não remunerado, que acomete a vida de milhares de mulheres pelo mundo todo e representaria mais de 10% do PIB brasileiro, se incluído nas somatórias. Grace comenta ainda sobre o peso da desvalorização. “Parece que valorizam mais a costura quando é um homem que faz. O cara vira até estilista, mas quando é a mulher, dizem: ‘ah, tá bom, ela é só costureira.'”

Antigamente, a prática não lhe trazia boas perspectivas. “Lembro da máquina de costura da minha mãe, mas nunca quis saber dela. Sempre pensei em fazer coisas melhores, pois associava que estar ali não era bacana, me remetia a sofrimento”, comenta. Como o mundo é um moinho, ela se achou no ofício: “Hoje quando eu sento na máquina para costurar e produzir o mínimo que seja, me dá uma sensação de conquista muito grande, de tirar da mente algo que estou pensando.”

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