O efeito Kamala
Prática nos looks, nova vice-presidente dos EUA toma posse e explora possibilidades políticas da moda.
Nas cerimônias de qualquer tipo, recai geralmente sobre as mulheres a missão de fazer alguma coisa da moda. Passar uma mensagem, dar um recado ou simplesmente despertar em quem observa um olhar mais interessado, quem sabe uma ideia que puxe outra, que instigue conexões.
Isso porque os homens, especialmente em situação de poder, não abrem mão de um código ainda bastante restrito e repetitivo, embora entre eles possa haver diferenças brutais. Na vestimenta, a diferença entre Trump e Joe Biden, que assumiu neste 20 de janeiro, talvez seja questão de corte, gosto e gravata. Politicamente é bem mais complicado, mas a sensação de alívio mundial com a saída de um presidente sociopata, apoiador de supremacistas white power, é imensa. De alguma maneira, renova esperanças, inclusive por aqui.
Digamos que os homens se esforcem menos nessa comunicação sutil dos looks e suas combinações.
Um avanço é evidente quando as atenções nesse sentido não se voltam à primeira-dama, mas à vice-presidente, Kamala Harris. Kamala inaugura uma série de coisas inéditas com sua presença. Uma mulher negra com ascendência indiano-jamaicana. Uma mulher negra vice. Algo que vai muito além da representatividade.
Kamala tem se empenhado em vestir designers negros estadunidenses e na posse não foi diferente. O estilista Sergio Hudson, da Carolina do Sul, foi o escolhido por ela. E também por Michelle Obama, que esteve na cerimônia com o marido. Kamala de roxo, Michelle de vinho, a cartela deixando marcada uma linha de continuidade, a construção de uma aliança ao menos simbólica, bastante poderosa como imagem.
Kamala também usou criações de Christopher John Rogers, de Baton Rouge, Louisiana. A geografia da escolha não é à toa. Fora do eixo Nova York-Los Angeles, os EUA das origens africanas, do passado escravocrata e do racismo ainda sempre presente. Os EUA do Formation de Beyoncé, das lutas dos movimentos negros. Tem muita coisa aí.
Nas pérolas de Kamala, a referência à sua irmandade universitária, as Alpha Kappa Alpha, primeira estabelecida por mulheres afro-americanas. Mais uma vez, Beyoncé vem à cabeça, agora com Homecoming. Existe um vocabulário estético reconhecível, não sem a participação desses grandes fenômenos pop.
Kamala e Biden, fato, estão longe do programa que a radicalidade de nossos tempos exigem. São liberais com um programa bastante conservador em termos econômicos e sociais. Perto de Trump e seu neofascismo de redes sociais, no entanto, não há dúvidas de que representam um avanço monumental. Na realidade, um retorno a um ponto de diálogo possível.
O novo governo chega bastante conectado à necessidade de construir uma imagem a partir de nomeações e presenças carregadas de simbolismo, de criar um tipo de comunicação mais eficiente nesse sentido, de marcar a diferença.
Kamala e seu estilo prático e sem muita decoração falam de uma mulher ativa, que não está no governo para fazer pose, mas para exercer poder.
Há muitos questionamentos sobre o que fará uma mulher negra em um posto como esse. Não se trata de exigir mais ou menos, mas de uma certa expectativa de que ela possa agir de forma diferente de seus antecessores, que seja mais sensível a certas questões, embora esteja inserida em uma estrutura dada.
Não faltam questionamentos a posições duvidosas e mesmo reacionárias da nova vice no passado, o que é ainda mais evidente no caso de Biden. Mas Kamala não é apenas sua origem, sua gênese racial ou suas escolhas passadas.
Hoje ela começa a se estabelecer como exemplo, como imagem, como pioneira em uma narrativa histórica muito disputada. E isso pode ter grandes implicações, que poderemos viver e avaliar com o tempo.
Enquanto isso, cabe um respiro. Kamala e Michelle é uma liga que não vai passar batida, conforme elas fizeram questão de comunicar ao vivo e em cores. Vamos acompanhar.
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