O que nossas roupas contam sobre nós

Produção da Netflix, Histórias para Vestir conta relatos sobre tecidos cheios de memória e afeto.


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Lançada na última quinta-feira (01/04), a mais nova série documental da Netflix, Histórias para Vestir, se debruça sobre as relações emocionais que criamos com o que vestimos. Ao longo de oito episódios de 30 minutos cada, diferentes pessoas relatam como determinadas roupas ou acessórios ajudam na busca individual por conforto, tornando-se, assim, parte essencial de suas vivências.

O blusão Air Jordan que pertencia ao filho que morreu de overdose, o par de botas de couro usado em um acidente de avião ou o uniforme da guarda de trânsito que faz sua dona se sentir como uma super-heroína. São vários itens que mostram como o vestuário é a dimensão material que melhor evidencia importantes ossos estruturantes da vida. Daí o nosso apego.


Ao reforçar o valor emocional das roupas, a série vai na contramão de outros movimentos de sucesso na plataforma de streaming: a valorização do desapego e a lógica “menos é mais”. Esses fenômenos são parcialmente causa-consequência de produções que alcançaram milhões de pessoas no mundo, como Ordem na Casa com Marie Kondo, Queer Eye, The Home Edit: A Arte de Organizar e Minimalismo Já.

Em tais programas, roupas bagunçadas no armário, objetos amontoados pela casa e sentimentos empilhados têm conotação negativa e precisam ser descartados para abrir espaço para o novo, para a organização e para a praticidade. Em Histórias para Vestir é quase o oposto. O acúmulo – ou pelo menos a preservação – de algumas peças é bem-vindo e nos lembra quem somos e de quem gostamos de lembrar.

Como surgiu

A escritora Emily Spivack (que é personagem de um dos episódios) escreveu, em 2014, o livro Worn Stories (Histórias para Vestir), uma coleção de 60 histórias que celebram o significado que as roupas trazem à vida. A obra foi uma das mais vendidas da época, de acordo com o The New York Times. Anos depois, Spivack se uniu à Jenji Kohan, diretora, escritora, produtora e roteirista, responsável por Orange Is The New Black, e o novo projeto surgiu.

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Foto: Divulgação

“Sempre me interessei pela ideia de que nós podemos olhar para os nossos armários e ver um arquivo de memórias. Tiramos coisas dele e as vestimos não porque elas são de uma marca, ou custaram um preço específico, mas porque nos foram dadas por uma pessoa, compramos em uma viagem ou nos lembram de uma experiência”, disse Jenji Kohan, em entrevista ao The Cut.

Pessoa, peça

Cada personagem aparece acompanhado de uma roupa ou acessório importante para si. Matt e sua jockstrap (coquilha), Skye e seu robe rosa ou senhora Park e seu suéter. Variando entre tragédia e comédia, os relatos são organizados em temas: Comunidade, Achados e Perdidos, Novos Começos, Amadurecimento, Uniforme, Apostando Alto, Sobrevivência e Amor.

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Foto: Divulgação

É preciso que seja dado um aviso: o prelúdio da série pode causar um leve reviramento de olhos, principalmente nos mais cínicos e cansados da estética Netflix que, por vezes, pesa a mão no açúcar em suas produções originais. Entretanto, Histórias para Vestir é muito mais dilacerador-otimista do que aparenta ser. Terminar um episódio rindo, com o gosto salgado de lágrima na boca, parece ser uma boa pedida para tempos que nos cobram tensão, informação e descanso (quando dá).

Conta mais (SPOILER ALERT!)

Mas não se preocupe, é só um aperitivo. O quinto episódio, Uniforme, fala sobre como muito de uma pessoa está bordado nos tecidos que ela usa todos os dias. Fardas têm um significado além de garantir a fácil identificação de um profissional. A guarda de trânsito Patrice conta como tentou conquistar o posto em Nova Jérsei por 13 anos consecutivos, sendo repetidamente reprovada no processo seletivo.

Com a mobilidade comprometida em uma das pernas, Patrice sempre sofreu bullying na escola e acreditava que, por isso, não era aprovada. Um dia, resolveu enviar as treze cartas de reprovação para o prefeito. “Falei que não conseguia comprovar a discriminação, mas que conseguia comprovar o tratamento injusto.” Dois meses depois, ela recebeu uma resposta com uma requisição de exame físico. Fez e passou.

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Foto: Divulgação

No mesmo episódio, Frederica vestiu para sua cerimônia de posse como deputada da Flórida um tailleur vermelho-sangue, sapatos e chapéu de cowgirl da mesma cor. Ao contrário da maioria dos seus colegas, com ternos sóbrios, ela não teve uma vida muito fácil. Seu pai era um líder de direitos civis durante o período das leis de Jim Crow (medidas que impunham a segregação racial no sul dos Estados Unidos).

Com as rondas da Ku Klux Klan pelo seu bairro e a constante perseguição, o pai de Frederica fazia reuniões secretas em casa, onde ensinava as pessoas a votar. Ela, criança, ficava debaixo da mesa escutando. “Aprendi muito enquanto assistia ao meu pai. Fui criada para ser guerreira. Não comecei a usar chapéus por achar que eles fariam a diferença, mas, de chapéu, a gente não passa despercebida. Quando nos destacamos numa multidão de legisladores, aí conseguimos agir”.

Diferentes histórias, com fundo político, sobre perda ou apenas situações absurdas e engraçadas, se desdobram nos oito episódios. Shoham conta como perdeu e recuperou um casaco branco em uma noite de bebedeira com a prima, quando mergulharam em uma saga à base de vinho e maconha pelas ruas de Manhattan. E Antwan – e sua calça de penitenciária – destaca a importância de, mesmo sob penalizações, ter feito alterações no uniforme da prisão enquanto cumpria pena. Tudo para conseguir se sentir ele mesmo.

Daqui um tempo…

Há um certo nível de anonimato nos relatos. O nome da pessoa é mostrado sem sobrenome. Com exceção de figuras com certa notoriedade, como a deputada Frederica Wilson, a cantora Charo, a editora de moda Aya Kanai e o antigo embaixador criativo-geral da Barneys Simon Doonan, os rostos não são conhecidos – o que favorece um espelhamento. Ok, um dos entrevistados é um cosplay de Elvis, que faz casamentos em Las Vegas, mas não passa disso.

A série se propõe a criar conexões entre pessoas, independente de carregarem tristeza ou alegria. Os relatos parecem estranhamente familiares. Para quem está trancado em casa, faz pensar no próprio guarda-roupa e nas histórias há muito tempo não vestidas. E para quem precisa sair, faz imaginar as lembranças de esperança que roupas, e pessoas, vão querer contar daqui um tempo.

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