O streetwear está cada vez mais preppy

Impulsionado por marcas que oferecem uma abordagem mais contemporânea ao look de ares college, o movimento dá o tom para a moda masculina atual.


modelo com look da Aimé
Aimé Leon Dore Foto: Divulgação



Já falamos aqui algumas vezes, mas não custa repetir. Nos últimos anos, os laços entre o mercado de luxo e o streetwear se tornaram cada vez mais estreitos. Começou com apropriação de alguns códigos “das ruas” por marcas históricas. Depois, algumas figuras influentes na cultura street conquistaram postos de direção nessas casas, borrando ainda mais as fronteiras entre os dois universos. 

O caminho contrário não demorou para acontecer também. Virou uma relação simbiótica, com expoentes do streetwear incorporando elementos do luxo. E sobre isso, tem um estilo em especial que vem ganhando mais e mais notoriedade: o preppy

O visual com pegada colegial surgiu nos campus de escolas particulares estadunidenses, principalmente as da Ivy League, durante a década de 1930. Um estilo que até hoje gera controvérsias por estar diretamente atrelado ao classicismo da elite branca dos EUA, mas que também possui histórias não contadas sobre política, ativismo e subversão.

Modelo de calça verde, colete de tricô verde, camiseta branca e boné bege, em foto da marca NOAH.

Noah. Foto: Divulgação

Modelo com conjunto xadrez em foto na rua para a marca Awake.

Awake NY. Foto: Jason Nocito

Na superfície deste fenômeno, estão algumas marcas com raízes fincadas na cultura de rua, como a Noah e Awake NY. São etiquetas fundadas pelos ex-diretores da Supreme, Brendon Babenzien (também diretor criativo da J.Crew) e Angelo Baque, respectivamente. Atualmente, seus sortimentos de produtos são compostos de elementos clássicos do look Ivy, como ternos de abotoadura dupla, suéteres listrados, camisas oxford e calças chino ou de alfaiataria.

Mas calma que não é o look preppy tradicional, é uma releitura meio misturada com o streetwear, com direito a camisetas com estampas gráficas, bonés e sneakers. Uma repaginada capaz de ressoar com um público mais jovem que, ao longo dos anos, cresceu vestindo marcas de streetwear, mas hoje amadureceu e busca refletir isso também no que coloca no corpo – mas sem abrir das suas origens, gostos e, acima de tudo, conforto.

Modelo com blazer azul marinho, camiseta navy, calça branca e boné, bem no estilo preppy.

Aimé Leon Dore. Foto: Divulgação

Outro bom exemplo é a Aimé Leon Dore, fundada em 2014 pelo nova iorquino Teddy Santis, que se divide na direção criativa da New Balance, também evoluiu de suas raízes. No início, a especialidade da etiqueta era tracksuits combinados a tênis Nike Air Jordan 1. Atualmente, suas criações relembram a Ralph Lauren dos anos 1990, com cardigãs, parkas, sobretudos, calças chino e mocassins. Assim como a Noah e Awake, o styling das peças nos lookbooks da Aimé é o fator fundamental para uma abordagem menos careta ao preppy. 

“É reflexo de como a moda se faz a cada temporada. Viemos de dois anos de pandemia, com o lema de nos vestir da forma mais confortável possível. E o streetwear tinha boas respostas para isso”, diz Juares Tenorio, diretor e fundador da DOD Alfaiataria. “O próximo passo é a oposição desse estilo, construir imagens de moda relevantes para o mercado de acordo com o que está acontecendo agora”, continua ele.

Tem a ver com a lógica cíclica da moda e com o fluxo do mercado. No caso, um mercado bem saturado, com lançamentos constantes, produtos repetitivos e colaborações muitas vezes sem sentido. Sinal inconteste do que estamos falando é a queda nas vendas de sneakers, um dos principais itens do uniforme streetwear. Segundo dados da Euromonitor, as vendas globais de tênis totalizaram 152,4 bilhões de dólares em 2022, representando um aumento de 2,7% em relação às vendas no ano anterior, mas uma desaceleração dramática em comparação com o aumento de 19,5% em 2021.

A categoria, uma vez carro-chefe de grandes varejistas, agora compete por espaço com dois adversários de peso: mules e mocassins, dois modelos de calçados essenciais à estética preppy tão em alta na moda masculina atual. “O preppy é uma espécie de anti-hype, os elementos são tão acessíveis e despretensiosos que cabe ao usuário dar a sua própria abordagem ao estilo”, disse Michael Bastian, designer da Brooks Brothers, primeira fornecedora da história do look preppy, em entrevista à edição de novembro de 2021 da revista Robb Report. “Logo, bons mocassins antiquados podem ser infinitamente mais legais do que qualquer tênis de quatro dígitos.”

A história do estilo Preppy

 

A história do estilo preppy começa entre meados da década de 1920 e início da de 1930. Lá atrás, o nome era outro: Ivy League look. Ivy League é o nome do conjunto de oito universidades particulares dos EUA, consideradas as mais prestigiadas do país. São elas: Brown, Columbia, Cornell, Dartmouth, Harvard, Princeton, University of Pennsylvania e Yale. E foi no campus de cada uma delas que o visual em questão começou a tomar forma.

Atualmente, o adjetivo despretensioso dificilmente seria empregado para descrever o look preppy. Naquela época, contudo, era exatamente isso. No lugar de ternos, calças de alfaiataria com cintura bem marcada, sapatos lustrosos e camisas impecavelmente passadas, o uniforme universitário estadunidense passou a ser composto de blazers de tweed, suéteres de lã Shetland, calças de flanela ou chino, camisas Oxford e, vez ou outra, uma gravata.

Alunos de uma das escolas Ivy Leagues com looks preppy.

Foto: Teruyoshi Hayashid

 Alunos de uma das escolas Ivy Leagues com looks preppy.

Foto: Teruyoshi Hayashid

Alunos de uma das escolas Ivy Leagues com looks preppy.

Foto: Teruyoshi Hayashid

Os porquês da revolução estética esbarram em mudanças socioculturais, geracionais e até geográficas. Parte dessa vontade por mais casualidade e conforto vinha da geografia das escolas, localizadas em áreas aos arredores de grandes metrópoles, onde a vida era menos rígida. Não à toa, o primeiro item a virar febre na faculdade de Yale foi um mocassim penny loafer, da tradicional empresa estadunidense de sapatos GH Bass & Co. Com design casual e livre de cadarços, o calçado tornou-se um clássico instantâneo e um elemento marcante do look Ivy. 

Nenhuma daquelas peças eram exatamente novas. O que mudava era a maneira como eram vestidas e combinadas entre si. Em linguagem técnica, era questão de styling. E quem decidia o que estava na moda ou o jeito de usar não eram editores de revista ou grandes varejistas, mas sim jovens estudantes com consciência de seus gostos. Quer dizer, jovens estudantes do sexo masculino.

Foi só em 1949 que as mulheres ganharam atenção do mercado. Foi naquele ano que a Brooks Brothers, também conhecida como a mais antiga fabricante de roupas dos EUA e a “nave mãe” do look preppy, introduziu sua primeira peça feminina: uma camisa Oxford rosa. O item foi rapidamente reinterpretado por alunas da Ivy Leagues junto a vestidos formais e chegou até a estampar a capa da revista Life, ganhando proeminência para além dos muros das escolas. 

JF Kennedy com look preppy.

John F. Kennedy. Foto: Getty Images

Cary Grant com look preppy.

O ator Cary Grant. Foto: Getty Images

Conforme os anos passaram, o visual Ivy pulou os muros da escola. Afinal, estes mesmos universitários um dia se tornaram médicos, advogados e economistas. Em Wall Street, a influência era clara, principalmente com a popularidade da camisa de botão da Brooks Brothers dominando o maior distrito de finanças mundial. Nas artes, Cary Grant, ator e fundador do clube de cricket de Hollywood, virou um dos principais ícones preppy.  Já na política, John F. Kennedy subverteu as regras sobre como um presidente deveria se vestir adotando um uniforme Ivy dos pés à cabeça. A causalidade, tanto no trabalho quanto na folga, virou sua principal assinatura. 

Em 1980, com o livro The Official Preppy Handboo, a escritora Lisa Birnbach lançou olhar sobre a cultura da classe média-alta da costa leste estadunidense. Não demorou muito para a obra virar best-seller e ser reimpressa 41 vezes. Paralelamente, Ralph Lauren continuava sua ascensão como a principal responsável por manter a chama do Ivy League look acesa. Nos anos 1990 e início dos anos 2000, marcas como Tommy Hilfiger e Thom Browne apanharam o bastão preppy e fertilizaram o terreno para que etiquetas como Aimé Leon Dore, Awake NY, Noah, J.Crew e Gap pudessem continuar a contar a história do estilo com suas próprias palavras.

Black Ivy: ferramenta de subversão e ativismo

 

Essa história, no entanto, não é a versão oficial. É uma que esconde as problemáticas de supervalorização de um estilo de vida classicista, elitista e majoritariamente branco da jovem elite dos EUA. Além dela, existe outra narrativa para o visual com viés mais político, ativista e subversivo. O enredo começa a ganhar força a partir dos anos 1950 e ganha até nome próprio: Black Ivy.

O desejo por liberdade de expressão e igualdade definiu a vida e o legado de ativistas negros como Malcolm X e Martin Luther King, além de permear o trabalho de artistas como Miles Davis, James Baldwin e John Coltrane. Não apenas gênios imponentes com talento e poder em suas respectivas áreas, esses homens eram ícones de estilo por si só e são alguns dos responsávies por ressignificarem o look preppy elitista.

Miles Davis.

Miles Davis. Foto: Don Hunstein

A prática muitas vezes era vista erroneamente como negros se apropriando de símbolos brancos pelo desejo de se tornarem como tais. Na realidade, a vontade de usar aquelas roupas era, em grande parte, fruto da busca por uma igualdade que lhes era negada em um dos períodos mais incendiários da história estadunidense. Mais do que um movimento estético, o Black Ivy era uma espécie de traje de batalha, uma armadura usada na busca pela conquista de direitos fundamentais. 

“Originalmente, o objetivo era transmitir uma atitude de equidade e estrutura dentro do contexto criativo de músicos e artistas para se apresentarem como dignos de serem levados a sério como profissionais”, explica Jason Jules, autor britânico do livro Black Ivy: A Revolt In Style. “Com o surgimento do movimento pelos direitos civis, o visual tomou outro rumo. Ainda baseado na ideia de igualdade e respeito, se tornou sinônimo de ativismo e pensamento progressista. Dessa forma, o visual Ivy foi integrado à linguagem da rebelião e da subversão, desafiando o status quo e, ao mesmo tempo, honrando-a.” 

Capa do livre Black Ivy e retrato do seu autor Jules Jordan.

Capa do livro Black Ivy e retrato do autor Jules Jordan. Foto: Divulgação

A obra de Jules documenta em imagens todo o período entre 1960 e 1970, quando jovens negros — desde celebridades do basquete como Kareem Abdul-Jabbar até cidadãos anônimos capturados pelo fotógrafo da revista Life Bill Ray — tomaram para si o look Ivy.

Dentro do visual, há uma gama de variações que surgem da base do look Ivy original. Muitas dessas reinterpretações vieram de experiências pessoais dos Black Ivyists, enquanto outras foram simplesmente respostas às necessidades e condições da época. Como resultado, o Black Ivy acabou virando uma estética única.

O velho ditado “não é o que você veste, mas como você veste”, exemplifica perfeitamente o caso. O guarda-roupa clássico do preppy foi completamente invadido e revirado, longe dos confinamentos elitistas, para dar vida a algo intencionalmente revolucionário. 

Foto de garotos no estilo Black Ivy.

O visual Black Ivy. Foto: Bill Ray | The LIFE Picture Collection

O vestir como ferramenta de combate à superioridade de classe e pela transformação da realidade de minorias, principalmente as negras, não se limita ao continente Americano. Em 1922, um homem chamado Andre Grenard Matsoua voltou de Paris para sua casa no Congo vestido como um verdadeiro monsieur francês. Levando em consideração o contexto da colonização francesa no país africano e o fato de muitos congoleses ainda serem servos nus de seus patrões elegantes, a aparição de Matsoua em um terno colorido não só chocou as pessoas da época, como despertou uma mobilização social na capital de Brazzaville. 

Criados começaram a se vestir como seus senhores e adotaram um estilo europeu extravagante como forma de combater a superioridade colonial. Eles ficaram conhecidos como os Les Sapeurs, termo originário da gíria francesa se saper, que significa se vestir com classe, mas também faz referência ao grupo social La Sape: La Société des Ambianceurs et des Personnes Élégantes (a Sociedade de Ambientes e Pessoas Elegantes). Uma comunidade símbolo de subversão política e ideológica, que ainda pode ser encontrada no país até hoje. 

Delagrace, um dos nomes mais conhecidos atualmente do movimento Les Sapeurs.

Delagrace, um dos nomes mais conhecidos atualmente no movimento Les Sapeurs. Foto: Tariq Zaidi

Em meados de 1960, surgiram em Kingston, na Jamaica, homens bem vestidos em ternos afiados que ganharam o noticiário por seu comportamento antissocial e, muitas vezes, violento. A capital vivia seus primeiros dias de independência da Inglaterra, e o grupo de jovens estava pouco se importando com a nova ordem. Influenciados por gângsters estadunidenses e embalados pelo som do jazz, do reggae e do R&B, eles ficaram conhecidos como os Rude Boys

Foi dedicado a eles que Bob Marley escreveu, em 1963, a canção Simmer Down (Acalmem-se). Desde então, os Rude Boys desempenharam papel fundamental de influência na moda e cultura popular, tanto na Jamaica quanto no Reino Unido, onde uma onda de imigração jamaicana atingiu o país. Seus uniformes de alfaiataria sob medida, chapéu pork pie e sapatos lustrados ressoaram em subculturas como o punk e o mod na década de 1960, quando singles importados do gênero musical jamaicano ska incendiaram as pistas de dança de Londres. 

O look dos Rude Boys.

O visual dos Rude Boys. Foto: Janette Beckman / Getty Images

Seja o Black Ivy, Les Sapeurs ou Rude Boys, todos esses movimentos mostraram como a indumentária pode ser intrínseca ao mecanismo de movimentos políticos, culturais e intelectuais. Mais do que isso, ela também pode ser instrumento de subversão e de fortalecimento de identidades na busca por seus direitos fundamentais. “Estilo é sobre a liberdade de ser você mesmo, de se expressar autenticamente e, assim, rejeitar as limitações impostas pelos outros”, reflete Jules em sua obra. 

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes