Qual é a dificuldade em incluir o plus size na moda responsável?
Criar uma moda mais lenta e duradoura já é uma batalha. Que ela atenda às pessoas gordas, é uma guerra.
Nas redes sociais, o consumo de roupas da marca chinesa Shein virou o centro de uma discussão que colocava, de um lado, o consumo consciente e, do outro, a ausência de produtos que atendam pessoas acima do manequim 46.
A etiqueta não é bem quista do ponto de vista ambiental: seus processos são poucos transparentes e as peças são feitas, em sua maioria, de poliéster, tecido de fibras sintéticas que, no mundo todo, requer 70 milhões de barris do minério para ser produzido. E a Shein está sempre lançando novas coleções, com roupas podem deixar de serem usadas na semana que vem.
O fluxo bate de frente com o conceito de slow fashion, movimento que incentiva o consumo de peças atemporais e versáteis, que não serão descartadas tão facilmente. Em contrapartida, a marca chinesa tem uma ampla variedade de peças cujos tamanhos vão até o 50, 52. Um prato cheio para um público que, até 10 anos atrás, era completamente ignorado pela indústria da moda e que está cheio de vontade de consumir.
O sucesso das roupas plus size da Shein não quer dizer, no entanto, que as pessoas gordas não estejam interessadas em um consumo mais consciente. Elas só não se sentem tão contempladas pelas etiquetas com essa proposta. “É ignorância pensar que gordos não pensam em sustentabilidade, mas a maioria das marcas slow fashion atende pessoas de tamanho 40, 42, no máximo. Eles deixam todo um público de fora”, fala Flávia Durante, criadora do Pop Plus, feira de moda focada em pessoas gordas, e ativista de moda plus size. “Para mim, não é tão consciente assim.”
FRANC.Foto: Divulgação
De acordo com dados da Associação Brasileira do Vestuário (Abravest), o mercado de moda plus size registrou um movimento de 7 bilhões de reais no Brasil em 2018. Em três anos, segundo a Associação Brasil Plus Size (ABPS), o segmento cresceu pelo menos 21%. Por mais que as marcas conscientes tenham um ideal que extrapole o lucro, dinheiro no caixa não é algo a se descartar. Então por que elas estariam ignorando um público tão promissor?
A verdade é que fazer uma moda com coleções menores e atemporais é algo difícil dentro do contexto brasileiro do mercado de moda, bastante focado na produção em larga escala. Fazer roupas que fujam do P, M e G também é uma tarefa que está longe de ser fácil. E, muitas vezes, as marcas acreditam que é melhor escolher qual batalha elas querem enfrentar.
Uma guerra contra o mercado – e a cultura
A expressão slow fashion foi criada na década de 1990 pela ativista de design Kate Fletcher, que a define como um consumo baseado na qualidade e não no tempo. “É uma moda atemporal, em que se valoriza e se respeita o ciclo de crescimento e desenvolvimento dos produtos. É uma reação à produção excessiva e veloz do consumo desenfreado”, explica Valeska Nakad, coordenadora do curso de Moda da Faculdades Belas Artes, em São Paulo (SP). “O movimento defende a compra de roupas de melhor qualidade, que duram mais, que valorizam o tratamento justo das pessoas, animais e do planeta no desenvolvimento delas.”
A preocupação com questões de sustentabilidade começou no início da década de 1970, mas o modelo de negócio só se tornou popular no fim do século passado. Principalmente quando, com o boom de fast-fashions como Forever 21 e Primark, a indústria da moda se tornou a segunda que mais polui o planeta, ficando atrás apenas da petroquímica. A emissão de carbono pelo segmento é, de acordo com a Organização das Nações Unidas, maior do que a dos setores de transporte aéreo e marítimo juntos.
Com todas essas ideias fervilhando na mente, Luciana Cestino criou, junto com a amiga Alline Fregne, a marca Fala. “Não fazemos muitos modelos e, toda vez que lançamos um novo, tiramos outro de linha. Pensamos em peças de malha, 100% algodão, mas com corte e costura de alfaiataria, para terem durabilidade e serem atemporais. Priorizamos, também, cores sólidas porque queremos que as roupas sejam usadas de diversas formas”, fala a empresária. Antes da pandemia, elas mantinham poucas unidades de cada modelo no estoque. Agora, Luciana e Alline estão priorizando os pedidos sob demanda.
“Existe uma cegueira para mercados que saem do padrão segmento feminino do 36 ao 46.” Valeska Nakad
Porém, além de serem slow fashion, a marca Fala nasceu também para ser all size, ou seja, servir vários tipos de corpos. A iniciativa veio da experiência pessoal das fundadoras. “Nós duas somos muito diferentes. Eu uso G1, equivalente ao 46, e a Alline usa o P, um tamanho 38. Várias vezes ela fazia bazares na casa dela, com peças de marcas para as quais ela já havia trabalhado como stylist e nunca tinha nada para mim. Ela dizia que ia fazer algo para mim então”, explica Luciana.
Um conto de fadas para quem sonha com uma moda mais inclusiva e com menos impacto no meio ambiente, mas as empresárias encontraram seu primeiro vilão quando chegaram nas confecções que fariam suas peças. “A gente encontrou uma dificuldade enorme em encontrar modelistas que cortam roupas plus size, porque a mesa de corte não está preparada e os profissionais não aprenderam a fazer esse tipo de modelo”, diz Luciana Cestino. Isto porque, para que uma peça caia bem no corpo gordo, não basta que ela seja maior. “Precisa ter uma costura dupla, maior proteção entre as coxas e embaixo do braço. É um investimento, as confecções querem cobrar o dobro. Isso, atrelado ao slow fashion, é um desafio a mais. Porque eles não querem cortar cinco peças, mas cinquenta. Então temos que pagar mais pela unidade.”
Fala.Foto: Divulgação
Valeska Nakad culpa a pouca profissionalização do setor no Brasil. “Em mais de 30 anos, agora que estão surgindo cursos especializados na modelagem plus size nas faculdades de moda”, diz a coordenadora do curso de moda da Faculdade Belas Artes. “E houve essa profissionalização apenas quando grandes players do mercado entraram no Brasil, o que forçou que corrêssemos atrás do prejuízo.”
Além da indústria, os próprios consumidores surgem como empecilhos, principalmente para o slow fashion. “As pessoas querem o que é rápido, o que está pronto, e existe marketing constante que fomenta isso porque a indústria têxtil tem interesse de que as roupas sejam efêmeras”, explica Valeska.
Ter que lidar com tantas frentes de batalha pode ser desgastante – e pouco lucrativo – para uma marca pequena. O mais fácil é jogar no seguro. Principalmente porque, muitas vezes, os criadores de marcas de slow fashion são ex-funcionários de grandes conglomerados de moda. Assim, além de ainda terem internalizado a ideia gordofóbica de que o corpo magro é o mais bonito e elegante, eles preferem não arriscar. “Existe uma cegueira para mercados que saem do padrão segmento feminino do 36 ao 46. As pessoas querem fazer a modelagem que já tem, para um mercado já consolidado. Há uma crença de que, se você continuar nesse lugar, todo mundo pode comprar da sua marca, mas sabemos que não é assim”, diz a coordenadora.
Sotela.Foto: Divulgação
Um público que ficou esquecido por tanto tempo, os gordos viveram intensamente os anos mais recentes da moda. Ainda assim, o slow fashion plus size ainda é um mercado muito emergente, de acordo com Valeska Nakad. “Ainda está sendo desenvolvido e mudanças levam tempo”, fala a especialista. Mas Flávia Durante afirma que os consumidores gordos devem forçar que esse processo acelere. “Ainda mais com a pandemia. As pessoas plus estão passando a exigir mais qualidade, mais ética. A gente está começando a ter uma educação sobre o processo de educação e inserção da moda. É inevitável que o slow fashion se torne mais plus size”, diz a ativista.
E um bom criador de moda vai correr atrás de atender essas demandas. “O papel do designer é pensar produtos, serviços e sistemas para pessoas e mercados que necessitem. Eles precisam olhar para os gordos assim como poucos pensam nos seniores, pessoas portadores de deficiência física e outros públicos que são carentes de produtos e variedades”, diz Valeska Nakad. “Na minha opinião, a filosofia do slow fashion não é uma questão de peso ou medidas, e sim de estilo de vida. Portanto, deveria ser consumido por todos e as empresas que investirem neste nicho terão muito sucesso.”
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