Crise de identidade
Ao se aproximar da cultura, a moda encontra boas justificativas para a sua existência tão questionada.
Enquanto a palavra “essencial” ficava cada vez mais presente no nosso vocabulário, a partir de março deste ano, alguns sistemas foram muito questionados — a moda, um deles. Esta, que já não andava muito bem das pernas, lidou com mais essa crise, aproveitando a oportunidade para rever alguns argumentos. Para tanto, recorreu à uma velha conhecida, que também não consta na lista de serviços essenciais, mas nunca foi deixada de lado pela humanidade: a arte.
Em parte, a decisão foi pragmática para a comunicação de moda continuar a existir. Frente ao momento difícil imposto pela pandemia, se manter calado não é opção. Seguir com a campanha da temporada, o post do acessório da vez ou fingir que nada está acontecendo, muito menos. Uma solução foi a de manter um diálogo sensível, conectado com o mundo de agora e com o público. Uma conversa segura o suficiente para existir sem sugerir alienação. Algo que a cultura pode proporcionar como poucos.
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A Bottega Veneta, por exemplo, criou a Bottega Residency, uma residência artística via rede social para os quarentenados de plantão. Ali, criativos que fazem parte do universo da grife, como o próprio diretor criativo Daniel Lee, começaram a ser apresentados para o mundo via Instagram. A Saint Laurent, por sua vez, foi de poesia. De Guillaume Apollinaire sacou um caligrama (texto visual cuja as palavras formam um desenho) e de Françoise Sagan e Marguerite Duras lembrou escritos sobre o tempo. Eles refletiam sobre o momento de suspensão, que, apesar de nada fácil, pode ser edificador. Já a Chanel, antes mesmo do tsunami de lives, brincou com o formato, transmitindo em suas redes um showzinho com a cantora belga Angèle. A experiência trouxe para o perfil da marca mais de 250 mil visualizações.
O viés cultural se manifestou de tal forma que não ficou restrito às redes sociais. Uma abordagem mais artística também apareceu nas coleções ou na maneira de apresentá-las. Para as grifes, foi necessário buscar soluções criativas para a temporada existir, já que eventos presenciais ainda são assuntos delicados. A Dior não só manteve o Dior Talks, podcast com entrevistas sobre arte e feminismo (com participações de artistas como Tracey Emin e Judy Chicago), como também celebrou sua coleção de alta-costura com um filme produzido em parceria com o cineasta Matteo Garrone, diretor de longas como Dogman (2018) e Gomorra (2008). Artifício parecido também foi usado pela Valentino e Maison Margiela. Ambas fizeram vídeos igualmente sonhadores em colaboração com o fotógrafo Nick Knight.
A Prada, antes da coleção de estreia de Raf Simons, se conteve no design das roupas mas não nos grandes nomes da fotografia para filmar a sua temporada masculina de verão 2021. Estiveram ali Willy Vanderperre, Juergen Teller, Joanna Piotrowska, entre outros artistas que contribuíram (e muito!) com os seus olhares, para dar ainda mais espírito às roupas. Vale dizer também que a casa italiana manteve em suas redes sociais conversas sobre moda e arte por meio do Possible Conversations, com encontros entre personalidades da moda e das artes visuais.
Christopher Kane, verão 2021.Foto Cortesia | Christopher Kane
Christopher Kane, que já é mestre em utilizar materiais inusitados em suas roupas, decidiu pegar cola e glitter para fazer arte em seu quintal durante o lockdown. O que era para ser apenas um hobby virou uma série de pinturas, entre retratos e paisagens, que foram apresentadas durante a semana de moda de Londres, em uma coleção que ele mesmo chamou de colaboração que teve consigo. Em sua loja da Mount Street, ele organizou algumas das pinturas em cavaletes, mas também mostrou roupas que foram feitas com tecidos que tiveram as artes impressas digitalmente. O designer ainda não sabe se essa é uma coleção que ficará a venda, mas divulgou que o processo foi importante na manutenção de sua saúde mental e qualidade criativa.
Já na Miu Miu a colaboração foi com o Mubi, plataforma de streaming composta principalmente por filmes de autor. Nele, foi lançado o In My Room, curta criado e dirigido pela atriz e diretora francesa Mati Diop, enquanto ela esteve confinada em sua casa durante a fase mais dura do isolamento. Este já é o 20º curta produzido pela marca de Miuccia Prada por meio da série Women’s Tales, que busca valorizar o trabalho de diretoras mulheres e já contou com produções de Agnés Varda, Chloë Sevigny e Ava Duvernay. Junto com o novo filme, todo este acervo está disponível na plataforma online.
Para além de uma saída esperta para as marcas, vale dizer que a arte foi uma das poucas aproximações possíveis no mundo do distanciamento social. Ela é “como criamos sentido para o passado e sonhamos com o futuro”. Quem escreveu isso foi a britânica Olivia Laing, em Funny Weather, Art in an Emergency, livro lançado no começo deste ano e que, apesar do título, trata-se de uma coleção de ensaios que a autora escreve, desde 2015, sobre a potência da arte em tempos difíceis. “Nos dizem com frequência que a arte não muda nada, mas ela muda o nosso olhar. Deixa claro as desigualdades e oferece jeitos férteis de ver o mundo”, ela afirma.
A abordagem mais artística surge como uma solução poderosa para uma indústria que, não é segredo, vive há tempos uma grande crise de identidade. A guinada cultural é uma maneira de dizer que não é só sobre a roupa, mas sobre o universo em que a marca ou coletivo vibra, além de que comunidade ela afeta verdadeiramente. Exemplos de sucesso desse tipo de casamento não faltam. Pense no estilista Craig Green que se divide entre as suas colaborações mais comerciais, como com a Adidas Originals, e as roupas escultóricas e instalações de arte que também produz. O designer Jonathan Anderson é outra referência que, tanto em sua marca homônima, quanto na direção criativa da Loewe, celebra a herança de artistas queer, como Oscar Wilde, David Wojnarowicz e Tom of Finland. E, claro, a Gucci que não só mergulha em movimentos artísticos para inspirar as suas coleções, como também financia projetos de artes pelo mundo todo.
Instalação de Craig GreenFoto: Dan Tobin Smith.
Ou seja, não se trata de uma alternativa pontual. Em Berlim, por exemplo, 20 designers independentes de moda já decidiram se alinhar com organizações de artes visuais. Em parte isso se deu porque as feiras semestrais de comércio de moda que aconteciam na capital alemã, e que funcionavam como a coluna vertebral de sua semana de moda, migraram para Frankfurt, o que tirou bastante força do evento. O episódio, contudo, serviu para a realização de um desejo que estilistas sondavam há temporadas: a aproximação com as artes plásticas.
Em entrevista ao site Women’s Wear Daily alguns desses designers explicaram que, basicamente, todos os criativos só querem uma plataforma de divulgação de seu trabalho e uma exposição que gere vendas, algo que uma semana de arte como a de Berlim pode, sim, fornecer. A ideia não é matar a semana de moda tradicional, mas encontrar outras possibilidades por meio da interdisciplinaridade. Vale dizer que esse passo é dado com mais segurança por lá, porque a Alemanha tradicionalmente tem incentivos do Estado no setor cultural, reconhecendo essa indústria como uma parte pulsante de sua cadeia.
A primeira aquisição na história do grupo Kering de um negócio que não necessariamente envolve a produção de roupas é também um grande exemplo. Em parceria com o estilista norte-americano Kerby Jean-Raymond, o conglomerado francês lançou o Your Friends In New York, projeto com objetivo de capacitar novos criadores de moda e arte. Kerby é dono da Pyer Moss, marca com a qual desenvolve braços culturais, não necessariamente só novas roupas e coleções. O Tabernacle Drip Choir é um exemplo disso, grupo de canto composto apenas por artistas negros, mantido pela Pyer Moss desde 2015. Kerby parece ter uma mensagem ainda mais forte do que a que moda — pelo menos a que conhecemos até agora — pode abranger. E a moda pode encontrar novas formas de compreender isso tudo. A arte parece ser uma resposta.
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