Que haja o novo sob o sol
Herança cultural, reflexão sobre gênero e a vida em quarentena foram os principais temas da temporada inglesa, a mais jovem do calendário internacional.
Um ano de Covid-19 depois, a pandemia não foi contida e os desafios de manter uma semana de moda também não diminuíram. No caso de Londres, por exemplo, a cidade já enfrenta o seu terceiro lockdown, com normas mais duras de restrição desde o final de 2020.
Há esperança de que, com a campanha de vacinação em curso, tudo melhore. Porém, existe ainda um entrave político. Com a saída efetiva do Reino Unido da União Europeia, surgiram uma série de burocracias responsáveis por colocar a utopia de livre comércio a anos de distância da realidade. Tudo isso tem impacto direto na moda, principalmente nas grifes menores e independentes.
Era esse o pano de fundo para os desfiles da London Fashion Week, que aconteceram entre os dias 19 e 23 de fevereiro. Para se ter uma ideia de como a coisa está complicada por lá, duas semanas antes do evento (quase todo virtual), uma carta aberta, assinada por designers como Paul Smith e Roksanda Ilincic, foi entregue ao governo britânico detalhando as dificuldades vividas pelas etiquetas com a pandemia e o Brexit. Não à toa, assim como em Nova York, uma série de nomes que antes abrilhantavam o evento decidiram deixá-lo. Christopher Kane e Jonathan Anderson são dois exemplos.
Mas, e agora, quem segura o barco? Justamente os nomes mais frescos, os novos designers. Apesar de serem os mais afetados pela realidade, ironicamente, são eles quem seguem trazendo as discussões mais pertinentes e atuais, fazendo o calendário ainda especial e não deixando a peteca cair.
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A principal nova designer da temporada, sem dúvidas, é a estilista de ascendência nigeriana e indiana, Priya Ahluwalia. A sua marca homônima tem três anos e já virou uma das principais expoentes do upcycling e de um streetwear que valoriza ancestralidades e história por meio de roupas bastante praticáveis. Ela parece seguir os passos da conterrânea Grace Wales Bonner, que, nesta temporada, fala sobre intelectuais negros vindos de várias partes da África e do Caribe para estudarem nas universidades de Oxford e Cambridge, na década de 1980. A imagem dos imigrantes se adaptando a uma cultura dominante, muitas vezes opressora, resulta numa mistura de heranças culturais diversas com elementos esportivos.
No caso de Ahluwalia, a estilista faz essa união de tradição e rua com cores fortes e, nesta temporada, com uma imagem que ela formatou a partir das obras dos pintores negros Kerry James Marshall e Jacob Lawrence. No último dia do evento (23.02), ela recebeu o Prêmio Rainha Elizabeth II de Design Britânico. Até então já ganharam esse título outros designers da nova geração de moda inglesa, como Richard Quinn, Rosh Mahtani (da joalheria Alighieri) e Bethany Williams.
Esta última usa a moda como uma maneira de estimular mudanças sociais e ambientais. Para o inverno 2021, Williams faz uma coleção focada em casacos de lã remendados, produzidos a partir de cobertores antigos reaproveitados. Em entrevistas recentes, a estilista afirmou que é justamente agora, neste momento de crise generalizada, que novos designers devem fazer perguntas e levantar ideias que possibilitem a formatação de um sistema de moda mais responsável.
TWIST – SAUL NASH AW21
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Outro tema que nunca deixou de pulsar em Londres e que cresce cada vez mais com novos debates impulsionados por jovens criativos, é a reflexão sobre padrões visuais de gênero. Nesta temporada, há um amadurecimento do tipo de design que se propõe genderless, se deslocando do plano aspiracional para o real. Na apresentação em vídeo do designer Saul Nash, uma gangue de garotos dançarinos conta uma história breve sobre uma masculinidade opressiva, sobretudo a projetada em indivíduos negros. Nash, que além de designer é coreógrafo, traça isso de um jeito simples, mas não menos profundo: dois meninos se beijam usando uma roupa com cara bem de rua, superpossível para qualquer gênero.
Harris Reed também é um dos principais nomes quando o assunto é uma imagem nem só masculina e nem só feminina. O estilista se graduou ano passado na Central Saint Martins, mas já chamou a atenção de Alessandro Michele, vestiu o superstar Harry Styles (que, no limite, tem levado essa história genderless para o mainstream) e já até assinou uma colaboração com a MAC. Em sua nova coleção, há fusões do que pode ser entendido como vestuário para eles e para elas numa mesma peça. É tudo questão de gerar uma plataforma para a auto-expressão extrema.
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Nem tão recente, mas nem um pouco passado
Dentro de um calendário com tantos nomes novos, quem desfila há pelo menos mais de quatro temporadas já pode ser considerado veterano. E o jogo é o mesmo: destacam-se aqueles que conseguem conversar com o mundo atual.
Este foi o caso da centenária Burberry, que apresentou a sua coleção masculina de inverno 2021 (ainda não há data sobre uma apresentação feminina). Ainda que exista essa divisão de gênero na nomenclatura, a libertação dos jovens em uma esperada era pós Covid-19 foi o norte para a produção de peças bastante genderless. Aqui, a tradicional alfaiataria da casa ganha pitadas de elementos esportivos e referências queer, como Leigh Bowery e Michael Clark. Destaque para a botinha de couro grudada na perna e que termina como uma chuteira, bastante utilitária. Remix de gêneros.
Burberry
Outras duas marcas já bem conhecidas do público, Erdem e Roksanda, também puxaram uma conversa bastante atual, no caso, sobre a valorização de mulheres mais velhas na moda.
Erdem, inspirado no tempo no qual trabalhou com o Royal Ballet, há alguns anos, e em Margot Fonteyn, uma dançarina que se apresentava com um parceiro quase vinte anos mais jovem, nos anos 1960, recuperou esses temas como âncoras conceituais para a sua coleção. Em uma passarela improvisada num palco, quatro dançarinas de diferentes gerações foram convidadas para mostrar os seus looks à la black swan.
Já Roksanda Ilincic lançou um microfilme chamado Friday in February, feito com celular e apresentando três gerações icônicas de mulheres: Vanessa Redgrave com a filha Joely Richardson e a neta Daisy Bevan. Declamando o Soneto 73, de Shakespeare, Redgrave cita versos sobre a importância do amor na velhice, vestindo os blocos de cores típicos da estilista.
ROKSANDA AW21, ‘Friday in February’
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A ideia de família também rondou os pensamentos de Molly Goddard, mas principalmente porque a designer acaba de dar à luz seu filho, o que a forçou (junto com o lockdown) a ficar cem por cento dentro de casa. O espaço doméstico e o que seria alguém elegante dentro dele foram os estopins da coleção, com o já conhecido exagero de elementos entendidos como femininos ao lado de jeans meio anos 1950 e suéteres fair isle, àqueles que juntam várias cores e padronagens geométricas em uma peça só.
Simone Rocha, por sua vez, ganhou as redes sociais com a sua coleção baseada em contraste. Poesia versus drama, rebeldia versus fragilidade, proteção versus força. Cetim, couro e tule, são os principais materiais usados pela designer, que chamou os tecidos de “as três graças”. A imagem final é a de um look sonhador, sensível, avolumado e apaixonado, mas que também protege. O seu look resume bem esta semana que ainda tenta florescer em meio ao caos desse mundão.
Simone Rocha
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