Questão de tempo
O estilista João Maraschin quer repensar a idade e a incansável busca por juventude e novidade na moda.
João Maraschin não gosta da palavra “ageless”. “É quase como uma negação”, diz o estilista. “Não falar sobre algo é ignorar sua existência, suas problemáticas. É muito importante discutirmos a idade.” Foi durante o mestrado na London College of Fashion que esse gaúcho, natural de Caxias do Sul, começou a questionar a eterna busca pela juventude na moda. “A indústria, e todo o sistema, olha exclusivamente para os jovens como o único combustível para fazer a engrenagem funcionar. Comecei a questionar isso e pensar como poderia usar meu trabalho para fazer algo a respeito.”
O resultado pôde ser visto pela primeira vez em fevereiro, quando João estreou na semana de moda de Londres, a convite da faculdade em que realizou o mestrado. O desfile chamou a atenção da imprensa e do mercado pela abordagem sustentável. Os tricôs eram manuais, feitos com um fio de seda primitivo tingido organicamente (uma parceria com a empresa O Casulo Feliz, de Maringá, no Paraná). O couro, na verdade, não era couro, mas um tecido feito com a folha da planta orelha-de-elefante. Porém foi o trabalho realizado com bordadeiras de mais de 70 anos de uma comunidade de Itabira, em Minas Gerais, que melhor representou sua visão e seu diferencial.
“Não é só sobre fazer um produto para uma mulher mais velha ou colocar modelos com mais idade na passarela”, diz ele. “Os processos internos também precisam ser readequados. Dar espaço para que artesãos mais velhos possam continuar praticando seu próprio ofício é parte disso. Muitos acabam excluídos do mercado pela idade ou pelo surgimento de uma nova tecnologia.”
João gosta de memória e do feito a mão. Gosta mais ainda de preservar tudo isso. Não à toa, foram as obras e vidas do artista plástico José Leonilson que guiaram seus estudos e sua coleção de mestrado. “Eu me lembro de ter visto uma exposição dele há muito tempo, quando ainda morava em BH, e ela ficou guardada na minha cabeça.” O estilista se encantou pela maneira como o artista criava e enxergava o mundo. “Tudo era um estímulo: um bilhete de hotel, um recibo de bar ou festa, um papel de bala.” São coisas aparentemente banais ressignificadas de acordo com a vivência, subjetividade e lembrança de cada um.
João Maraschin.Foto Cortesia | João Maraschin
É que João tem uma relação diferente com o tempo. Pelo menos com o tempo da moda, no sentido de prazos de validade e da obsessão pela renovação constante. Para ele, a continuidade é muito mais interessante do que a interrupção ou a substituição. Registro histórico, cultural e social, o artesanato tem muito disso em seu produto final – é fruto de dias, horas e até meses de trabalho manual, carregado de energia e valor humano.
Foi algo que João aprendeu desde muito cedo. “Aprendi a fazer tricô, crochê e macramê com minhas avós, quando era criança. Isso sempre me acompanhou.” Ainda em Caxias do Sul, um importante polo têxtil no Brasil, ele trabalhou em diversas empresas até que, em 2014, foi convidado por Ronaldo Fraga para trabalhar na marca do estilista mineiro. “Foi um grande divisor de águas na minha carreira”, fala ele. “Foi lá que entendi a potência do artesanato não só do ponto de vista visual, mas principalmente cultural e social.”
Em 2016, ele foi para Londres fazer uma curso de pós-graduação na London College of Fashion e por lá ficou. Emendou o mestrado, que lhe rendeu a vaga na semana de moda local, e passou pela equipe de marcas como Gucci, JW Anderson e Wales Bonner. “Em todas as minhas experiências prévias, havia uma certa tensão entre os processos artesanais e os automatizados. Dificilmente esses dois territórios conversavam e isso é algo que tento resolver no meu trabalho.”
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O desfile de fevereiro marcou o lançamento oficial de sua marca homônima. A coleção, aliás, nem seria vendida, pois era a mesma de sua conclusão de mestrado. Porém João chamou a atenção do British Fashion Council, que lhe convidou para participar do Fashion Positive Initiative, uma espécie de showroom focado em marcas comprometidas com práticas social e ambientalmente responsáveis. “De lá, surgiram os primeiros pedidos comerciais. Mas aí veio a pandemia e o estilista novo é o primeiro a ser cancelado”, diz.
Durante a quarentena, João aproveitou para expandir seu repertório imagético. Convidou alguns fotógrafos para interpretar suas criações de forma completamente livre. “Queria que eles realmente entrassem no meu mundo e pudessem colaborar nessa construção.” Muito do trabalho é feito de forma colaborativa. Ele não acredita no modelo vertical, em que um diretor criativo aponta o caminho e a maneira para que os demais executem. “Gosto de trabalhar de forma horizontal, em que todos possam colaborar e se sentir pertencentes. Acho muito mais enriquecedor.”
Para sua segunda coleção, com lançamento previsto para meados de outubro, João chamou seus funcionários para uma reunião no Zoom e pediu para que cada um desenhasse algo que lhes fosse importante. Cada ilustração, então, virou um bordado, também realizado pelas bordadeiras de Itabira. Além dessa comunidade, o estilista conta agora com um grupo de artesãos mais velhos de sua cidade natal, focados em tricô, crochê e macramê. “Minha ideia não é trabalhar com 100 comunidades, mas ter entre cinco e dez para manter uma prática constante”, explica ele.
O resultado é uma coleção mais ampla, bastante política e comunicativa. Leonilson continua como a principal fonte de inspiraç˜ão. “A gente passa um tempo tão grande em pesquisa que é injusto deixar o material morrer em seis meses”, argumenta. Do ponto de vista prático, a oferta de produtos é maior e mais abrangente e vai desde roupas e biquínis de palha até alfaiataria. Tudo à venda no e-commerce da marca, a partir da data de lançamento.
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