Roupa de trabalho feminina: uma discussão necessária
"Não existe uma roupa adequada, neutra e segura para uma mulher no mercado de trabalho simplesmente porque não existe nenhum look capaz de resolver um problema anterior".
Quando pensamos em mulheres e roupa de trabalho, será que estamos mesmo falando só de moda? A gente acredita que não. E não só porque moda e estilo têm muito a ver com quem nós somos, os lugares que curtimos, as músicas que ouvimos, o estilo de vida que escolhemos e tudo o que somos para além do trabalho. A verdade é que a dupla “mulher e roupa” traz junto uma necessária discussão política de gênero. Tem muita coisa que passa pela nossa cabeça quando vamos escolher o que vestir e boa parte delas não tem relação com “o que combina com o quê” ou “como eu me sinto mais eu”.
De acordo com a pesquisa “Chega de Fiu-Fiu”, realizada em 2013 no Brasil pelo Instituto Think Olga, 90% das mulheres já trocaram de roupa pelo menos uma vez antes de sair de casa por medo de sofrer assédio. Esse dado é muito impactante, principalmente quando pensamos em estilo pessoal. E isso acontece não por que somos neuróticas ou por que gostamos de superdimensionar nossas preocupações, mas porque moramos em um país no qual 30% dos homens afirmam que a mulher que usa “roupas provocativas” não pode reclamar se for estuprada (pesquisa DataFolha de 2016).
É cada vez mais inevitável incluir o debate de gênero para discutirmos a forma como as mulheres se vestem. E aí, quando adicionamos o tema “trabalho”, é absolutamente impossível defender que estamos mesmo falando só de moda. Tem aqui muita política envolvida. E é justamente essa ausência de “política” nas discussões de moda e estilo, nos guias que prescrevem soluções para a roupa que usamos todo dia, que está o problema. A gente passou muito anos consumindo dicas e conteúdo que juravam ter a fórmula mágica: como decifrar o dress code? Qual o comprimento correto da saia? Que tipo de calcinha não vai marcar? Qual o tamanho do salto para parecer mais elegante? Como parecer jovem, mas não tão jovem a ponto de parecer inexperiente?
Se vestir “adequadamente” para trabalhar parece ser um objetivo inalcançável para nós mulheres, pode reparar. A Thais é consultora de estilo e trabalha levando pra vida real das mulheres esse tema de estilo no trabalho. Na sua experiência, seguramente quase todas as mulheres que procuram a consultoria já ouviram piadinhas sobre a roupa que usavam, sofreram assédio com a desculpa de que a roupa não era adequada e foram descredibilizadas por não estarem com o look perfeito. A Mayra é advogada e trabalha com assédio sexual em empresas e organizações. Na sua experiência, normalmente se gasta mais energia tentando justificar o assédio pelo comportamento das vítimas — e a roupa está no centro dos argumentos de culpabilização das vítimas — do que de fato enfrentando as causas estruturais para os ambientes tóxicos de trabalho para as mulheres.
Poderíamos citar incontáveis exemplos de como as mulheres vêm se organizando para politizar o tema da roupa que usam no trabalho. Um deles foi a campanha feita no tapete vermelho do Oscar “Ask Her More”, em que atrizes precisaram pedir que as perguntas feitas a elas fossem além do tradicional “qual estilista você está usando? Posso ver suas joias?”, enquanto aos homens os assuntos eram sobre carreira, papéis, expectativas e desafios profissionais. Vale também lembrar de todas as manchetes de jornais que preferiram focar na roupa (muitas vezes em tom de deboche) de mulheres trabalhando — políticas, juízas, executivas, ninguém é poupada de ser reduzida à roupa que está usando.
A verdade é que nenhum guia de estilo deu ou dará conta de resolver essa questão porque, de fato, estamos esquecendo de olhar para o cerne da questão: não existe uma roupa adequada, neutra e segura para uma mulher no mercado de trabalho simplesmente porque não existe nenhum look capaz de resolver um problema anterior. Nada é bom o suficiente porque a roupa é o principal meio pelo qual incorporamos o nosso não-pertencimento àquele espaço. O mundo do trabalho formal, bem remunerado e prestigiado socialmente, é um espaço que nos foi historicamente negado, e até hoje precisamos enfrentar inúmeros obstáculos para conseguir ocupá-lo. E a roupa é só um jeitão fácil de dizerem pra nós que não, nós não pertencemos.
A ideia mais imediata, o símbolo mais forte, a roupa mais neutra do mundo do trabalho é o terno. Feche os olhos e pense em presidentes, CEOs e ocupantes de cargos considerados importantes: terno, terno e terno. E ele é uma alegoria eloquente para esta problemática. Não há uma roupa feminina que funcione com tanta força, poder e neutralidade, há tantos anos e em tantos ambientes diferentes, quanto o terno. Os homens têm esta vestimenta tão bem estabelecida quanto o privilégio de ocupar os espaços públicos como se fossem exclusivamente deles, nós mulheres acabamos sempre usando as “roupas masculinas” como referencial para criar a nossa própria roupa de trabalho, ou seja, os homens representam a neutralidade e a gente segue fazendo referência a ela. Somos o segundo sexo também nas roupas de trabalho.
É duro dizer que não existe uma roupa que irá nos ajudar a sermos respeitadas e ouvidas, ainda mais para uma consultora de moda que vive de ajudar mulheres a encontrarem uma roupa que resolva esse problema e para uma advogada que se dedica a enfrentar o assédio sexual e moral no ambiente de trabalho. Mas a verdade é que nenhuma roupa é a real culpada pela truculência do mercado de trabalho em relação às mulheres, não existe um look que venha com uma capa equalizadora de papéis.
A roupa ajuda, encurta caminhos, comunica, tem um papel real na sociedade em que vivemos, mas ela não opera milagres, não destrói, sozinha, o patriarcado. “As roupas não vão mudar o mundo; as mulheres que as vestem vão”, já dizia Anne Klein. E não se deixe enganar: não existe e jamais existirá uma fórmula pronta, um look one size fits all para o trabalho. Afinal, se não existe uma única representação da categoria “mulher”, como poderia haver apenas uma solução de look que desse conta de todas nós? Só vamos conseguir resolver a equação mulher mais roupa de trabalho quando incluirmos “política” nesse binômio.
Mas, te juro, somos otimistas. Se não há jeito da gente “se camuflar como um homem”, será que não podemos nos divertir mais com a nossa roupa e nos preocupar menos em nos espremer para caber nos guias e manuais? Vale abraçar o conselho da congressista norte americana Alexandra Ocasio-Cortez: “Paremos de tentar navegar sistemas de poder e comecemos a construir o nosso próprio poder”. A verdade é que não temos e não teremos uma roupa tão estabelecida e poderosa como as peças masculinas. Mas também não dá para continuarmos aceitando que roupas consideradas femininas demais não inspiram confiança e credibilidade. Vamos sempre ter questões, dúvidas, vamos ouvir críticas e comentários, nos resta então parar de tentar dominar os códigos que nos oprimem e nos movimentar para criamos outros jeitos de nos vestir. Não tem uma resposta fácil e nem todo mundo vai poder no pós pandemia ir trabalhar do jeito que se sentir melhor, mas tomar consciência que o problema está na roupa como símbolo e não na roupa como valor absoluto pode ajudar na rebeldia.
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