SPFW sem filtro: Korshi, À La Garçonne, Isaac Silva, Lucas Leão, Weider Silveiro, Dendezeiro e Apartamento 03

No caos, calor e umidade, a festa é destaque no último dia da semana de moda. E mais: foco no produto sem perder a criatividade e um balaço com babadinhos de bastidores.


Isaac SilvaSPFW N54Marcelo Soubhia @agfotosite
Isaac Silva. Foto: Agência Fotosite



Podia ser fim de festa, mas era desfile. A trilha com pedradas eletrônicas e os convidados de óculos escuros sob o sol da manhã não ajudaram muito na desassociação da imagem clubber pré-after. Mas talvez fosse essa mesma a intenção. Era o desfile da Korshi, do estilista Pedro Korshi, uma das etiquetas favoritas dos frequentadores dos rolês de música eletrônica. 

“Como Pedro bem disse, a única coisa que precisamos saber sobre a sua marca é que ela faz uma moda multifuncional. Isso significa que cada peça pode ser usada de várias maneiras, até transformadas em outras. Calças viram saias, chapéus podem ser usados como bolsas, jaquetas se transformam em coletes e ainda podem ser encurtadas. Tipo roupa de quem fica fora o dia inteiro e passa por várias estações no mesmo dia. Ou fica na pista até bem depois do amanhecer.

O cenário, a Vila Itororó, já é familiar para os clientes da Korshi. O casarão histórico, localizado entre os bairros do Bixiga e da Liberdade, é uma locação que já abrigou alguns eventos de cena eletrônica paulistana. Teve até a cantora Laura Diaz, do Teto Preto, desfilando meio pelada. Sem se apresentar fisicamente desde 2019, seja pela pandemia seja por problemas pessoais, esse foi um retorno muito bem-vindo”, escreveu a repórter Giuliana Mesquita, um tanto ressentida de estar trabalhando num domingo de manhã e não tentando sobreviver a mais uma rave. Boletos, né?

O clima festivo seguiu pela manhã com a À La Garçonne, no shopping Iguatemi. Como na temporada anterior, é a moda festa o principal destaque da apresentação. A redatora-chefe Renata Piza comenta mais:

“À La Garçonne tá cada vez mais Herchcovitch raiz. Dividido em 3 blocos, o desfile é um mix do supermercado de estilo de Alexandre: começa com jeans trabalhado na alfaiataria, perfuminho dos anos 1940, reforçado pelo styling. 

E brilha na alfaiataria, terra em que o estilista historicamente cresce. 

Como é À La Garçonne, marca que lançou com o sócio Fábio Souza, em 2009, tem também o lado vibrante do streetstyle, em que vemos até o conjunto de caveira, símbolo do universo semiótico de Herchcovitch, além da Corrida Maluca de Penélope Charmosa, personagem que ele adora.”

E acho que vale um destaque para as peças com jeitão esportivo ou street, mas feitas de tecidos acetinados, numa boa junção entre esses dois mundos e moods da coleção. Aliás, fiquem ligadinhos: logo mais tem novidade de Alexandre Herchcovitch em sua mais pura essência.

E aí, no último dia da São Paulo Fashion Week, choveu. Dentro e fora do evento. O  Komplexo Tempo – “a nova The Week”, como disse uma motorista de Über –, é composto de uma série de galpões industriais. A estrutura é bem antiga e crua também. Quando a chuva aperta, as telhas não dão conta e goteja em tudo. Mas esse nem foi o maior drama.

Eu não tinha dado nem dois passos por lá, quando vi as repórteres Giuliana Mesquita e Lelê Santhana meio passadas ao lado de uma assessora de imprensa. Pela primeira vez em anos, a ELLE não tinha convites para o desfile da marca Isaac Silva.

Quer dizer, a gente até tinha, mas um só, e nossa cobertura demanda pelo menos três pessoas bem posicionadas ao lado da passarela. Nesta temporada, a apresentação estava sob responsabilidade de uma nova assessoria de imprensa, a Casé Comunicação. E, aparentemente, a imprensa não importa muito para eles.

Não é mágoa nem mimimi. É trabalho. E com uma marca e estilista com a qual temos uma relação próxima de longa data. Além da dificuldade para conseguir um ingresso, o acesso a informações básicas e o auxílio na cobertura padrão de qualquer veículo foi extremamente dificultada.

“Uma infelicidade que, para a maioria da imprensa, a apresentação tenha sido ofuscada pela má organização da assessoria Casé Comunicação, que toma conta da marca. A empresa não tratou os jornalistas com o mesmo cuidado que a própria estilista tem. Para além do atraso, algo que já consideramos normal nesta 54ª SPFW, a assessoria não conseguiu organizar os tradicionais encontros com a designer antes do desfile nem sentar apropriadamente a equipe responsável pela cobertura. Fatos que naturalmente prejudicaram nossa leitura do todo”, escreveu o editor Gabriel Monteiro.

Uma pena, porque foi o desfile mais lindo de Isa Isaac Silva. Provavelmente o melhor.

Começa com Félix Pimenta fazendo as vezes de MC para o Ballroom Brasil (por algum motivo que desconhecemos, essa parte não aparece no vídeo oficial). De cropped verde e amarelo, e em parceria com a Vivo, dançarines de vogue mostram uma parte da coleção pensada em resistência. Tem um quê de Copa do Mundo, mas tem, principalmente, uma vontade de reapropriar as cores da nossa bandeira sequestrada por movimentos de extrema-direita.

Na sequência, vêm uma série de looks bege, quase todos de algodão. É um estouro. Sem cerimônia, Isa transforma o streetwear, que serve de base para sua empresa, em algo extremamente sofisticado. Se tinha gente que reclamava da qualidade das roupas da marca, tá aí uma boa oportunidade para mudar de ideia.

As peças carregam inspirações de alta-costura nas formas e silhuetas. O tratamento, porém, é menos elitista e mais real, pé no chão. Traz os detalhes que Isa traduz tão bem do que vê e veste todo dia caminhando pelas ruas de São Paulo com um olhar enriquecido de quem conhece moda para além do que alguns decidiram registrar como a única versão da história.

O melhor exemplo disso vem bem no final. “Assim como manda a tradição da alta-moda, Isa Isaac Silva decidiu encerrar seu desfile com uma noiva. Evidentemente, não uma noiva qualquer: a icônica modelo e atriz Aretha Saddick é quem usa o longo de bordados e babados, finalizado com um buquê de rosas brancas. Apenas um dos vários momentos emocionantes dessa apresentação!”, escreveu Gabriel.

As inspirações centrais são as estilistas Marisa Moura e Mama. A primeira é uma criadora quase alquimista de elementos culturais. A segunda é uma gigante pesquisadora de tecidos africanos. “A coleção não tem estampas, a estampa é o corte, os vazados, as texturas e seus volumes. Terra e arco-íris, búzios cobertos de dourado desenhando decotes, curvas. É tudo bem bonito e convidativo”, escreveu a editora especial Vivian Whiteman, após uma tarde no ateliê da estilista.

E tudo feito de tecidos 100% brasileiros, com destaque para o algodão. “Isa me mostra um tecido engomado que julgo ser plástico, mas é de algodão e goma com efeito empapelado, uma coisa muito bonita, sofisticada. Esse veio com Mama de suas viagens. As coleções da marca estão cheias dessas surpresas, pedem proximidade, materializam sutilezas políticas diante dos olhos. A coleção não tem estampas, a estampa é o corte, os vazados, as texturas e seus volumes. Terra e arco-íris, búzios cobertos de dourado desenhando decotes, curvas. É tudo bem bonito e convidativo“, continua Vivian.

Depois do desfile, num camarim abarrotado de gente sorridente, emocionada e feliz (com seus merecidos espumantes em mãos), consegui finalmente encontrar Isa. E graças a um empurrãozinho de Paulo Borges, diretor criativo da SPFW, que me viu humilhada, barrada no baile. A estilista explicou que a ausência de estampas tinha como objetivo reforçar a identidade da marca para além das padronagens coloridas e do print Acredite No Seu Axé.

Foi também uma maneira esperta de escancarar o salto evolutivo da marca em termos técnicos. E Isa é tão danada que quase tudo tem origem em trajes típicos de religiões de matrizes africanas – e com forte apelo de moda. Questão de origem, né? E respeito. E conhecimento. E comendo pelas beiradas.

Esta temporada foi marcada por um grande foco comercial, sem que isso prejudicasse a criatividade. Ao longo dos últimos cinco dias, foi bom ver o esforço de alguns estilistas na expansão de suas ofertas e na insistência de uma imagem relevante.

No domingo, 20.11, vimos isso na alfaiataria e nas peças mais leves e sensuais de Lucas Leão, marca focada em tecnologia que decidiu versar sobre a dualidade entre o artesanal e o digital nessa nova coleção. Tudo começou com uma viagem do estilista ao Maranhão, em junho. Lá, ele foi na Festa do Boi e ficou obcecado pelas fantasias enormes feitas à mão. Apesar do artesanato, ele viu ali um twist tecnológico. 

Giuliana Mesquita conta mais:

“Na roupa, essa brincadeira aparece nas argolas feitas na impressora 3D e presas a crochês manuais, formando coletes e blusas de tramas bem abertas. A cerâmica, feita pela artista Luiza Navarro, o látex, de Helena Obersteiner, e a lã, manipulada por Fernando Assis, se transformam em esculturas aplicadas a óculos, tops, blazers e bolsas. Na parte mais comercial, drapeados transparentes, alfaiataria leve e uma estamparia, que já faz parte do DNA de Lucas, completam a estética imaginada pela marca.”

Weider Silveiro já andava com vontade de se debruçar sobre o design e construção das roupas antes mesmo de integrar o line-up da SPFW. Ele queria que suas peças falassem por si só, sem precisar de qualquer tipo de discurso ou narrativa. Seu inverno 2023 é, provavelmente, sua coleção mais bem sucedida nesse sentido. 

Antes do desfile, o estilista falou que nunca tinha usado as cores bege, marrom e pêssego, mas de repente, se pegou desejando-as. A paleta quase neutra o levou a pensar em peças de modelagem clássica, com destaque para a alfaiataria. 

Quase toda feita de malha, a coleção tem algo sofisticado e ao mesmo tempo casual nos sobretudos e blazers de ombros marcados, nas camisas polo com plissados feitos em máquina e nos tricôs mais colados ao corpo. Resumidamente, é uma roupa com toda uma preocupação técnica e de acabamento, porém de tecido confortável e prático (nem sempre muito adequado para alguns volumes, como o peplum). Sem dúvidas, vai fazer sucesso entre as clientes que o descobriram recentemente e caíram de amores por sua moda bem alinhada às tendências sem ser óbvia.

Os estilistas Hisan Silva e Pedro Batalha, da Dendezeiro, são outros que chegaram às passarelas físicas da SPFW para mostrar muito mais do que já se conhecia da marca. Lelê Santhana, repórter da ELLE, explica:

“Em sua estreia nas passarelas presenciais da SPFW, a Dendezeiro volta ao tema central da marca: as ruas. Dessa vez, porém, expande as fronteiras soteropolitanas e pensa em mais quatro cidades: Recife, Natal, Rio de Janeiro e São Paulo. 

Cada uma delas é responsável por um bloco da coleção. No de Salvador, por exemplo, os tecidos desfiados fazem referência à Revolta dos Alfaiates, movimento emancipacionista, que aconteceu na capital baiana em 1798. Já no de São Paulo, Pedro e Hisan lembram, através de bandeiras, que uma parte significativa da população local é formada por pessoas vindas de algum dos nove estados nordestinos. 

A cartela de cores se mantém em tons terrosos e sóbrios, para reforçar a identidade da marca. A alfaiataria urbana vai pelo mesmo caminho. Dessa vez, ela surge mais amadurecida, acompanhada por trabalhos manuais como o macramê. A grande novidade, porém, fica por conta dos vestidos longos, nunca feitos antes pela marca. 

Ao olhar para os personagens do cotidiano brasileiro, a Dendezeiro lembra que a moda sempre nasceu nas ruas. Nas passarelas, só vira tendência.”

E aí veio a espera. Como se ninguém estivesse cansado. Algumas pessoas até desistiram antes mesmo das portas da sala de desfile abrirem. As apresentações do último dia já estavam quase com 1h30min de atraso. Para a atração final, no entanto, a espera foi de mais de duas horas. De um domingo. Depois de cinco dias bem exaustivos. E, tratando-se de um desfile no mesmo espaço, um tanto desrespeitoso.

Era o desfile da Apartamento 03, do mineiro Luiz Claudio Silva. Sua mais nova coleção começou a ser pensada na temporada passada. Porém, dada as incertezas pandêmicas, o estilistas achou que não teria tempo nem contexto ideais para fazer a apresentação que queria. 

Horas antes, enquanto finaliza as costuras de uma trança no vestido preto usado por Liniker para encerrar a SPFW N54, Luiz falou com a repórter Giuliana Mesquita e este que vos escreve sashoras:

“‘O desfile se chama Áureo, é um desdobramento de Ouro, a coleção passada’, disse Luiz. Peças como a blusa de tapeçaria feita com os fios usados para fazer tranças em cabelos afros, o kanekalon, demoraram meses para serem feitas. Uns quatro segundo o estilista. Ele conta ainda que o movimento de transição capilar feito por mulheres a sua volta o fez lembrar de sua infância, quando o alisamento era regra. Por isso, a celebração do crespo, transformando-o em roupa.”

E agora que acabôcaqui, dá para fazer alguns balanços sem filtro:

A principal tendência da temporada foi o atraso, que cresceu exponencialmente do primeiro ao quinto dia. Nos corredores próximos aos camarins, o que mais se ouvia eram reclamações sobre tamanho desrespeito com os profissionais lá presentes.

Tendência revelação ficou por conta do calor, que dominou o último dia, após o ar-condicionado ter largado o batente bem antes da hora.

A tendência antiga, que já anunciava um comeback semanas antes do evento e que se confirmou, é a Covid-19. Sua reedição com nova variante pegou um tanto gente que considerava a máscara um acessório so last season.

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Participação especial na SPFW. Foto: Chantal Sordi

E temos ainda a participação especial de um desconhecido, que correu para a entrada do Komplexo Tempo para se abrigar da chuva num cantinho quase discreto. Seu nome ninguém sabe, suas pulgas muitos temiam. No fim, rolou até uma reciprocidade. Éramos fugitivos do caos e da umidade.®

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