“As marcas de luxo precisam dar exemplos”

Em entrevista à ELLE, Rossella Ravagli, profissional que pavimentou o caminho da Responsabilidade Social na Gucci, conta como a responsabilidade ambiental e social evoluíram nos últimos anos entre as grandes empresas do setor.


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Sustentabilidade existe muito antes de ser moda. Muito antes de ter esse nome. O que caracterizava esse assunto no final do século passado era, fundamentalmente, uma atitude de cuidado. De responsabilidade. Tinha a ver com alguns profissionais e empresas que pensavam em como cuidar do meio ambiente e das pessoas que nele habitam. Apenas. Muitos vieses já apareciam nessa conversa: artesanalidade, ancestralidade, herança, conexão com a natureza, direitos humanos, consumo e produção conscientes.

Quem pensava nisso há vinte anos já eram pessoas de visão, estranhadas pela grande maioria. Faziam parte de nichos e propunham lutas ambientais e sociais. Na moda, no máximo, se falava em ecologia. Pensar na questão social era algo separado da beleza e do que se dizia cool. Era algo que parecia não combinar com o conceito (já ultrapassado) do luxo. E, de repente, surgiram no radar dos criativos eventos como o Copenhagen Fashion Summit e pessoas como Rossella Ravagli, profissional que pavimentou o caminho da Responsabilidade Social na Gucci.

Foi neste evento de Copenhague, em 2012, inclusive, que conheci Rossella. Ainda era surpreendente ver, numa mesma mesa de debate, instituições como Greenpeace conversando com nomes de luxo como a Gucci. Pareciam mundos muito distantes – e de certa forma eram.

Meses depois, em Florença, Rossella me deu uma entrevista em que bradou que “o luxo não podia ser manchado de trabalho infantil”. Uma frase dessa, saindo de uma empresa de moda também surpreendia. Ainda eram outros tempos, mas os consumidores estavam começando a questionar como tudo era feito. Principalmente os italianos, que culturalmente se preocupam com as origens – da arquitetura, das bolsas, dos alimentos. Chefiar um departamento de Responsabilidade Social numa grande empresa de moda significa monitorar a produção não só dentro da empresa como nos fornecedores – que são milhares. É fazer incessantemente perguntas como “quem está trabalhando conosco?”, “como estão trabalhando?”, “como estão se utilizando da matéria prima?”. É monitorar para que as leis sejam respeitadas e para que o processo de uma empresa cause o menor impacto possível. É saber que qualquer problema pode causar uma crise.

Quase 10 anos se passaram e Rossella, hoje, dá consultorias de Sustentabilidade para o mercado. Foi convidada pela Fondazione Pistoletto, em Biella, na Itália, para criar e ser diretora de um curso universitário sobre o tema na Itália. As aulas começam neste semestre. Tem sido chamada para dar palestras e é conselheira de Economia Circular na Università Bocconi, em Milão. Em entrevista a ELLE, Rossella relembra sua trajetória e as transformações do século passado até os dias – pandêmicos – de hoje.

Rossella Ravagly.

Rossella Ravagly.Foto: Divulgação.

Quando você estava na universidade já se falava de sustentabilidade?

Me formei em Ciências Econômicas e Estatísticas nos anos 1990. Depois, em 1993, fiz um mestrado em Qualidade. Era um tema que estava em crescimento dentro das empresas, mas ninguém falava de sustentabilidade. Não existia uma preocupação com o bem estar das pessoas. Nem mesmo uma preocupação das empresas em assumir uma responsabilidade social. Em 1996, comecei a falar sobre isso nas empresas italianas e ainda era novidade, ninguém tocava no assunto. Consegui um certificado de auditor de temática social em 1997 e foi provavelmente um dos primeiros na Europa.

Em quais empresas você trabalhou para se especializar em Responsabilidade Social?

Comecei a trabalhar há 25 anos. Meu percurso profissional se iniciou nos chamados órgãos de certificação [que emitem certificados atestando a qualidade de produtos e processos das empresas, como por exemplo o certificado ISO 9000]. Minha primeira experiência foi na SGS [SGS – Social Global Audit, empresa suíça global líder em certificação de empresas] por 7 anos. Em 2003, fui para outra empresa de certificação, a Bureau Veritas. Um diretor meu na época me disse que existiam temas emergentes, temas que estavam crescendo, que as pessoas estavam se interessando. Acabei eu mesma criando novos protocolos de certificação.

Sua paixão por observar essas qualidades nas empresas te levou para quais lugares?

Já tinha vontade de construir uma área do nada, então comecei a pesquisar, a estudar. Foi uma aventura, uma grande jornada. Esses organismos de certificação têm escritórios em todo o mundo e fiz cursos no Brasil, no Paquistão, na Índia. Era tudo muito novo. Precisei treinar inclusive muitos colegas de trabalho para eles entenderem como era esse controle de responsabilidade social e sustentabilidade. Tive que convencer muitos CEOs a entrarem nesse caminho. Eram temas que eu já tinha no meu DNA. Desde pequena, sempre fui muito atenta a tudo que causava impacto ambiental ou social. E quando apareceu a chance, mesmo num modo pioneiro, me senti na hora certa e no lugar certo.

“Não é só sobre reutilizar resíduos, mas sobre produzir menos resíduos, evitar o acúmulo, investir em economia circular. E, claro, pensar na justiça social. As pessoas estão no centro.”

Até que a Gucci te encontrou. Como foi isso?

Em 2003, e eu estava num congresso falando sobre responsabilidade social e sustentabilidade. E tinha um diretor da Gucci, que era do RH, me ouviu falar e me convidou para dar cursos de formação lá. Nesse mesmo ano, comecei a treinar funcionários da marca. Em 2008, me convidaram para construir essa área e virar chefe de Sustentabilidade e decidi aceitar.

O que você precisou fazer para criar essa consciência dentro da Gucci?

Quando entrei, em 2008, não tinha uma equipe. Fiquei 2 anos sozinha. Depois, os projetos começaram a aumentar e fui construindo essa área e criando estratégias para trabalharmos com sustentabilidade. No primeiro ano, a única forma de sensibilizar as pessoas – e eu era sozinha – era formando, dando cursos. Eu formei 700 pessoas na Gucci. Era necessário criar a consciência sobre esse tema, eu tinha que fazer as pessoas entenderem qual era meu papel ali, quais eram os objetivos que tínhamos que alcançar. Com esse crescimento, percebi que a Gucci se diferenciava em relação às outras e acabou inspirando as demais empresas de moda.

Quais ações dentro da Gucci te proporcionaram maior realização pessoal, do ponto de vista de resultados na sua área?

Não era só a Gucci, era todo o sistema Gucci, uma empresa com milhares de fornecedores onde os produtos eram feitos. Fiz um trabalho intenso com todas as cadeias de fornecedores. Foi graças a eles, aos funcionários e vários parceiros que consegui implementar esses projetos. Os contatos com as ONGs sempre foram importantes. É preciso manter uma boa relação com essas associações de defesa de animais, o Greenpeace, por exemplo. Uma relação de confiança. Os resultados foram vários, me lembro do projeto de inserção de refugiados para trabalharem na empresa, e de inserção de materiais inovadores no departamento de estilo. Em 2009, mudamos a embalagem que era de plástico para uma de papel certificado FSC. Foi inovador. Em 2012, já estávamos lançando produtos com origem biodegradável em alguns tipos de sapatos e óculos. Não dava para utilizar em toda a produção, mas foi um começo e conseguimos. Mas o que mais lembro são dos sorrisos das pessoas que se envolviam nesses valores, os fornecedores que trabalhavam com a gente, que melhoraram as condições de trabalho em suas fábricas. Foi isso que levou a Gucci a ser líder nessa temática.

O que fazia os trabalhadores se emocionarem nas formações?

No começo, as empresas e trabalhadores pareciam um pouco céticos. Pense que isso foi 12, 15 anos atrás. Procurei falar sobre colaboração. Sobre como todos os fornecedores do Sistema Gucci tinham um papel fundamental nos processos da empresa. Que tínhamos um objetivo em comum ao trabalharmos com determinadas formas. Quando precisava monitorar o que eles faziam, procurava deixar claro que era para fazê-los crescer, não era um controle policial. No final, quando a Gucci ganhava prêmios de qualidade de produção, eu dividia essa conquista com os fornecedores para que todos sentissem que faziam parte, que aquilo era deles também.

“Um dos impactos mais significativos na cadeia produtiva é o ligado à matéria prima. É preciso estar atento à forma como esses recursos são retirados da natureza para proteger a biodiversidade. Não é apenas preservar, mas as empresas precisam criar práticas regenerativas.”

Quais foram as maiores dificuldades que você encontrou?

Dificuldades existiram sempre. Entrei em 2008 na Gucci e até pouco tempo atrás, não existia a consciência que as pessoas têm nos dias de hoje. Era inconciliável, era um paradoxo a moda trabalhar para projetos sociais. Tinha muito preconceito e precisávamos combater esses estereótipos. Para que se ocupar com responsabilidade social? Ou então as pessoas perguntavam: Para que usar materiais feios só porque são recicláveis? Não existia a consciência. A moda achava que sustentabilidade não combinava com o luxo.

Você precisou convencer o mercado de luxo que a sustentabilidade era possível.

Achava-se que o luxo era intocável, que o departamento criativo era inacessível. Por isso, foi tão importante desenvolver esses temas. Fazer essas formações e fazer as pessoas entenderem que esses temas era intrinsecamente ligados ao luxo. E era o luxo que tinha que se ocupar desse tema. Consegui provar que uma mudança era possível se todos se comprometessem. “Você deve ser mais que pioneira, deve ser uma missionária”, dizia um diretor no RH da Gucci. Mas, no fim, muitas pessoas acabaram entendendo a mensagem.

Quando foi que os consumidores de luxo começaram a querer saber como a indústria da moda funciona?

A atenção dos consumidores de luxo vem mudando nos últimos 10 anos. Principalmente os millenials e geração Z. Consequentemente as empresas de luxo começaram a se preocupar, ainda mais, em garantir a esses consumidores uma oferta de produtos com essas características. Vejo isso nos últimos 4, 5 anos. Antes era apenas um nicho, uma parte pequena atenta a isso. A questão do trabalho infantil sempre sensibilizou os consumidores de moda. Mas não prestavam atenção aos materiais, à origem da matéria prima e isso mudou nos últimos anos, aumentou o nível de consciência e também de exigência. Hoje, o consumidor quer saber se foram feitos testes em animais, se existe respeito aos trabalhadores, ou como a empresa trata do tema da inclusão e de aspectos culturais.

Você acha que a moda é um mundo fechado, com dificuldade de aceitar mudanças? Por que?

A moda está se abrindo agora. Quando a conheci, era mais fechada. Era fechada às mudanças, e as pessoas não tinham vontade de colaborar com outras realidades. As empresas não faziam balanço de sustentabilidade nem tinham um site para contar suas histórias, não tinha storytelling. Todas as empresas do mundo do luxo, hoje, têm um site onde falam sobre esses temas. Decidiram colaborar. Porque na sustentabilidade não se fala em competição, mas em colaboração.

Como foi sua experiência com a indústria brasileira enquanto trabalhava com a Gucci ou em outras empresas?

Mais do que a indústria, eu falaria do país. É um país maravilhoso, estive muitas vezes aí. Tive a oportunidade de fazer cursos de formação sobre responsabilidade social em São Paulo. Tenho ótimas memórias, lembro de pessoas muito entusiastas e muito preparadas, que tinham vontade de fazer mudanças significativas. Desenvolvemos um projeto contra o desmatamento numa coleção de bolsas para provar que era possível conseguir rastrear o material. As bolsas vinham com um passaporte que garantia a rastreabilidade da cadeia produtiva. Falei sobre isso quando me convidaram para dar uma palestra no Rio Summit.

Vivemos um momento polêmico no Brasil a respeito da preservação de nossos recursos naturais. Que impactos acha que podemos causar? Que conduta as empresas de moda precisam ter?

Um dos impactos mais significativos na cadeia produtiva é o ligado à matéria prima. É preciso estar atento à forma como esses recursos são retirados da natureza para proteger a biodiversidade. Não é apenas preservar, mas as empresas precisam criar práticas regenerativas. O futuro é esse. Os designers que sempre nos inspiraram não devem dominar a natureza, mas colaborar com ela.

Você acredita que as grandes marcas de moda podem ajudar o setor a melhorar o modo como trabalham e produzem?

Sim, certo que podem. Aliás, é uma tarefa importante eles darem o exemplo. Se são essas marcas os trendsetters, então precisam criar novas tendências e não apenas seguir os outros. As grandes marcas de moda são imitadas. Elas têm um grande poder, logo têm também uma grande responsabilidade. Precisam conduzir uma grande mudança. Precisam mudar o modo de produzir. Pensar em novos modelos de desenvolvimento, de negócios. A sustentabilidade com inovação, tecnologia para que os processos sejam mais eficientes e menos dependentes da matéria prima. As marcas de moda precisam também produzir menos resíduos. Não é só sobre reutilizar resíduos, mas sobre produzir menos resíduos, evitar o acúmulo, investir em economia circular. E, claro, pensar na justiça social. As pessoas estão no centro. As que estão na empresa e os fornecedores, todos os que estão envolvidos precisam estar no centro. São pontos cruciais para se levar em consideração dentro de uma empresa de luxo.

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