Telfar, a marca que está lutando contra os bots na moda
Criada por Telfar Clemens, a marca nova-iorquina teve o seu estoque de shopping bags esgotado em segundos por causa de bots, prática comum no mercado de revenda hypebeast. Mas ela acaba de lançar um programa de segurança, colocando a sua comunidade em primeiro lugar.
No fim de julho, todo o estoque de uma bolsa da marca Telfar esgotou em questão de segundos por um grupo de revenda. A peça é conhecida como a shopping bag da marca ou ainda pelo apelido “Birkin de Bushwick”. Mas a Telfar não ficou muito feliz com o que aconteceu. Na última segunda-feira (17.08), a marca anunciou um programa de segurança para evitar que casos como esse se repitam. O fundador da marca, Telfar Clemens, é libério-americano, tem 35 anos e cresceu no bairro de Queens, em Nova York. Desde a infância, sonhava em ter uma marca sem gênero, aprendeu sobre design de moda de forma autodidata e lançou a marca homônima em 2005. Apesar de já existir há 15 anos, não faz muito tempo que a empresa alcançou o mainstream.
Acompanhe sua trajetória abaixo.
Um sonho de criança
Apesar de ter alcançado o mainstream há pouco tempo, a Telfar já tem 15 anos no mercado. A marca, fundada em 2005 por Telfar Clemens, originou-se de um sonho de criança do estilista libério-americano. Nascido em 1985 no Queens, ele sempre se sentiu atraído por roupas femininas, mas acreditava que não havia permissão para usá-las. Foi seguindo esse instinto que surgiu a vontade de encabeçar uma marca sem designação de gênero.
Ainda na adolescência, o estilista começou reconstruindo as roupas já existentes no seu armário, sendo um experimento decisivo para que ele encontrasse o DNA de sua marca. Muitas vezes, roupa sem gênero é entendida como simples moletons cinzas, mas essa limitação nem passava pela cabeça de Telfar, que testava combinações de forma completamente livre. Depois desse primeiro momento, sem nunca ter frequentado um curso de design de moda, o estilista passou a fazer novas peças do zero, elaborando a sua primeira coleção. Assim como uma ascendente geração de criadores que hoje comandam a parte criativa de grandes grifes, integrada por nomes como Virgil Abloh e Matthew M. Williams, Telfar é autodidata.
“Tente fazer roupas que não existem no mercado, assim como você não existe no mundo”. Essa frase consta na biografia oficial da empresa, assim como o slogan “Não é para você ー é para todos”. As duas já entregam muito do que a marca representa. Há 15 anos, quando lançada, não existiam grandes discussões sobre a “democratização da moda” e, muito menos, marcas que tivessem esse conceito como principal pilar. Independentemente do que acabou virando uma tendência de mercado, Telfar sempre esteve à frente pois essa era a sua verdade — a voz de um jovem negro e queer nascido nos Estados Unidos.
Para inspirar as crianças que vem aí
Apesar de ter ficado preso à cena underground por muitos anos, ir além dela já era um desejo antigo do estilista. Telfar percebia que ter uma marca de nicho acabava sendo o fim para a maioria dos estilistas como ele. Entretanto, como o próprio já citou algumas vezes, o seu plano era que a sua marca fosse tão grande quanto as gigantes do mercado norte-americano, como Michael Kors e Ralph Lauren. Afinal, alcançar um alto nível de popularidade significaria furar todas as bolhas, inspirando e atingindo até as crianças, como a que ele foi um dia.
Pensando em quebrar essa linha, Telfar se juntou a um antigo amigo, o artista visual Babak Radboy. Ele conta que foi assistir ao desfile de inverno 2013 da marca (que até então não participava da NYFW) e considerou a coleção a mais incrível de toda a temporada. Todos os convidados, porém, eram amigos do estilista, e não havia ninguém da imprensa, o que o deixou transtornado. Foi a partir daí que, juntos, Telfar e Babak começaram a estudar como poderiam traduzir a Telfar a uma linguagem compatível com a do sistema de moda.
A marca, então, passou a fomentar um espírito outsider e a se apresentar durante a New York Fashion Week, onde teria maior visibilidade e maiores oportunidades de negócios. Daí em diante, tudo mudou. Telfar trouxe para a semana de moda norte-americana o sopro de frescor e jovialidade que ela tanto precisava, se tornando um dos desfiles mais aguardados do line-up, e crescendo exponencialmente.
Prêmio CFDA
A constante ascensão chamou atenção do Council of Fashion Designers of America. Em 2017, Telfar venceu a principal categoria da premiação realizada pelo conselho, ganhando US$ 400 mil, o que representou um enorme sinal de aprovação após tantos anos de empenho. Quando foi anunciado como o grande vencedor da noite, o estilista falou emocionado: “Sei que tem sido uma longa e dura jornada, mas isso é o que pioneiros fazem. E esse prêmio está voltando para o Queens”.
Um look da coleção verão 2019 da TelfarAgência Fotosite
Subvertendo a lógica
Telfar também se destaca pela sua coragem ao arriscar. Após a apresentação da coleção de verão 2016, por exemplo, o libério-americano resolveu fechar uma loja da White Castle, grande rede de fast food dos Estados Unidos, para uma festa pós-desfile. O evento foi uma enorme celebração, com muita música e dança, e os próprios funcionários da lanchonete entraram no clima. Rapidamente, os vídeos ultradivertidos viralizaram por toda a internet. O evento acabou rendendo uma colaboração entre a marca a White Castle que culminou no estilista assinando os novos uniformes da rede.
Já para o verão de 2020, a marca desembarcou em Paris. Telfar apresentou o curta-metragem *O mundo não é tudo*, produzido por ele em colaboração com amigos. Conforme um personagem aparecia na tela, um modelo surgia com o mesmo look na passarela, criando um interessante efeito de duplicação. O filme exibido ia muito além da roupa, promovendo uma necessária reflexão sobre as políticas anti-imigração dos Estados Unidos e da Europa. Novamente, foi um sucesso nas mídias sociais e levantou grandes debates.
Esses são só alguns exemplos dos muitos desfiles inesperados realizados pela marca nova-iorquina, que como uma boa integrante da nova geração da moda tem injetada em seu DNA uma boa dose de desprendimento dos formatos tradicionais e de ideais eurocêntricos, além de pensar o novo com criatividade e ousadia.
A Birkin de Bushwick
Mas se tradicionalmente para alcançar o mainstream uma marca precisa ter uma bolsa hit, a Telfar também tem. A shopping bag de couro vegano com o T circulado já existe desde 2014, mas foi apenas em 2020 que ela se tornou um fenômeno de vendas. Não à toa, nas redes sociais, ela ganhou o apelido de “Birkin de Bushwick”, fazendo referência à clássica bolsa da Hermès e ao bairro de Nova York onde vivem muitos fãs do estilista.
Telfar queria desenvolver uma bolsa que representasse o Brooklyn e os moradores do distrito. Mas, para isso, sabia que não poderia colocar altos preços, como os das demais bolsas de luxo, e conseguiu precifica-la entre US$150 e US$257, dependendo da versão. Os preços mais atrativos permitiram que uma base de consumidores jovem e multicultural pudesse adquiri-la. Se bolsas de luxo costumam ser símbolos de status, para Telfar, a shopping bag “é sobre identidade, experiência e sobre como se mover pelo mundo”.
Redefinindo o luxo
Sendo usada por Selena Gomez, Bella Hadid e Solange, a shopping bag se tornou um dos itens mais desejados do momento. Nos últimos meses, uma grande concorrência se formou para conseguir comprá-la, já que toda nova leva era rapidamente esgotada. Porém, no fim de julho de 2020, essa tal concorrência extrapolou todas as expectativas. No dia em que o estoque da bolsa foi reabastecido no e-commerce, ele acabou em questão de segundos. A situação causou revolta nas redes sociais, principalmente depois do grupo de revenda Hypernova anunciar que havia comprado 60% do delas através de bots.
A shopping bag da Telfar, que ganhou o apelido de Birkin de Bushwick. Foto: Getty Images
Essa técnica de software já vem sendo usada por revendedores no mercado do hypebeast há alguns anos. Sempre que uma nova coleção da Off-White, Supreme ou qualquer colaboração entre uma marca de esporte e uma grife surge, robôs virtuais são ativados por compradores para que estoque se esgote, e eles possa revender as peças por preços mais altos depois. Isso não costuma incomodar a maioria das marcas, pelo contrário, elas se beneficiam da sensação de exclusividade e desejo, mas para a Telfar a história é um pouco diferente. Afinal, há grandes motivos para que a marca tenha buscado por preços mais acessíveis para as bolsas.
No dia do ocorrido, a marca se manifestou falando: “Telfar é para pessoas, não para bots”. E nessa última segunda (17.08), anunciou um programa de segurança, que visa ir contra o funcionamento dessa cultura do hype. “Não queremos exageros e escassez. Não queremos que o nosso produto seja impossível. O objetivo principal da nossa bolsa é acessibilidade e comunidade”, afirmou a empresa em seu Instagram.
O Big Security Program permite que a nova-iorquina planeje a produção do acessório com antecedência e de acordo com a demanda. Os clientes poderão fazer os seus pedidos de forma direta nesta quarta (19.08), mas eles só começarão a ser entregues entre 15 de dezembro de 2020 e 15 de janeiro de 2021.
Quando questionada sobre esse longo prazo, a marca afirmou que, por enquanto, o combate aos bots só dará certo dessa maneira.Se diante de tamanho desejo, inúmeras marcas poderiam negligenciar a situação e não se preocuparem com a sua comunidade, felizmente, a Telfar parece continuar levando a sério o lema “Não é para você ー é para todos”.
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