Trajadas para a várzea
No futebol varzeano das mulheres, as camisas vão além de uma simples peça e representam identidade, resistência e pertencimento - dentro ou fora dos campos.
Maria Amorim sempre tem um compromisso aos finais de semana. A idealizadora do maior festival de futebol de várzea feminino do mundo, que reúne mais de mil jogadoras em um único dia, dificilmente perde um dos jogos do seu time em Parelheiros, bairro onde mora com a família na cidade de São Paulo. No campo amador, um elemento que nunca passa despercebido é a camisa, seja aquela que veste a torcida ou a equipe.
“No futsal ou no gramado, a camisa de várzea é uma identidade”, explica Maria, que, ao longo dos anos como atleta e torcedora, acumulou várias das peças no seu guarda-roupa. “É por essa equipe que estou aqui, por minha quebrada”, continua ela. E não é só em dias de jogos, mas no cotidiano. As camisas de várzea ultrapassam os limites do campo e tornam-se peças para quaisquer ocasiões, do trabalho ao rolê.
Para Jucinara Lima, conhecida como Juh da Várzea, as camisas revelam um tipo de pertencimento. “Quando você chega em outro lugar, e vê alguém usando a camiseta do seu time, é pira”, diz ela, que é fotógrafa de times amadores. “Não à toa, esse ramo de confecção está crescendo tanto.”
Prova disso são as empresas focadas na produção desse tipo de roupa. A Uniex, por exemplo, surgiu em 2011, é uma das fabricantes mais tradicionais do esporte amador em São Paulo, responsável pelo fornecimento de artigos para dezenas de clubes.
Foto: Juh da Várzea
O Apache, time do qual Maria é diretora e zagueira na categoria feminina, surgiu em 2016 como um desdobramento do masculino – realidade comum aos times varzeanos de mulheres. “Às vezes, muitas querem jogar futebol e montar um time, mas são muitos os custos. Então, tem essa possibilidade a partir do time dos homens”, explica ela. E a lógica se estende à confecção dos uniformes.
Maria participou do mapeamento do futebol feminino varzeano de São Paulo, lançado no dia 18.11. A iniciativa tem Aira Bonfim, mestre em história e pesquisadora de futebol e arte da equipe de implementação do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), como uma das autoras e proponentes, e conversou com 95 clubes de mulheres da várzea paulistana.
Uma das principais descobertas da pesquisa foram os recursos elencados como os mais custosos para as jogadoras. Os uniformes aparecem em segundo lugar. De acordo com Aira, “eles fazem parte de um mundo paralelo e são uma segunda pele no jogo, não é só colocar um colete vermelho para diferenciar”, explica a pesquisadora, que ressalta ainda a particularidade do visual entre os times e torcedores de várzea.
Personagens e mascotes
No masculino ou feminino, é quase unânime entre os times varzeanos a presença de um mascote, algo que simbolize a equipe e sua quebrada. Pode ser uma letra de música, homenagem para quem já se foi, uma foto ou ainda um lema. E não é raro que tais elementos apareçam nas camisas. Essas, aliás, não se limitam a quem acompanha o esporte, basta qualquer tipo de identificação com o clube.
Jucinara Lima tem uma coleção de peças vindas de jogos e times aos quais se aproximou pela profissão. Quando vai fotografar, contudo, ela tem uma especial, com um símbolo misturando uma bola, uma câmera e um salto alto.
Foto: Juh da Várzea
No caso do Apache, time de Maria, o brasão tem a ver com indígenas americanos. Quem faz essas escolhas de personagens, frases e representações são as lideranças do clube. Depois, as ideias são enviadas para o fabricante das camisas, que desenvolve as artes para a aprovação da diretora. É um verdadeiro processo de criação.
Alguns clubes comercializam os artigos por meio de um e-commerce ou em lojas físicas. É o caso do Vila Fundão, tradicional time da zona sul de São Paulo desde meados dos anos 2000, que tornou-se conhecido por meio de figuras como Mano Brown e Dexter. Os artistas, ao referenciarem o clube, também ajudaram a popularizar o uso das suas camisetas.
As mulheres no futebol de várzea
As camisas de várzea já carregam significado e pertencimento, mas nos corpos das mulheres elas têm ainda outras mensagens. Assim como vê-las ocupar espaços futebolísticos já é uma subversão, vestir a várzea também pode ser. Para quem foi apartada do esporte, qualquer manifestação que retome esse lugar é simbólico e conquistado.
Ver as mulheres usando camisas de várzea, dentro e fora dos campos, é uma dessas resistências. Isso porque o esporte não foi permitido por muitos anos para elas no Brasil. Em 1941, Getúlio Vargas assinou o Decreto-lei 3199, que proibia a prática feminina, sob falsos argumentos científicos como justificativa. Para as negras, a realidade era ainda mais dura por conta do racismo e ideais higienistas. Mesmo assim, as mulheres já tinham um longo histórico de presença no futebol, que só voltou a ser legalmente permitido em 1979.
Aira explica que a experiência das torcidas femininas é um dos exemplos mais comprovados dessa participação. “Elas estavam ocupando as arquibancadas, dando sentido a manifestação que é torcer para o futebol. Esse interesse existe, o que não existe é um contexto social que as inclua na experiência do jogo”, continua.
Foto: Juh da Várzea
É a subversão do lugar determinado às mulheres na sociedade, normalmente em casa, cuidando da família, longe dos espaços de sociabilidade. “A partir do momento em que ela joga bola, existem camadas de ousadia e moralidade que são questionadas. Não é só um incômodo pelas mulheres estarem aparecendo, mas do simbolismo do que elas estão ocupando”, continua Aira.
Tudo isso não foi conduzido facilmente. Ocupar esses espaços incomodou, e ainda incomoda, os homens. Aira comenta que “o país do futebol afasta metade da sua população desse jogo”, ao lembrar como, por exemplo, sua mãe e sua avó foram distanciadas culturalmente do esporte. A pesquisadora ainda acrescenta que o contexto da época era semelhante em outras outras esferas, como na defesa dos votos femininos.
Eram décadas de resiliência e luta, que se estendem até os dias de hoje, nos quais é preciso “resistir para existir”, compartilha Maria. Para a diretora, mesmo que o futebol feminino tenha ganhado visibilidade nos últimos anos, o preconceito segue acontecendo com as mulheres no esporte e na várzea. “O maior desrespeito é não estar preparado para receber o futebol feminino naquele lugar”, acredita. Mas, assim como quem veio antes, ela não desiste. “Aos poucos a gente vai conquistando nosso lugar, a partir do diálogo e da denúncia”, finaliza.
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