Parece que o jogo virou

Paixão nacional, a camisa de futebol carrega muito significado, mas historicamente já foi ridicularizada ao ser usada fora de estádios. Inspirado por movimentos como o grime, o mercado de luxo parece estar mais interessado do que nunca na peça, gerando desejo e transformando a forma de se relacionar com os times.


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Foto: Getty Images



No último mês, uma peça apresentada no desfile de inverno 2020 da Balenciaga chegou às lojas da marca e, como de costume, rendeu inúmeras polêmicas. O item em questão é uma interpretação de uma camisa de futebol, que se fosse oficial seria a mais cara do mundo, custando 780 dólares (em torno de R$ 4.300).

A versão da grife que tem Demna Gvasalia como diretor criativo envolve elementos tradicionais de camisa de futebol clássica: distintivo, logo (neste caso, da label), recortes gráficos e o número nas costas. No entanto, a da Balenciaga ganhou corte oversized quadrado e mais estrutura nos ombros. Junto de outros acessórios característicos do esporte, como o calção e o meião, essa não é a primeira vez que a Balenciaga aposta em símbolos cotidianos ou originários da classe trabalhadora.

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A camisa da BalenciagaDivulgação

Desde que o estilista chegou por lá, em outubro de 2015, o também fundador da Vetements vem subvertendo a lógica do luxo e da própria história da casa. Ao colocar na passarela peças que são habitualmente ridicularizadas, especialmente pelas classes média e alta, Demna provoca a indústria com uma declaração “antimoda”.

Mas há um paradoxo em tudo isso. É algo há tempos apontado no trabalho do estilista, mas que voltou à pauta do momento com a camisa de futebol em questão. Ao mesmo tempo em que ele busca hackear o sistema da moda ao interpretar um item que mexe tanto com imaginário popular, não há uma preocupação em acessibilizar o produto para quem, de fato, faz parte desse movimento — o que pode fazer com que mais uma camada de distinção social seja aplicada. Muitas pessoas vão continuar achando “cafona” usar camisa de futebol fora dos estádios, a menos que um deles esteja vestindo Balenciaga.

A ousadia provoca discussões e causa reflexões necessárias – mesmo que, no fim do dia, ainda seja sobre o lucro gerado pela polêmica. Nesse caso em especial, estamos falando sobre a apropriação de um símbolo que faz parte de um dos esportes mais populares do mundo. Sua transformação em um item de luxo ao qual ainda menos pessoas terão acesso é só uma das problemáticas. Vale a pena irmos mais a fundo nessa história:

O futebol como parte da identidade

Quebrando barreiras sociais, é seguro dizer que futebol é um dos grandes elos entre as massas. O esporte, organizado e regulamentado na Inglaterra ao longo da década de 1860, se espalhou ao redor de todo o globo e se tornou a paixão nacional de dezenas de países, entre eles o Brasil, envolvendo as mais diversas manifestações culturais e influenciando expressões linguísticas e corporais.

Por aqui, o esporte desempenhou um papel essencial para a construção do imaginário social, passando a fazer parte da identidade do brasileiro. “O futebol é o único reino em que o povo sente a sua pátria. Todo brasileiro, do patrão ao empregado. É a pátria comum, é democrático. Qualquer menino arranja uma bola, nem que seja de pano. E quando ele não joga, porque não há campo de pelada, é ruim. O futebol é importante, é o momento em que o brasileiro chora, se apega, em que ele tem pátria”, opinou Darcy Ribeiro, em entrevista ao programa Roda Viva, em 1995, quando foi perguntado sobre o esporte como um suposto elemento negativo de alienação.

De lá para cá, muita coisa mudou, inclusive a relação do brasileiro com o futebol. Nos últimos anos, se instaurou um leve distanciamento por uma soma de fatores, entre eles, a tentativa de elitização dos estádios. Historicamente, porém, apesar de ter chegado como um esporte para elite, a partir dos anos 1920 ele se posicionou como um espaço cultural e se arraigou às massas, e a potência dessa relação, definitivamente, não é desfeita do dia para noite.

Quando os times entram em campo, brasileiros das mais diferentes classes e setores da sociedade se unificam por um objetivo comum e usam a camisa que melhor os representam. Tendo sido criada com o intuito de diferenciar os jogadores em campo, a peça ganhou enorme valor também para os torcedores. Ao possibilitar a exibição do orgulho de fazer parte daquele time, ela é como uma declaração pública de que o torcedor está conectado a um grupo específico, com seus códigos próprios e particularidades.

Ganhando status de estilo

Com a ascensão do sportswear, porém, essa relação começa a se transformar. Nos últimos anos, os times passaram a apostar em designs mais tecnológicos e abordagens com informação de moda para as suas camisas de futebol. Na Copa do Mundo de 2018, por exemplo, o uniforme nigeriano foi eleito o mais bonito dentre as 32 seleções, gerando uma desejabilidade nunca antes vista na categoria.

Assim que a camisa foi divulgada, a máquina do hype começou a operar. O item se tornou um dos assuntos mais comentados na internet e, antes mesmo de começar a ser vendido, havia tomado todos os sites de streetwear e já era usado por nomes como o rapper britânico Skepta. A Nike, responsável pela peça, comunicou que três milhões de pessoas já a haviam adquirido, informação que foi desacreditada por analistas, uma vez que a venda nem mesmo havia sido anunciada. A obsessão, entretanto, só cresceu, e ela rapidamente chegou ao mercado de revenda.

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A camisa da seleção nigeriana da Copa do Mundo de 2018Divulgação

Esse funcionamento já foi visto inúmeros vezes e costuma ser o processo habitual das peças que envolvem o movimento hypebeast. Contudo, foi a primeira vez que uma camisa de futebol passava por ele. O caso foi decisivo para a virada de percepção sobre a peça no meio da moda. Afinal, até então, designers de sportswear, focados majoritariamente em referências do basquete, skate e corrida, costumavam excluir o futebol.

Torcer ou não torcer?

A camisa da seleção nigeriana passou a ser usada por pessoas do mundo todo, e por mais que algumas marcas e times — especialmente os africanos — já tivessem lançado produtos que geraram desejo fora do universo do futebol, ela acabou marcando um novo momento, que segue refletido atualmente, com as novas gerações usando camisas diversas independentemente do time que torcem (ou até mesmo sem torcer para nenhum).

A versatilidade de uma camisa de futebol é essencial para esse fenômeno. Enquanto camisas de basquete, por exemplo, são projetadas para as demandas da quadra, as de futebol possuem dimensões de camisetas normais, e isso também ajudou para que elas não fossem reduzidas aos campos. Esse movimento de usá-las no dia a dia sempre aconteceu e, por muito tempo, foi motivo de julgamento por quem defende dress codes em determinados ambientes como restaurantes e shoppings.

O que vem sendo observado agora são as camisas de futebol ganhando o status similar ao das camisetas de banda. É um movimento já observado antes, ainda que não exatamente no mainstream. Usadas muitas vezes por pessoas que não conhecem uma música sequer daquele grupo, elas se tornam desejadas por fatores majoritariamente visuais e, com as de futebol, o fenômeno parece ser semelhante. Nas portas de desfiles das últimas semanas de moda, não era difícil avistar homens e mulheres com essas camisas combinadas a calças de alfaiataria, saias ou vestidos grifados.

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Look de street style durante a temporada de verão 2019 da Paris Fashion Week.

Getty Images

Não se trata, porém, de um fenômeno novo, ainda que, até então, alheio ao mainstream. Há pelo menos 20 anos, as camisas de futebol são adotadas por grupos específicos. Na cena indie brasileira, não era raro ver pessoas usando camisas de times internacionais ou nacionais (neste caso, modelos mais vintage, de colecionador) no fim da primeira década dos anos 2000. A diferença agora está no apelo, mais amplo e menos nichado.

Em setembro deste ano, a Umbro Brasil divulgou as novas camisas do Chapecoense, Avaí, Santos, Sport Club, Grêmio e Fluminense. Inspiradas pelos 125 anos de futebol no país, elas foram apresentadas por meio de uma campanha que chamou atenção pelo styling apurado. “O manto que vestimos diz muito sobre a forma como pensamos e nos comportamos. Essa coleção vem para dialogar com a história de glória do nosso futebol, com a imagem que cultivamos para o mundo”, afirmou Eduardo Dal Pogetto, brand manager da Umbro, em comunicado divulgado.

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As camisas da Umbro Brasil inspiradas nos 125 anos do futebol no país.Divulgação

As influências do Grime

Contudo, é importante frisar mais uma vez que, independentemente de tendências, as camisas de futebol sempre fizeram parte da realidade de uma grande parcela da população brasileira e global, como um potente símbolo de pertencimento. No grime, por exemplo, gênero musical originado em Londres no início dos anos 2000, a peça é muito usada e desempenha um papel importante no discurso dos artistas.

Em julho deste ano, Fleezus, um dos principais nomes do movimento no Brasil, lançou a música “1990 O início de uma era“, a convite da Nike, para apresentar o novo uniforme do Corinthians. Apaixonado por futebol desde criança, Fleezus entende que, com o passar do tempo, a sua relação com o esporte se tornou cada vez mais próxima, principalmente quando ele entendeu a sua potência dentro de manifestações musicais.

“Tanto no Brasil quanto na Inglaterra temos uma relação muito forte com o futebol. E, aqui, o grime vem da favela e é o futebol que nos dá a voz para nos expressarmos na arquibancada de um estádio até no palco de um show. A parte boa da periferia é o futebol”, diz o artista que usa o termo sportlife para definir o seu estilo.


Fleezus – 1990 O Início De Uma Era (Prod. Cesrv)

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“Usamos camisa de futebol porque gostamos, porque faz parte de quem somos. Agora, criou essa força porque a alta cúpula da sociedade adquiriu e transformou em um produto de luxo para os pertencentes das camadas superiores”, pontua Fleezus. O cantor de grime sempre aparece usando a peça e faz questão de dizer que não é o único: “O pobre também tem a sua moda. Dentro do nosso raio de informação de cultura, a gente preza por usar algo que tenhamos criado, que a gente se identifique. Do nosso lado, sempre existiu”.

Ele ainda aponta que, atualmente, diversas marcas começaram a olhar para “a periferia, para o negro, para o pobre” e que, ainda que a caminhada esteja sendo feita a passos curtos, é um movimento existente.

Um negócio rentável

A verdade é que a indústria da moda não demorou para se aproximar desse novo momento e elevá-lo a um grande negócio extremamente rentável. Em 2018, pouco antes da Copa do Mundo, Virgil Abloh e Kim Jones, dois importantes nomes para o menswear no mercado de luxo, firmaram uma parceria com a Nike, lançando peças de futebol com os seus olhares atentos para o streetwear.

Com o sucesso das colaborações, no ano seguinte, em 2019, a Nike convocou quatro designers para reinterpretar a camisa de futebol. Dessa vez, na intenção de marcar a Copa do Mundo de Futebol Feminino, todas as convidadas da marca esportiva foram estilistas mulheres. Yoon Ahn, da Ambush, se inspirou no Happo, um tradicional casaco japonês. Já Erin Magee, da MadeMe, celebrou a inovação com o brasão dos Estados Unidos. A francesa Marine Serre, por sua vez, apresentou uma malha articulada para ser usada sobre o body da sua estampa hit de luas.

A Versace, com todo seu clamor italiano, também não ficou de fora. Em 2018, a grife lançou o que, até então, era considerada a interpretação mais cara do mundo de uma camisa de futebol, custando US$ 695 (o que na época girava em torno de R$ 2.500), porém a versão da Balenciaga, lançada neste mês, bateu o título.

 

Leia mais: No futebol varzeano das mulheres, as camisas representam identidade, resistência e pertencimento – dentro ou fora dos campos.

 

Uma das referências por trás da camisa de futebol da Balenciaga tem nome e sobrenome: Martine Rose. Aos 40 anos, a estilista de moda masculina faz parte de uma cena talentosa de Londres e não é de hoje que é admirada por Demna Gvasalia. O georgiano, inclusive, atento à sua estética próxima aos movimentos antimoda, a contratou para prestar uma consultoria para a marca. “A minha experiência na Balenciaga é muito diferente porque eles têm muito mais poder em termos do que podem realizar. A minha experiência pessoal é oposta”, contou em entrevista ao Hypebae.

Depois de iniciar essa parceria, Martine passou a ter uma confiança, validação e ainda um fluxo de caixa muito mais estável para continuar investindo em sua marca homônima, fundada há 13 anos. A estilista, que estuda subculturas, tem muitas de suas referências vindas das memórias de infância, principalmente relacionadas aos seus primos mais velhos. Martine lança as suas versões de camisas de futebol há algumas coleções e, no Verão 2018, apresentou uma opção listrada com drapeados franzidos, que foi um de seus maiores sucessos.

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Criação de Martine RoseDivulgação

Se o futebol é sobre democratização, esse novo espaço na moda pode ser estranho para ele estar. A discussão sobre acessibilidade e exclusividade ganha, assim, um novo capítulo, em que o desdém pela cultura de massa não é e nem pode ser uma opção. Fleezus fala firmemente: “Se eu achei bonito, eu quero ter. As pessoas trabalham para isso, mesmo que tenham que parcelar em dez vezes. Para quem veio de onde eu vim, é como um manifesto em que dizemos ‘a gente está na periferia mas também podemos’, é a vitória de uma batalha. A gente é favelado, mas a gente também é enojado”.

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