Visualmente falando: como as pessoas responsáveis por criar imagens de moda sofreram com a Covid-19

Da desunião do mercado, a redução de verbas e novas maneiras de trabalhar digitalmente, stylists, maquiadores, modelos dividem suas experiências.


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Por cerca de cinco meses, as produções audiovisuais de moda pararam completamente no Brasil. Por volta de julho e agosto do ano passado, com a diminuição do número de mortes e certa flexibilização nas medidas restritivas, fotos presenciais voltaram a acontecer, seguindo protocolos sanitários. Testes rápidos de Covid-19, máscaras, face shields, distanciamento e equipes reduzidas se fizeram necessários para assegurar que o vírus não passasse pelas portas dos estúdios, muito menos chegasse aos profissionais envolvidos.

Antes disso, porém, o período foi um tanto angustiante para quem depende da interação pessoal para realização de seu trabalho. Por serem, em sua maioria, informais, muitos profissionais como fotógrafos, maquiadores, stylists e modelos, ficaram sem renda, e a situação não melhorou muito desde então. “Vejo os sinais de um mercado que já era pouco saudável, agora ainda mais precarizado”, comenta o fotógrafo Pedro Pinho. “Algumas ‘seguranças’ que haviam, não existem mais. A pandemia deu uma sacudida boa na indústria nesse sentido.”

A situação é, de fato, complicada. No início da pandemia, incertas sobre o futuro, muitas marcas cortaram seus orçamentos ao limite. Cachês e verbas de produção foram severamente impactados. As equipes e algumas funções também sofreram. A necessidade de um time reduzido considerou algumas posições, como assistentes, camareiras e passadeiras, como extras, facilmente dispensáveis.

Houveram iniciativas para levantar fundos para diversos tipos de profissionais. Porém, eram quase sempre ações em nível pessoal, de apoio entre colegas de profissão passando pelos mesmo problemas. Conforme o mercado foi reaquecendo, o nível de trabalho retomou, porém a lógica de pensamento por parte de muitos contratantes não mudou.

“Vejo grandes clientes enxugando cada vez mais as verbas que vão para esses profissionais. Se querem diminuir os custos, podem cortar no cenário, na estrutura… Mas no trabalho de pessoas?”, questiona Pedro. “O valor mínimo pago para esses profissionais de base deveria ser reajustado”, completa. A maquiadora Carla Biriba engrossa o coro: “Tenho uma assistente e não trabalho com ela faz um ano. Não tenho como, pois o pedido número um é que você não leve ninguém nos shootings. Contrato ela para ir na minha casa, fazer assistência e organizar os produtos, é uma diária individual”.

Editorial com @jalaconda.

Editorial com @jalaconda.Foto: Pedro Pinho.

O problema é mais embaixo. O valor médio pago a profissionais do mercado diminuiu de 20% a 40%, segundo apuração da reportagem. “A pandemia acentuou a desvalorização da profissão em geral. O momento em que vivemos faz com que todo mundo assuma que as empresas não têm mais dinheiro, mas as marcas continuam vendendo e os negócios fluindo”, critica Carla.

Dados do varejo não deixam mentir. Segundo relatório de junho do IBGE, o setor de Tecidos, vestuário e calçados mostrou aumento de 301,2% em abril, comparado ao mesmo mês do ano passado. É o maior crescimento de toda a série histórica, após 13 meses de resultados negativos devido aos efeitos do isolamento social, fechamento de lojas físicas e mudanças no padrão de consumo causados pela pandemia de Covid-19.

Ainda assim, é difícil dizer com precisão o motivo da redução dos orçamentos. Cada marca foi impactada de forma única pela crise pandêmica e o cenário já não era dos melhores antes disso. Os fatores para redução de custos são vários. Um deles é o crescimento e urgência da produção de conteúdo para a internet. Verbas anuais foram diluídas em várias campanhas ao longo dos meses – um movimento que já acontecia antes da crise sanitária e foi intensificado no último ano. O que não poderia – nem deveria – acontecer é o corte drástico em cachês já estabelecidos há tempos no mercado.

Segundo o produtor e diretor de desfile e casting Bill Macintyre, ainda que os cachês das modelos não tenham diminuído, o número de horas que elas ficam em um set de filmagem para uma gravação de fashion film é muito maior do que em um desfile convencional. Os valores também não foram ajustados. “A modelo ganha por desfile e, hoje, todo o material da marca – lookbook, editorial, campanha e vídeo – são gravados em uma mesma diária. Se antes, em uma apresentação presencial, elas ficavam cinco horas, agora, são de 12, 13 e até 14 horas.” E isso vale para todos os profissionais envolvidos.

Com a redução de shootings e gravações, a modelo Alina Dörzbacker começou a trabalhar em uma loja, em meados de 2020. Porém, os cortes chegaram lá também e ela perdeu o emprego. Como os trabalhos estavam escassos, ela e seu marido Mamoru Uehara abriram o Tem Tempurá, restaurante que vendia comida asiática feita no apartamento dos dois. “Capitalizamos o quanto foi interessante, mas o ramo de alimentos começou a ficar difícil, porque os preços aumentaram muito. Começamos a perder dinheiro, então tivemos que fazer uma pausa, e agora não sabemos se voltamos ou não”, explica.

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Alina Dörzbacker, modelo.Foto: acervo pessoal.

Os trabalhos de modelo durante a pandemia foram, no geral, escassos, mas o mês de junho, em que tradicionalmente se comemora o orgulho LGBTQIA+, foi uma exceção para Alina, que é mulher trans. Ainda assim, os cortes de cachê foram expressivos. “Faço bastante selftape para trabalhos publicitários, quando o cliente que precisa nos ver por vídeo. Esses testes são pagos. Antes da Covid-19, a gente ia nos estúdios, fazia esse tipo de vídeo presencialmente e já saía com o dinheiro na mão. Na pandemia, com a forma remota e virtual, muita gente parou de oferecer esse cachê”, comenta.

Nas passarelas virtuais

Além de fotógrafos, maquiadores e modelos, que criam imagens sob demanda para clientes e veículos de imprensa, as semanas de moda também são responsáveis por abastecer editoriais por até seis meses depois de acontecerem. Após as primeiras edições 100% digitais, São Paulo Fashion Week e Casa de Criadores caminham para mais um ano sem desfiles presenciais.

O formato de transmissão de apresentações não é novo para a SPFW, que faz lives do evento desde 2001. A diferença é que, antes, se transmitia o que estava rolando nas passarelas físicas e, hoje, estilistas e marcas precisam criar um conteúdo em vídeo, que demanda filmagem, edição e, principalmente, que as roupas estejam prontas muito tempo antes do evento de fato.

“Como já fazíamos transmissão ao vivo, sabíamos como tudo deveria acontecer. Em novembro, foi a primeira vez que todo mundo teve que migrar para o digital, os estilistas e todo esse ecossistema tiveram que se adaptar”, diz Paulo Borges, fundador e diretor da SPFW. “Agora, o timing é outro, precisou de um novo aprendizado. No evento presencial, eles arrumavam a roupa trinta minutos antes de mandar a primeira modelo. No digital, isso não existe.”

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Coleção da marca Renata Buzzo, na SPFW N50Foto Cortesia | Renata Buzzo

O formato desfile estava consolidado há muitos anos. As passarelas já eram espaços confortáveis para grande parte dos nomes que participam do evento. A mudança de plataforma e mídia foi um desafio para a maioria deles. Muitos precisaram de ajuda. Se, no presencial, o evento fornecia toda uma estrutura, além da cobertura de alguns custos de produção, hoje esse apoio acontece pelo repasse de verbas de patrocinadores. O auxílio, ainda que bem vindo, é um tanto limitante. Muitas marcas se incomodam por não poderem escolher outros apoiadores por conta própria. Muitas vezes isso pode resultar em conflitos de concorrência entre as marcas do evento e a etiqueta.

Já na Casa de Criadores, o criador e diretor André Hidalgo vai oferecer espaço e equipe de filmagem em parceria com a Secretaria de Cultura de São Paulo, no Centro Cultural São Paulo (CCSP), para que as marcas gravem seus materiais. Na edição passada, esse apoio já existia, mas apenas algumas marcas utilizaram o estúdio da CdC. Na próxima edição, marcada entre os dias 26 a 30 de julho, 14 marcas já estão inscritas para utilizar a estrutura.

“Teremos um cronograma, respeitando o distanciamento, para ajudar quem não tem condições de gravar um vídeo de coleção por conta própria”, explica André. “Nós precisamos dar voz aos estilistas, eles estão em um momento em que querem se expressar e têm até mais coisas para dizer do que antes.” A Casa de Criadores também está inscrita em editais públicos pela primeira vez. “O evento sempre aconteceu apenas com verbas de empresas privadas. Hoje, é muito claro o papel social que cada um ocupa na cadeia, então é hora do poder público fazer parte disso”, completa.

Os dois eventos apostam em um modelo híbrido daqui pra frente. Não há como retornar ao que era antes – nada vai. Mas, quando a maior parte da população estiver vacinada, há de se construir um modelo que contemple tanto os desfiles físicos quanto os digitais. “A moda está super bem? Não. Está com todas as dificuldades. Está tendo que reaprender muita coisa. Mas há uma resiliência da natureza criativa. As pessoas vão se adaptando, vão entendendo e fazendo mudanças nos seus canais. Muitos se questionaram sobre tamanhos de coleções, sobre modelos de negócios… A moda é muito resistente”, finaliza Paulo.

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