Atenção: aquele cozido inocente pode conter pitadas de racismo

"Embranquecimento" de receitas revela que colonialismo persiste na cozinha, mas a busca por representatividade está rompendo o status quo da cena gastronômica nos Estados Unidos.


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“Há esta anedota: uma mulher negra diz que ela é uma mulher negra. Uma mulher branca diz que ela é uma mulher. Um homem branco diz que é uma pessoa.” Com esta frase, Grada chama a atenção para o fato de que, numa sociedade racista e machista, quanto menos uma pessoa é impactada pelo simples fato de ser quem é, mais acredita que sua experiência é universal.

Essa fala me lembrou de quando Alison Roman, a colunista de receitas do New York Times e estrela do Instagram, foi acusada de racismo – e, para ficar no léxico millennial de que Alison é expoente, “cancelada” pela internet. Em uma entrevista para o site The New Consumer, Roman havia criticado duramente duas mulheres que usaram seus status de celebridade para desenvolver linhas de produtos para casa e cozinha. Segundo Alison, elas seriam “vendidas”. O problema é que, apesar de muitas mulheres brancas terem a mesma trajetória, como Nigella Lawson e Gwyneth Paltrow, Alison escolheu criticar duas asiáticas: Chrissy Teigen, americana filha de mãe tailandesa, e a japonesa Marie Kondo.


O episódio acabou por dar visibilidade a uma série de críticas que já circulavam no universo mais restrito da gastronomia e acusavam Alison de construir sua carreira, em grande medida, a partir da apropriação e do embranquecimento de receitas de países colonizados – tornando-as menos pungentes para o paladar delicado do Ocidente e embalando-as numa estética branca e jovem, que vende. A mais polêmica delas foi o Cozido apimentado de grão de bico com coco e cúrcuma, ou, para os íntimos, #thestew (“o cozido”). Assim como #thecookies ou #thechicken, #thestew ganhou hashtag própria – por Alison ou por seu séquito, não está claro – e também esse ar de receita definitiva conferido pelo artigo “the”. A hashtag conta com a impressionante marca de quase 8 mil menções no Instagram. Acontece que #thestew se assemelha tanto a um curry que, após muito protesto, o próprio New York Times se viu obrigado a editar a página da receita, mencionando que ela “evoca cozidos encontrados no sul da Índia e em partes do Caribe” – sem, entretanto, mencionar a palavra “curry”. Mas o fato é que a partir das acusações de racismo por conta da malfadada entrevista, a coluna quinzenal de Alison no NYT deixou de ser publicada.

A esta altura, quem me lê deve estar perguntando o que a fala de Grada Kilomba que abre este texto tem a ver com tudo isso. Pois bem, quando Alison Roman foi questionada em uma entrevista ao Jezebel por se recusar a reconhecer a referência do curry em #thestew, ela diz “Eu nunca fiz um curry, eu não venho de uma cultura que sabe fazer curry. Eu não venho de cultura nenhuma. Eu não tenho cultura”. O que é isso senão a experiência, assim como a do homem branco na fala de Grada, que se crê universal? A experiência de uma cultura que, por ser dominante, pode englobar tudo e não prestar contas a nada?

É importante contextualizar que não se trata de impedir que uma pessoa branca cozinhe com receitas ou ingredientes asiáticos ou africanos, ou mesmo faça disso um trabalho. Uma das belezas da cozinha, como de toda expressão cultural, está nesse trânsito. O problema está no racismo estrutural que permite que brancos ganhem muito dinheiro com isso enquanto expoentes da própria cultura em questão sigam às margens do mercado.

Alison Roman tornou-se famosa por conta de receitas fáceis e rápidas, mas saborosas, levemente ousadas. Um ou outro sabor “exótico” (uso a palavra de forma crítica) para tirar a comida americana do marasmo. Tem dois livros, Dining in e Nothing Fancy, publicados num intervalo de menos de dois anos e ambos na lista dos mais vendidos no New York Times. Em uma folheada rápida por eles é possível encontrar ingredientes como o molho de peixe tailandês nam pla; o repolho fermentado kimchi e a pasta de pimenta gochugaru, coreanos; a pimenta síria aleppo; a pasta harissa, tunisiana… Quantos asiáticos ou africanos têm o mesmo sucesso no mercado de livros americano? Quantos caribenhos ou indianos ou japoneses foram convidados por Carson Daly, um dos maiores apresentadores da TV americana, para cozinhar seu curry ao vivo, como Alison foi com #thestew? E o que explica que tantos brancos sejam considerados autoridade na comida de outras culturas? É o caso, por exemplo, de best-sellers como a inglesa Fuchsia Dunlop, referência em comida chinesa, e dos americanos Rick Bayless e Ivan Orkin, restaurateurs e autores de livros sobre comida mexicana e japonesa, respectivamente.

O próprio New York Times Cooking, aplicativo de receitas do NYT, foi tema do estudo de 2017 Food, Race, and Power: Who gets to be an authority on ‘ethnic’ cuisines? (Comida, raça e poder: quem pode se tornar autoridade em cozinhas “étnicas”?), da plataforma Intersectional Analyst. Entre as receitas da generalista categoria “africanas”, que não faz distinção entre países africanos, 83,6% foram assinadas por brancos – são apenas dois os autores negros. Dentre as 263 receitas chinesas listadas no site, 89,4% eram de autores brancos, versus 9,9% de chineses. Apenas 5,1% das receitas indianas são da autoria de indianos, enquanto outras 89,8% foram assinadas por brancos. E por aí é possível ter ideia da falta de diversidade deste que é o mais popular depositário de receitas da internet.

Na esteira do assassinato de George Floyd no final de maio, Sam Sifton, o editor de gastronomia do NYT e fundador do New York Times Cooking, escreveu uma carta aos leitores na primeira semana de junho assumindo a responsabilidade da plataforma na construção de um conteúdo mais diverso, inclusivo. É um movimento importante porque parte do porta-voz de uma instituição – e quando instituições se veem obrigadas a se manifestar, temos um avanço mais profundo e efetivo do que o de meros “cancelamentos” de indivíduos.

Cabe, por fim, uma reavaliação do papel de quem está do outro lado desta equação: o consumidor, que, ao escolher quais veículos acompanha, quem segue nas redes sociais, quais livros e produtos compra, de quais estéticas gosta, valida o funcionamento de um mundo excludente. É confortável cancelar a celebridade exposta, mas somos igualmente parte do problema.

Carolina Arantes é jornalista especializada em gastronomia.

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