Qual é relação entre futebol e a representação de masculinidade?
De emoções extravasadas a padrões estéticos, o futebol dita as regras sobre a masculinidade há gerações. Mas qual homem se desenha hoje entre as traves e travas do campo?
O futebol é hoje um big business. Envolve, além dos jogos e campeonatos em si, uma cadeia produtiva de tecnologia (games, roupas, sapatos e acessórios esportivos), de atenção midiática global e de modismos nas redes sociais. Também é campo de sonhos para crianças e adolescentes no mundo todo, que batem uma bola no quintal de casa, no barro do chão, nas quadras de escolas, e projetam seu futuro no esporte. E, caso a habilidade não sustente o sonho, mobiliza paixões extremadas de torcedores.
Para além do que acontece em campo, o futebol incide fortemente no imaginário de milhões de pessoas e, em particular, nos países onde é um esporte competitivo internacionalmente, como o Brasil. Atletas de alto nível se tornam ídolos, modelos de comportamento ou de aspiração de estilo de vida. A recusa do jogador brasileiro Vini Jr. de aceitar calado os xingamentos racistas e xenófobos dirigidos a ele na Espanha, por exemplo, reavivou a discussão sobre o racismo no esporte e obrigou o time espanhol a se retratar. Infelizmente, nem sempre o comportamento dos atletas vem na direção positiva, como nos casos de acusação de estupro e violência sexual que atingiram os jogadores Daniel Alves e Robinho.
Das inspirações estéticas à projeção de um ideal masculino de vencedor, do corpo sarado que supera limites e encanta as torcidas, que homem se desenha por meio do futebol? Segundo o antropólogo Roberto Da Matta, o futebol permite, por alguns momentos, uma fuga das limitações da vida. “Somos apenas isso ou aquilo, homens ou mulheres, jovens ou velhos, ricos ou pobres, burros ou inteligentes, malandros ou trouxas, estudiosos ou vadios… Mas através do nosso time de futebol temos a oportunidade de experimentar, regularmente, tanto a vitória que glorifica e exalta quanto a derrota que frustra e deprime”, argumenta em seu livro A bola corre mais que os homens: duas copas, trezes crônicas e três ensaios sobre futebol (Editora Rocco).
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Com todo esse faz de conta proporcionado pelo espetáculo no campo, o fascínio é algo que começa cedo, observa o crítico literário José Miguel Wisnik em Veneno remédio (Companhia das Letras). “A atração pelos jogos de bola é quase sempre uma marca de infância: há nesse movimento algo de uma fixação infantil, de uma ligação que advém, em geral, de sua participação precoce no processo identificatório dos sujeitos. Mas não se trata de uma fixação necessariamente regressiva. Pode-se dizer que funciona como um fio que liga a infância e a vida adulta sem que um corte inevitável as separe”, escreve Wisnik.
Que modelos de masculinidade seriam, portanto, sugeridos pela maneira como o futebol atua no imaginário dos homens brasileiros? Para o escritor Sérgio Rodrigues, a identificação do esporte com a masculinidade é universal, mas o Brasil tem uma participação peculiar nessa história. “É uma contribuição, digamos, menos rígida em termos de padrões de masculinidade”, diz Rodrigues, a exemplo do jogador bailarino. “É o jogador que dribla, que tem uma agilidade de corpo que um homem clássico não se permite. O futebol brasileiro traz umas coisas mais sinuosas, que em geral não eram bem-vistas ou não seriam bem-vistas pela visão masculina tradicional, que poderiam ser identificadas como uma coisa meio feminina ou afeminada.”
Para o jornalista Xico Sá, num time de futebol, está tudo que somos, o retrato perfeito da masculinidade brasileira, com todos os seus questionamentos, percalços e contradições. “O futebol mostra isso quando exige a tosqueira e, ao mesmo tempo, quer o jogador refinado. E isso vai para o lado das emoções também. Você vê que é no futebol que o macho brasileiro admite o choro.”
“O futebol é um grande território de você poder sentir. Você pode sentir muita raiva, muito ódio. Tem toda a relação do futebol com violência, mas também com o afeto: jogador ou torcedor, você chora, ri, abraça. Os homens se permitem sair do recalque do corpo masculino.” – Maria Homem, psicanalista
Para Milly Lacombe, jornalista e comentarista do portal UOL, as emoções extremadas, proporcionadas pela intensidade da paixão tanto daqueles que jogam como daqueles que torcem, chamam a atenção para um ponto importante da discussão. “O futebol é a arena que permite homens fazerem o que, fora dali, eles não teriam coragem: se beijar, se acarinhar, se abraçar, dizer coisas como ‘eu te amo’”, diz Lacombe. “Funciona como uma válvula de escape para a ideia sufocante de masculinidade que constrói homens e mulheres nessa sociedade.”
É uma ideia da qual a psicanalista Maria Homem compartilha. “O futebol é um grande território de você poder sentir. Você pode sentir muita raiva, muito ódio. Tem toda a relação do futebol com violência, mas também com o afeto: jogador ou torcedor, você chora, ri, abraça. Os homens se permitem sair do recalque do corpo masculino”, argumenta ela.
O rompimento desse recalque, acredita a psicanalista, atinge vários eixos, incluindo a fala. Contrariando o estereótipo de que “mulher fala muito, homem não fala nada”, a verborragia pode correr solta no meio masculino se o assunto for futebol. “Ele (o homem) ‘desrecalca’ inclusive a linguagem, o afeto, o corpo, e ao fazer isso também se permite estar no lugar antes associado à fragilidade feminina. Poder sentir, se machucar, se mostrar vulnerável, sofrer. Poder chorar porque perdeu ou se alegrar porque está feliz. Poder desejar e tudo isso que a gente atribuiria como fraqueza ou vulnerabilidade. Porque o grande macho está acima disso”, continua Homem.
No campo estético, o salvo-conduto do “grande macho” fica ainda mais evidente. Das chuteiras rosa aos mil cortes e cores de cabelo, da sobrancelha desenhada à depilação corporal, as tendências de moda e beleza masculinas não necessariamente nascem nos gramados, mas são os boleiros que dão a elas a chancela definitiva. Mais especificamente, validam a sua adoção no mundo heteronormativo – porque, apesar de todas as amarras rompidas e as emoções liberadas nos 90 minutos em campo, aspectos tóxicos e violentos da masculinidade se manifestam com força no mundo da bola.
“Encontramos no futebol os recursos para sermos pessoas melhores. Dizer isso parece uma contradição diante do que estamos testemunhando. Mas isso não é culpa do jogo, e sim dos homens.” – Milly Lacombe, jornalista
O componente homofóbico, por exemplo, foi lembrado por todos os entrevistados desta matéria. “A emoção do gol… Quando você faz um gol importante, não ouve o barulho da torcida e a torcida está explodindo. Você não vê nada na sua frente e tem um monte de coisa acontecendo”, fala o craque e comentarista Walter Casagrande Jr. “É um pico de prazer muito alto e você comemora do jeito que passa pela sua cabeça. Do jeito que a sua reação vem: abraça, beija todo mundo, pula em cima. Ao mesmo tempo, o futebol é um meio tão homofóbico que não permite a liberdade de um jogador se assumir gay. No Brasil, se o cara falar que é gay, não vai jogar em lugar nenhum.”
José Miguel Wisnik, no já citado Veneno remédio, diz que o futebol reúne os homens “numa atmosfera mista de cumplicidade e disputa”, uma vez que o adversário de agora pode ser o parceiro do jogo seguinte. Mas ele vai além: “Pode-se dizer também que é uma cultura difusamente homossexual, como todas aquelas, aliás, que operam num nicho libidinal masculino separado das mulheres. Mas essa curiosa disputa para ver quem mete mais gols no outro, acompanhada da suruba figurada das comemorações, explode bandeirosamente, de fato, em homossexualidade mal resolvida justamente quando se expressa em surtos homofóbicos”.
O machismo, por sua vez, aparece sempre que há a oportunidade. Mais recentemente, ele tem se manifestado contra os avanços femininos em campo. “São os machistas que estão resistindo ao futebol feminino. Começam a colocar defeito em como a menina corre ou como a goleira pega. Ou como não sabe cabecear. Eles resistem a aceitar que a mulher está sabendo jogar futebol tão bem quanto o homem”, diz Casagrande.
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O comentarista, ao contrário deles, vê nas mulheres uma maneira de arejar o esporte: “No futebol feminino, ainda não tem a violência das jogadoras. Tem plástica, tudo que tinha no futebol brasileiro dos anos 1950, 60, 70, 80. Tem a arte, tem as jogadas”.
A torcida é para que as equipes femininas consigam manter essa essência, apesar de um aspecto indissociável do futebol contemporâneo. “O modelo de negócio atual reforça o imperativo do lucro e transforma tudo em empresa. Nessa hora, o jogo vira o reduto de muita coisa ruim e errada”, argumenta Milly Lacombe.
Mas a jornalista não é só pessimismo. “O futebol encanta por ser, como se diz, uma metáfora da vida. A gente aprende a perder e a vencer. A gente entende que perder tem a ver com a alma, e vencer, com o ego”, diz ela. “Idealmente, encontramos no futebol os recursos para sermos pessoas melhores. Dizer isso parece uma contradição diante do que estamos testemunhando. Mas isso não é culpa do jogo, e sim dos homens.”
Esta reportagem foi publicada originalmente no volume 03 da ELLE Men. Para fazer sua assinatura ou comprar seu exemplar avulso, clique aqui.
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