Juntem-se a nós ou percam o jogo

Em Paris, quem quiser torcer pela seleção brasileira de futebol vai ter que vestir a camisa feminina.

Leila Pereira, presidente do Palmeiras, decidiu que abriria o ano de 2024 realizando uma coletiva exclusivamente para mulheres. A notícia correu como fogo em palha: minutos depois do aviso – feito apenas dois dias antes do evento –, o mundo do futebol já estava esperneando. Esperneava, diga-se, o mundo dos homens – enquanto o das mulheres se emocionava e vibrava.

Nesse trecho alguns de nossos colegas pediriam que fizéssemos a seguinte observação: “Nem todo homem”, a fim de deixar registrado que não foi todo homem que achou ruim. É sempre muito curioso que haja aqueles que não tenham vergonha de interromper um debate importante para chamar a atenção para si e dizer “nem todo homem”. O que a frase significa no fundo?

Significa: “Eu não sou esse cara aí não”. E, pela constatação, o interlocutor parece querer uma medalha ou um troféu. São pessoas que têm dificuldade em compreender que a generalização trata dos aspectos da masculinidade, e não de nomear o inimigo um a um, deixando de fora o nome daqueles que acreditam estarem ao nosso lado na batalha contra o machismo e a misoginia.

Precisamos dizer que não haverá troféu pelo mínimo da decência e pelo mínimo do bom senso. Porque o fato de você não ser exatamente “um cara assim” não quer dizer que deixe de tirar proveito de uma sociedade construída nesses moldes. Todo homem – absolutamente todo homem – se beneficia de uma sociedade machista, assim como toda pessoa branca se beneficia de uma sociedade racista. Precisamos nos implicar nessa estrutura conhecendo nossos lugares dentro dela para só depois tentar desmantelá-la – e sem cair na tentação vaidosa de ficar pedindo palmas e protagonismo.

Isso estabelecido, voltemos à coletiva de Leila Pereira. 

No meio do futebol, até os jornalistas mais jovens e ligados a causas feministas encontraram um caminho para reclamar da iniciativa de Leila. Por que só mulheres?, queriam saber. Por que nos impedir de entrar? Por que inverter o preconceito? Isso vai levar vocês aonde?

Nossos colegas não foram capazes de entender a importância do gesto, seu caráter simbólico, e muito menos pensar quantas vezes estiveram presentes em coletivas onde havia apenas homens e o fato não os incomodou.

Enquanto isso, no dia marcado, dentro da sala de imprensa do Palmeiras, o espaço estava tomado por jornalistas mulheres. E, embora estivéssemos ali como profissionais, era impossível conter a emoção. Olhávamos umas às outras e sorríamos. Mulheres que nunca haviam estado naquela sala, tão frequentada por homens, fizeram questão de deixar isso claro para Leila. A presidente queria saber por que era a primeira vez delas, e muitas diziam que os escalados para as coletivas eram sempre os homens da redação. Houve veículos que não mandaram ninguém nesse dia porque não tinham mulheres em suas equipes – e mesmo assim culparam Leila Pereira, e não a própria empresa, por não poderem enviar uma profissional à coletiva de uma das mais importantes lideranças do futebol atualmente.

Nesse dia, mulheres que mesmo já tendo estado naquele ambiente, e que ainda não haviam conseguido ser ouvidas, explicaram a Leila que nunca antes foram capazes de colocar uma pergunta para o entrevistado porque elas eram sempre uma ou duas no meio de dezenas de homens, e os homens tinham a prioridade de fala. Era visível que Leila Pereira estava também emocionada. A impressão era a de que nem mesmo a presidente tinha conhecimento da extensão das reclamações que agora chegavam até ela.

Havia, claro, uma ou duas jornalistas dispostas a desmascarar o que supunham ser uma hipocrisia no gesto da presidente do Palmeiras. Mulheres a serviço de seus chefes revoltados, que estavam ali para falar por eles. Foi movida por esse desejo ilusório de fazer parte do clube do Bolinha que uma das jornalistas a falar nesse dia quis saber quantas mulheres Leila Pereira empregava em suas empresas, incluindo o Palmeiras. Uma pergunta que pretendia soar inteligente e inescapável, mas que era tudo menos isso.

Será que a repórter que fez a pergunta já havia perguntado a mesma coisa para algum dirigente? Não. Nunca. Então por que perguntar a Leila? Porque, claro, Leila estava peitando o meio e convocando apenas mulheres para entrevistá-la. E isso ofendeu os chefes da jornalista. A profissional muito provavelmente não fazia ideia de que estava sendo usada e, infectada pela ilusão de que se fizesse a pergunta acabaria sendo incluída no time dos caras, se jogou no constrangimento sem pensar duas vezes.

A coletiva foi um divisor de águas para Leila e para o feminismo no futebol. Durante duas horas, fomos o centro das atenções. Uma iniciativa pioneira no mundo.

Desde então, Leila Pereira segue sua jornada de única mulher à frente de um clube da série A, uma das únicas no mundo a comandar um time de futebol, única a ser liderança no time mais vitorioso dos anos recentes na América. E o faz de forma resoluta e confiante.

Um tipo de confiança que nós, mulheres, somos desencorajadas a construir, especialmente se trabalhamos em ambientes muito masculinos. Um tipo de confiança que, no futebol, estamos conquistando a duras penas.

Quando, em 2023, o elenco feminino do Corinthians protestou contra a violência de gênero por ocasião da contratação do técnico Cuca, então condenado por ter participado do estupro de uma menina na Suíça (condenação depois anulada), o rebote foi imediato: isoladas dentro do próprio clube, perderam apoio de boa parte da diretoria e da integralidade do time masculino. Os centros de treinamento racharam, as jogadoras foram ameaçadas por torcedores, muitas tiveram que silenciar suas redes sociais e outras ficaram traumatizadas. É assim que o mundo reage a atos de coragem de mulheres: violentamente.

Quase um ano depois, Cuca, já em outro time, leu um depoimento forte em rede nacional de TV em que ele, pela primeira vez, se implicava como homem nos horrores de uma sociedade machista e misógina. Nunca antes um boleiro havia ido tão fundo nessa implicação. O que teria feito o treinador iniciar seu processo de transformação? A resposta é uma só: o movimento feminista. Nossas vozes, nossos protestos, nossos apelos, nosso pranto, nossa raça, nossa coragem.

Coragem que não nasceu hoje.

Durante 40 anos, o futebol de mulheres foi proibido no Brasil – entre 1941 e 1983. Proibido por lei. Mulheres que jogassem poderiam ser presas. Havia batidas policiais para flagrar as desobedientes. Há histórias de mulheres que cortavam seus cabelos para serem confundidas com homens e poderem jogar, de mulheres que saíam correndo dos campos quando a polícia chegava e de mulheres que, antes do começo de uma partida, cavavam buracos perto do campo onde elas poderiam pular caso a polícia chegasse. Teria sido mais fácil apenas não jogar e respeitar a lei? Talvez. Mas, quando agimos com esse tipo de ímpeto apaixonado, mesmo diante dos riscos em relação aos nossos corpos, estamos agindo por todas e não apenas em nosso próprio nome.

Claro que a valente polícia corria atrás de mulheres muito específicas: as periféricas, as negras, as masculinizadas. É assim em relação ao cumprimento de leis e ao privilégio daqueles que podem descumpri-las. O curioso é que a proibição ao futebol feminino tenha acontecido logo depois que dois times de mulheres, no dia 17 de maio de 1941, jogaram para 88 mil pessoas no recém-inaugurado estádio do Pacaembu, em São Paulo. O barulho e a festa incomodaram os conservadores. Até ali, o futebol feminino seguia seu caminho e indicava que iria prosperar. Havia mulheres ricas jogando, mulheres pobres, mulheres dos subúrbios, mulheres de todos os tipos se entregavam às delícias do futebol. Mas, no mesmo ano de 1941, uma lei impediria que outros jogos como o de 17 de maio acontecessem. As justificativas iam desde “não faz bem ao organismo feminino” até “impede a mulher de ter filho”, passando por “quem joga é prostituta ou lésbica”.

Quando a ciência não pôde mais fazer parte da farsa, e a ditadura brasileira deu lugar a um simulacro de democracia que dura até hoje, o veto foi derrubado e o futebol feminino passou a ser legal – mas não legítimo. 

Foi movida por coragem e arrojo que Sissi, uma jogadora fora-de-série que fez parte do que seria a primeira geração de mulheres profissionais a jogar bola no Brasil, enfrentou o machismo no meio. Para cumprir uma promessa, a camisa 10 raspou o cabelo e, apenas pelo gesto, foi vítima de todo tipo de preconceito, vindo, quem diria, do interior da instituição que deveria protegê-la: a CBF. O cabelo raspado então virou sua marca: foi o jeito que a craque encontrou de peitar os dirigentes misóginos. Afinal, mulher que é mulher tem que ter cabelo longo. E, como disse um dirigente à época, se quiser jogar bola pela seleção precisa ser bonita. O autor da frase, claro, não atendia aos mínimos padrões de beleza masculinos.

 

Agora, a seleção feminina está a caminho de Paris, onde disputará a Olimpíada. Onde estão os colegas do time masculino? Bem, não na França.

Agora, a seleção feminina está a caminho de Paris, onde disputará a Olimpíada. Onde estão os colegas do time masculino? Bem, não na França. A seleção dos homens não se classificou para os jogos. Quem quiser ver futebol brasileiro em Paris vai ter que ver as mulheres em campo. Temos chance de título? Eu diria que sim. É uma geração polivalente, treinada por um homem jovem que aprendeu a trabalhar com mulheres sem querer se impor sobre elas (Arthur Elias) e que pratica um futebol moderno e solidário. Décadas de desmoralizações e preconceitos ainda jogam sobre o elenco o desafio da autoestima e da confiança, coisas que podem melhorar conforme elas forem avançando no torneio.

“Ah, eu não gosto de futebol feminino”, dizem muitos, acreditando estarem exercendo seu direito à livre expressão. Alegam que o jogo é lento e desajeitado. Mas vejamos. O futebol masculino tem quase 140 anos de práticas e investimentos. O feminino começou a ser oficialmente jogado nas décadas de 1980 e 90. Ou seja: existe há pouco mais de 30 anos. Se querem comparar as duas modalidades, então talvez o justo fosse comparar o futebol feminino de hoje ao masculino de 1920. O que dizer dessa comparação? Já viram cenas de um jogo de homens nos anos 20? Pois.

Quanto à parte do “desajeitado”, é apenas um preconceito fácil de ser comprovado. Uma rápida passada pela rodada do Brasileirão fará o observador notar como o futebol masculino pode ser desajeitado. E também brilhante e emocionante. Assim como o feminino. 

Mas existe, sim, uma diferença evidente: o tamanho do investimento. Em 2022, a CBF destinou aproximadamente 200 milhões de reais à seleção masculina principal. Outros 70 milhões foram divididos entre o time feminino e sete seleções de base, segundo dados divulgados pelo próprio órgão. E 2022 foi um bom ano, tá? Antes disso, era bem pior.

O preconceito ainda é imenso. Embora a lei agora determine que todos os times da série A de futebol masculino devam ter também um time feminino, as mulheres seguem pagando pelos erros dos homens. 

O time masculino do Ceará, rebaixado em 2022, achou que, diante da necessidade de cortar custos, deveria então reduzir o time feminino ao mínimo. Os homens foram rebaixados e a pena foi imposta às mulheres. O time feminino, dilacerado em seu orçamento, passou a ser goleado jogo após jogo. 

Em 2024, o Atlético Mineiro, um dos clubes mais ricos do Brasil no que diz respeito ao masculino, deixou claro o que sente pelas mulheres que vestem a camisa alvinegra. Um dos dirigentes mineiros chegou a dizer que o futebol feminino não cabia nos planos. O time feminino, entregue ao descaso, foi rebaixado e terminou o campeonato com 1 ponto apenas. Não é a mesma camisa? Esses dirigentes amam a camisa ou amam os homens que vestem essa camisa?

Há, por outro lado, algumas histórias de redenção, como a que foi escrita pelo Corinthians, o time feminino de maior sucesso das Américas. 

“O sucesso do Corinthians aconteceu porque tivemos uma presidência na época que acreditou no futebol feminino”, disse Analu Tomé, conselheira trienal do Sport Club Corinthians Paulista e cofundadora do Movimento Toda Poderosa Corinthiana. 

“Estamos falando de uma administração que criou uma diretoria para o futebol feminino. O futebol feminino poderia ter ficado com os demais esportes terrestres, mas essa administração colocou ali uma diretora, a Cris Gambaré, e deu total liberdade para ela trabalhar. Tivemos um técnico que ficou quase dez anos com a gente. Tudo isso fez a gente sair na frente dos demais. Montamos um time de ponta, trabalhamos o marketing, tivemos liberdade. Foi um trabalho de equipe e de uma diretoria que nos deu respaldo”, diz.

Analu acompanha os jogos do time feminino do Corinthians desde o dia um e sabe como a construção dessa popularidade está se dando. “Eu já vi jogos com meia dúzia de pessoas num estádio que comportava 40 mil. Hoje, quando vejo o estádio lotado, me emociono. No começo, a gente colocava entrada gratuita e nem assim as pessoas iam. Agora temos 30 mil pagantes. O Corinthians feminino nunca desistiu. Elas têm um respeito à camisa que hoje a gente vê faltar a times masculinos. É muito amor. Mas é um trabalho de formiguinha. O que sabemos é que estamos no caminho certo.” 

Ela aponta caminhos para que a construção siga sendo efetivada: colocar os jogos em horários acessíveis ao público e às atletas, e não tarde da noite ou debaixo de um sol escaldante, campanhas de marketing para atrair novos torcedores, aumentar as premiações, hoje irrisórias se comparadas ao que recebem os elencos masculinos, e investir em cidades pequenas para que todas tenham times femininos. “A CBF tem muito trabalho pela frente se estiver a fim de desenvolver o futebol feminino”, conclui Analu.

Mariana Spinelli, jornalista dos canais ESPN, chama a atenção para um aspecto importante: “Os clubes e as SAFs (Sociedades Anônimas de Futebol) ainda são comandados por homens mais velhos e brancos com uma visão de mundo e de futebol que, por mais moderna que seja, tem um traço de tradicionalidade que é rígido. Precisamos de um novo jeito de entender o negócio”.  

Spinelli lembra que, das três camisas mais vendidas do Barcelona em temporada recente, duas são as de Alexia Putellas e de Aiatana Bonmatí, jogadoras do feminino. Se os envolvidos olham para o mercado e buscam uma compreensão a respeito de demandas reprimidas, coisas inovadoras podem acontecer. “O Arsenal feminino vai alocar todos os seus jogos da próxima temporada no Emirates Stadium, o estádio onde jogam os homens”, diz Spinelli. A iniciativa, associada a uma prática razoável de preços de ingressos, vai aumentar sensivelmente a média de público.   

Enquanto no Brasil os resultados ruins do masculino punem o time feminino, na Europa Spinelli diz que é o oposto: “O Barcelona masculino está em fase ruim e o feminino foi entendido como um caminho para dar alegria à torcida. Os estádios estão lotados, elas são capa de jornal etc. Pensar, estudar e entender o mercado pede duas coisas: interesse e competência, e isso falta para a maior parte dos gestores no Brasil”. Analu Tomé segue por essa linha e avisa: “A CBF tem muito trabalho pela frente se estiver a fim de desenvolver o futebol feminino”.

Sim, é assim que se constrói uma audiência. Foi assim nos anos 1900 com o masculino, um esporte que não tinha nenhum apelo nacional, e que hoje é essa força. O futebol feminino precisa desse investimento. E precisa ser visto com todas as suas complexidades e especificidades. Porque ele tem problemas maiores a serem enfrentados.

O time feminino do Santos, por exemplo. 

O elenco santista fez 19 denúncias de assédio anônimas e registradas com detalhes em cartas contra o então treinador, Kleiton Lima. A diretoria o afastou do cargo para, meses depois, alegando que nada havia sido provado, reintegrá-lo. Não foi provado talvez porque não tenha sido formalmente investigado. Mas isso não importou para a diretoria.

Os demais times femininos, revoltados com a postura da diretoria santista, iniciaram uma série de protestos antes de seus jogos, levando as mãos à boca como quem está impedido de falar. O treinador foi demitido finalmente. Mas a que custo? Os homens sabem quanto nos custa articular esse tipo de resistência enquanto precisamos, ao mesmo tempo, seguir com as tarefas do dia a dia? Trabalhar, cuidar da casa, pagar as contas, cuidar da saúde etc., etc., etc.

Agora, com a queda do Santos masculino para a série B e com o escândalo das denúncias no feminino, o time das mulheres está esquecido e enfraquecido. Quando ousamos falar, o rebote é forte.

Mesmo assim, a gente segue fazendo história e criando memórias. Um direito que, por décadas, nos foi negado.

“Acho que, em termos museológicos, temos antes de tudo a missão de pesquisar, registrar, preservar e divulgar a história de resistência do futebol feminino no Brasil e no mundo. História essa que muita gente desconhece e que fala muito mais sobre o exercício do poder sobre os corpos e a existência das mulheres do que sobre a modalidade em si”, diz Marília Bonas, diretora técnica do Museu do Futebol. “É importante, nesse contexto, garantir a presença das múltiplas vozes dessa história. O machismo institucionalizado, normalizado e naturalizado – no futebol e em tudo – continua, mas as estratégias para resistir, lutar e transformar esse cenário foram e são múltiplas, porque somos diversas e isso nos afeta de maneiras diferentes. Os trabalhos da memória têm de estar a serviço da ação e conhecer, reconhecer e celebrar esses caminhos diversos fortalece nossa luta por igualdade”, completa.

Ser mulher e gostar de futebol é gostar de um esporte que nos detesta. Seguimos mesmo sabendo que estamos dentro de uma relação abusiva. Seguimos porque temos umas às outras. Seguimos porque, antes de nós, houve mulheres que lutaram, correram da polícia e se recusaram a jogar a toalha. Seguimos em nome de todas aquelas que ainda virão. Seguimos no embalo de Emicida, que canta para o seu povo um verso que podemos emprestar para o movimento feminista: “Tudo, tudo, tudo, tudo, tudo o que nóis tem é nóis”.