Em 1998, o campeonato Mundial de Vôlei aconteceu no Japão, e a Seleção Feminina do Brasil foi classificada nas eliminatórias. Entre discussões sobre a escalação do time e as possibilidades de vitória, outra pauta veio à tona: o “É o Tchan!” Quem pensou no grupo baiano acertou. A referência é essa mesmo, mas nada tem a ver com o gogó de Compadre Washington. Trata-se do apelido dado ao uniforme das atletas: um macaquinho justo, cujo comprimento era acima das coxas.
Divulgado poucos meses antes, o regimento determinava que os uniformes usados em quadra fossem “justos e aderentes”. Esse é um dos primeiros episódios históricos e emblemáticos quando o assunto é esporte e sexismo. “Estamos parecendo dançarinas”, declarou, à época, a atacante brasileira Virna Dias. “Se era para ofender, deveriam fazer elas jogarem peladas de uma vez. É apelativo”, declarou o então técnico da seleção, Bernardo Rezende. Além de se sentirem sexualizadas, as jogadoras sinalizaram que as roupas dificultavam a performance e a movimentação. E havia um plus: o tecido era transparente.
As seleções de Bulgária, Croácia, Itália e Rússia tiveram problemas similares e, como a brasileira, decidiram não usar as peças durante os jogos. Todas foram multadas pelo comitê internacional. A justificativa? “O esporte precisa ter uma imagem atrativa”, de acordo com nota oficial. Os times masculinos foram autorizados a jogar de camisa e calções largos.
Adriana Samuel ao lado das colegas Mônica, Jacqueline e Sandra, no pódio dos Jogos de Atlanta, em 1996. Foto: Reprodução
Vinte e seis anos depois, a discussão em torno dos trajes de esportes femininos evoluiu, mas não o suficiente. Isso, claro, não tem apenas a ver com as roupas: é reflexo de um panorama amplo de como a sociedade percebe e trata as mulheres, especialmente no contexto esportivo – desde a disparidade salarial até a dificuldade em encontrar patrocinadores, que preferem apoiar atletas cujo padrão estético vende mais. O assédio é cotidiano, inclusive, por parte de quem deveria zelar pelas esportistas.
No ano passado, o então presidente da Federação Espanhola de Futebol, Luis Rubiales, deu um beijo forçado na jogadora Jenni Hermoso. O episódio aconteceu durante a cerimônia de entrega da medalha de ouro para a equipe campeã da Copa do Mundo Feminina. Rubiales foi demitido e processado pela Justiça espanhola por agressão sexual e coação. O julgamento acontecerá em 2025.
“Falar sobre normas sociais e expectativas de gênero com recorte em mulheres no esporte demandaria uma tese de doutorado”, fala a comunicadora e atleta Nathalia Fuzaro. “Antes de mais nada, temos que entender que os uniformes são roupas que os atletas profissionais usam para trabalhar. Ou seja, elas optam de acordo com a funcionalidade e o conforto, e não só pela estética”, continua.
Atletas de basquete vestem macaquinho amarelo e senta na quadra Jogadoras da seleção brasileira durante intervalo de treinamento nos Jogos Olímpicos de Sydney Foto: Divulgação COB | Marcos André Pinto
Junto à também atleta e comunicadora Natália Leão, ela lidera a Inspira e Transpira, uma plataforma de apoio a mulheres que praticam esportes, fundada em 2020. “Já tivemos relatos de atletas que se sentiram desconfortáveis por estar de sunquíni, como a maratonista Adriana Aparecida da Silva, ou com frio, como a jogadora de vôlei de praia Maria Elisa Antonelli.”
O início de tudo
De acordo com o livro As roupas nas práticas corporais e esportivas: beleza, conforto e eficiência, de Carmen Lucia Soares, professora de educação física da Unicamp, as normas sobre a padronização das vestimentas só surgiram em 1920, quando os esportes estavam começando a ser organizados da forma que conhecemos hoje. “Naquela época, os uniformes tinham três objetivos: proteger o corpo, garantir a eficácia e evidenciar a beleza dos movimentos”, destaca a autora.
A presença das mulheres nos esportes, contudo, veio antes disso, por volta de 1900. Os primeiros Jogos Olímpicos modernos aconteceram em 1896 (leia mais em “Pequeno almanaque do Olimpo”) e, no começo, era fundamental que os trajes fossem recatados e o corpo não estivesse em evidência. O encurtamento das roupas começou em 1910, quando as jogadoras de tênis (um dos esportes mais praticados por mulheres na época) começaram a usar saias mais curtas por conforto e mobilidade. A partir daí, a sexualização das atletas iniciou uma crescente que não parou e ganhou até um nome para chamar de seu: “femaleapologetic”, ou “compensação feminina”.
Tenista inglesa Charlotte Cooper nos Jogos Olímpicos de Paris, de 1900. Foto: Acervo Museu dos Jogos Olímpicos
Cunhado em 1979 pela professora de educação física estadunidense Emily Wughalter, o termo resume a teoria de que as mulheres esportistas precisavam constantemente recompensar os homens por ocupar um espaço dominado por eles. Ou seja: já que elas estavam em território masculino, no mínimo deveriam ser atraentes e extremamente femininas.
Para além da objetificação do corpo, o tabu em torno da lesbianidade também fortaleceu o conceito. Era preciso performar a heteronormatividade e afastar a ideia de que as atletas eram homossexuais – mesmo que algumas delas realmente fossem.
Avanços arrastados
Apesar das polêmicas e dos protestos ao longo dos anos, poucas vezes o debate em torno dos uniformes femininos avançou de fato. Sobram barulhos midiáticos e notas de rodapé, e faltam mudanças efetivas nas regulações. As lideranças institucionais – compostas de homens, em sua maioria – parecem não compreender a seriedade da questão.
Os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Paris, por exemplo, só começam no dia 26 de julho e já viraram palco de denúncias. Em abril, um maiô de atletismo apresentado pela Nike para as competições recebeu diversas críticas, principalmente pela modelagem cavada, que dificulta os movimentos. Atletas dos EUA, como a ex-campeã Lauren Fleshman e as olímpicas Queen Harrison Claye e Colleen Quigley, se manifestaram contra a peça, que julgaram sexista.
Ginasta alemã veste collant cobrindo o corpo todo como protesto contra a sexualização do corpo na modalidade. Foto: Getty Images
Nas Olimpíadas de Tóquio, realizadas em 2021 por causa da pandemia, as ginastas holandesas protestaram silenciosamente contra a sexualização ao se apresentarem usando collants de mangas longas que também cobriam as pernas. No mesmo ano, a Seleção Feminina de Handebol de Praia da Noruega foi multada por usar top e short, em vez do tradicional biquíni, durante o Campeonato Europeu.
Objetificação histórica
Por muito tempo, a cobertura esportiva dos eventos femininos girava em torno da aparência das atletas. Elogiar velocidade em campo, preparação física ou desempenho em quadra? Jamais. A capacidade que o corpo feminino tinha de atrair olhares era mais interessante do que qualquer aptidão técnica. Eram filmagens cheias de apelo sexual, comentadas por profissionais homens, seguidas das “Galeria das Musas” dos principais portais de notícias. Apenas mulheres julgadas atraentes eram catalogadas… Era a garantia certa de audiência.
“Nesse tipo de cobertura, que estava longe de ser jornalística, pouco se falava sobre a trajetória e as conquistas das mulheres. O único foco era a objetificação de seus corpos. Com a chegada de mais mulheres nas redações esportivas e com a conscientização maior da população em torno de temas feministas, o enfoque das reportagens mudou”, comenta Roberta Cardoso, cofundadora do Dibradoras, um canal de mídia e produtora de conteúdo especializado em protagonismo feminino no esporte. “Os Jogos Olímpicos existem há mais de 100 anos e as mulheres foram, inclusive, proibidas de competir. O que fazia sentido anos atrás hoje não se encaixa mais”, comenta ela.
Pluralidade em jogo
Estudos recentes, como o da professora canadense Elizabeth Hardy, publicado após os Jogos Olímpicos de 2016, atestam que atletas que se adequam ao ideal tradicional de feminilidade têm mais visibilidade e oportunidades de patrocínio. Trata-se de mais um exemplo da contínua influência dos estereótipos de gênero no esporte. Embora não seja exatamente um “privilégio” (privilegiados mesmo são os homens), isso significa que algumas estão em posições mais vulneráveis.
“Já tive situações de ter uniformes que subiam o tempo inteiro. Uma vez estávamos em quadra e o juiz parou o jogo para pedir para todas as jogadoras abaixarem os shorts. São momentos constrangedores porque não fomos nós que escolhemos que a peça fosse tão curta. Sofremos consequências de decisões que não tomamos”, lembra a curadora e atleta Paula Saul.
A atleta Paula Saul. Foto: Divulgação
Jogadora de vôlei desde os 13 anos, Paula começou no esporte porque queria se sentir parte de um grupo maior. No entanto, bastaram algumas aulas para perceber que sua trajetória não seria tão simples. “Tinha vontade de pertencer a algum lugar, mas sempre sofri muita repreensão dos meus técnicos e colegas de time por ser uma pessoa afeminada. Na época, não entendia o que significava ser uma pessoa trans”, relembra.
Hoje aos 31, Paula é jogadora do Angels Volley, um coletivo voltado para atletas LGBTQIAPN+ que existe há 16 anos. Em 2018, a iniciativa começou a desenvolver equipes femininas de mulheres trans e travestis.
“As pessoas encarregadas de tomar decisões quase sempre são homens. Eles não estão no nosso corpo e não buscam entender as necessidades que temos. Isso precisa mudar. Precisamos de lugares seguros para praticar os esportes que amamos.”