Eu e minha professora de pilates compartilhamos a mesma trajetória em relação a smartwatches: fomos presenteadas com um por pessoas queridas em nossos aniversários e, desde então, temos tentado incluir o objeto em nossa vida sem muito sucesso. Essa jornada compartilhada é relembrada semanalmente por ela, cerca de 20 minutos após o início de nossas aulas, quando, com um sorriso piadista, ela me pergunta se lembrei de “contar” para o relógio sobre o início da minha atividade física. Obviamente, a resposta sou eu correndo para acioná-lo já tendo perdido minutos preciosos de registro — e depois esquecendo de pausá-lo, gerando assim uma irreal maratona de mais ou menos seis horas de pilates toda quarta-feira.
Nada disso acaba sendo um grande problema já que, por mais que eu me esforce para manter meus registros em dia, são pouquíssimas as vezes em que volto para olhá-los. Sigo no esforço porque sinto que ter um smartwatch e não cadastrar a única atividade física que faço seria um enorme desperdício — do relógio e da atividade. É como se sua mera existência na minha vida me estimulasse (ou seria coagisse?) a performar para ele, um vício semelhante ao de aplicativos de tarefas que oferecem um prazer visual imediato ao deixarmos tudo completo e organizado.
Acredito que nessa nossa intensa relação com gadgets de tracking esteja embutida também certa esperança de recompensa. Imaginamos que, ao usar nossos relógios de forma constante e disciplinada, deixando-o rastrear nossos passos, batimentos cardíacos e horas de repouso, eventualmente poderemos desfrutar de uma experiência satisfatória semelhante à de ler um diário antigo. Por meio dos registros, poderemos ver, por exemplo, épocas de sono desregulado que nos lembrarão do que estava acontecendo em nossa vida naquele momento. Mais atrativo ainda é o vislumbre de uma tela recheada de índices positivos.
“Quantified self” é o termo que melhor define essa dinâmica. Cunhado em 2007 por jornalistas da Wired, de acordo com seu verbete na Wikipedia, ele se refere tanto ao fenômeno cultural de autorrastreamento com tecnologia, frequentemente com o objetivo de melhorar o desempenho físico, mental e emocional, quanto a uma comunidade de usuários e criadores de ferramentas que compartilham o interesse pelo “autoconhecimento por meio de números”.
Por muito tempo, fui obcecada por essas ferramentas. Tudo começou com a moda do bullet journal físico e sua página de “habit trackers” e logo escalou para o Notion e outros apps de acompanhamento, que iam de desafios de quantidade de livros a serem lidos em um ano a contagem de lances de escada percorridos em um dia, passando por metas de ingestão de água e até planilhas dedicadas a acompanhar o desenvolvimento dos meus personagens no The Sims. Acreditando que estava cuidando da minha saúde física e mental, hoje acho que era mais sobre me sentir em um videogame da minha própria vida, sempre em busca de pequenas recompensas. Nele, eu me via desafiada a ganhar o tempo todo e fazia do meu celular e relógio os juízes da minha performance.
O que está rolando aqui dentro?
Focados nesse nosso desejo por registros, andam surgindo produtos tecnológicos ousados, como o novíssimo Vitals da Apple (anunciado na última WWDC como um app capaz de nos proporcionar um conhecimento mais profundo de nossos próprios corpos) e o Levels, um dos monitores contínuos de glicose mais comentados dos últimos tempos. Velhos conhecidos de pessoas diabéticas, eles agora aparecem turbinados por aplicativos robustos e passam a ser ofertados a qualquer um que queira “otimizar sua saúde” sem necessariamente possuir indicação médica para adquiri-los. Ao “instalar” um exemplar no seu braço, você passa a receber informações quase que ao vivo sobre como os alimentos ingeridos impactam o seu organismo — e você pode até dar uma força extra ao aparelho, subindo imagens de suas refeições e outras atividades para depois ganhar de presente essa base rica de memórias (ou paranoias).
Como alguém interessada em tecnologia e sempre preocupada em ficar doente, sinto que sou o alvo ideal dessas empresas. No entanto, o excesso de monitoramento, em vez de me deixar empolgada, tem me gerado desconforto por dois motivos principais. Vamos a eles.
Primeiro, temos a questão da privacidade: podemos mesmo confiar nessas empresas e em seus termos de consentimento para lidar com dados tão específicos e sensíveis sobre nós? Não quero soar conspiracionista, mas estamos vendo cada vez mais notícias de planos de saúde sendo cancelados de forma incompreensível pelas operadoras nacionais. Acho importante considerarmos o que pode estar em jogo com tantas informações sobre nossos hábitos e as reações de nossos corpos a determinados estímulos.
Em segundo lugar, quão precisos realmente são esses sensores? Entendo que eles ajudam a identificar tendências, mas com o fácil acesso a esses dispositivos, e sem formação médica adequada, prevejo uma multidão de pessoas (incluindo eu) viciadas e panicadas pelos números que surgirem em tempo real sobre seus níveis de glicose.
Hoje a superpreocupação com esses picos de glicose já pode ser observada, por exemplo, no sucesso da pesquisadora francesa Jessie Inchauspé, conhecida no Instagram como @glucosegoddess. Com comparações de alimentos em gráficos coloridos e cortes de vídeos com falas impactantes, seu conteúdo costuma se espalhar facilmente pelas redes sociais. Ela usa um monitor de glicose para exemplificar seus testes, mas a sensação que me passa é que sua vida passou a girar em torno do monitor, em vez de ter o monitor servindo às suas necessidades.
E é isso o que mais me angustia nesses tipos de lançamento: sua mera existência já parece nos sugerir que há algo errado que deve ser acompanhado e melhorado. E isso, claro, responde à lógica da propaganda, como o autor Mark Manson resumiu no texto “How your insecurity is bought and sold”: “As pessoas só compram algo se acreditarem que isso resolverá um problema. Portanto, se você quer vender mais coisas do que problemas, você precisa encorajar as pessoas a acreditarem que existem problemas onde não existem”.
Tudo isso me lembra os apps de corrida que mostram nosso “VO₂ max”, a taxa máxima de oxigênio que nosso corpo usa durante o exercício. Esse é um indicador útil para analisar o condicionamento físico de um atleta de alto rendimento, mas também tem virado um termo adotado pelo vocabulário de não-atletas, assim como a frequência cardíaca em repouso, o que me parece mais uma nota geral para classificar seres humanos. Será que é possível, em um contexto em que a produtividade e o “aperfeiçoamento” do ser é desproporcionalmente valorizado, aproveitar os benefícios dessas inovações sem que nossos objetivos comecem a ser satisfazer os gadgets?
No fim, somos naturalmente atraídos por medidas quantitativas porque elas são empíricas e fáceis de comparar. Como seres sociais, competimos e tememos o desconhecido, então essa preferência faz sentido. No entanto, a tecnologia, com suas limitações em captar nuances, nos empurra a objetificar tudo: contamos amigos, verificamos curtidas e rotulamos personalidades. Hoje, olhar para os dados é mais gratificante do que confiar na intuição ou sentimento.
Já percebeu como aqueles esportes que fazíamos na educação física, e que eram tão importantes para nossa conexão social, agora parecem trabalhosos demais para serem encaixados na nossa atribulada rotina? — afinal, é preciso interagir substancialmente com os outros para jogar uma partida de vôlei, por exemplo, e entender que não é possível controlar as pessoas e suas expectativas. Claro, ainda tem muita gente jogando futebol com os amigos em vários lugares, e tenho notado que anda crescendo o número de pessoas ao meu redor ativamente buscando por atividades físicas mais coletivas. No entanto, não deixa de ser chocante ver como os posts nas redes sociais parecem influenciar a escolha dos exercícios, tornando-os cada vez mais solitários, mas com fotos mais visualmente controladas: fitcheck na academia, pace de corrida com música no fone e a pose de ioga perfeita.
Se você acompanha meus textos por aqui, já deve ter reparado que gosto de refletir sobre a tecnologia não apenas pela lente do que ganhamos, mas também pela do que podemos estar perdendo. Por exemplo, aplicativos como o Strava facilitam a vida ao nos permitir salvar a rota da nossa última corrida para acessá-la com rapidez na próxima corrida, mas será que, com isso, não se perde a chance de descobrir novos caminhos?
O que quero dizer é que, assim como não precisamos usar IA para tudo só porque ela está disponível, também poderíamos nos beneficiar ao confiar mais na nossa intuição e experiência direta quando o assunto é atividade física — mesmo que você acabe trackeando os resultados do experimento depois.