Quem é Ailton Krenak, o primeiro indígena eleito para a Academia Brasileira de Letras

Em entrevista à ELLE, o escritor e líder indígena põe em xeque os valores da sociedade de consumo: "Podemos criar mundos mais prazerosos, mundos para celebrar a vida".


Ailton Krenak



Nesta quinta-feira (5.10), o ambientalista, escritor e filósofo Ailton Krenak foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Krenak, que acaba de completar 70 anos, é o primeiro indígena a ocupar uma cadeira na instituição – a de número 5, que tem como patrono o escritou Bernardo Guimarães e já teve como titulares o médico Oswaldo Cruz, a escritora Raquel de Queiroz e o historiador José Murilo de Carvalho. O ambientalista concorreu ao posto com o também líder indígena Daniel Munduruku e a historiadora Mary Del Priore, recebendo 23 dos 39 votos da eleição.

Confira, a seguir, a entrevista concedida por Ailton Krenak à repórter Ísis Vergílio, publicada no Volume 2 da ELLE impressa, em dezembro de 2020.

Ailton Krenak: do outro lado do rio

Em setembro, a União Brasileira de Escritores concedeu a Ailton Krenak o Prêmio Juca Pato de Intelectual do Ano. Durante a pandemia, seus livros O amanhã não está à venda, A vida não é útil e, principalmente, Ideias para adiar o fim do mundo estiveram na cabeceira de muita gente. Traduzidos para várias línguas, os títulos figuraram por várias semanas na lista de mais vendidos no Brasil. Aos 67 anos, o escritor, filósofo, ambientalista e líder indígena se diz contente por saber que suas ideias estão se espalhando, mas recebeu a notícia da premiação sem grande alarde. “Sou o cara que eu conheço, a minha mãe me conhece, meus irmão me conhecem. Ninguém notou nenhuma mudança muito significativa em mim por eu ter virado o intelectual do ano”, disse Krenak em entrevista à ELLE, realizada por Zoom.

Desde o início da crise sanitária provocada pelo novo coronavírus, o ambientalista permanece isolado com 130 famílias na reserva Krenak, em Minas Gerais. Próxima do município de Resplendor, ela é banhada pelo Rio Doce, que há cinco anos foi atingido pela lama com rejeitos de minério de ferro da Samarco, após o rompimento da barragem de Mariana. Os efeitos desse desastre ambiental continuam tristemente presentes no dia a dia dos Krenak. Chamado pelos indígenas de Watu, o Rio Doce está inutilizado. Não se pode nadar nem pescar nele, muito menos beber da sua água. Todo o abastecimento da reserva depende de caminhões-pipa. “O caminhão entra todo dia lá, abastece caixas de 2 mil litros de água e vai embora”, relata Krenak.

Essa situação traz para a comunidade prejuízos que vão muito além da ordem prática. “Esse rio, para nós, é o nosso avô. Para nós, foi um parente, uma entidade muito importante na nossa cosmovisão que foi atingida”, diz o escritor. “As pessoas mais idosas adoeceram. Algumas morreram ao longo desses cinco anos, e nós sabemos que elas morreram de tristeza.” Ele elogia a atuação do Ministério Público nos processos para punir os responsáveis pelo desastre, mas, por enquanto, a situação das famílias indígenas só piora, avalia. Nos livros lançados pela Companhia das Letras, adaptados de palestras, lives e entrevistas realizadas pelo autor, Krenak convida a repensar o mundo, o consumo desenfreado e a nossa relação com a natureza numa tentativa de chegar a uma compreensão mais ampla sobre esse organismo vivo e pulsante chamado Terra.

E não é de hoje que ele age para dar um chacoalhão no pensamento colonialista. A sua fala em 1987 na Assembleia Constituinte virou um marco e foi considerada fundamental para garantir a inclusão do capítulo que trata dos direitos indígenas na Constituição brasileira. Em meio ao discurso, ele pintou o rosto com tinta de jenipapo, como uma forma de chamar a atenção para a importância de criar políticas afirmativas para os povos originários. Avô de uma menina de 2 anos, ele conta que a netinha já está impaciente com o isolamento imposto pela pandemia. “Ela é muito incrível, bagunceira. Já fez todas as críticas contra esse isolamento e pergunta para a mamãe dela: ‘Como é que foi a sua infância?'”, relata. Krenak torce para que o saldo desse período, em que as pessoas tiveram “um pouquinho mais de tempo para se observarem”, seja positivo. “Que quando a gente possa transpor esse período de isolamento, as pessoas olhem umas às outras na rua sem tanta máscara”, diz. A seguir, leia os principais trechos da entrevista que o filósofo deu à ELLE.

Como está a situação da comunidade que vive na reserva hoje, com o isolamento imposto pela pandemia?

Essa reserva tem uma situação de isolamento histórico, porque ela é na zona rural. As pequenas nascentes já vinham sofrendo uma erosão muito grande nos últimos 30, 40 anos e agora, com o uso impedido da água do rio, a gente cai numa situação de deserto. Se ninguém levar água lá para dentro, a gente morre de sede. Quer dizer, estamos refugiados dentro do nosso próprio território. Não param de rodar caminhão e trator lá dentro a pretexto e socorrer a gente. Eles pioram o nosso cotidiano, mas dizem que estão nos ajudando. O MP pegou no pé das empresas e disse que quer que elas abram a conta para mostrar com o que que estão gastando tanto, se a situação de dano persiste cinco anos depois do desastre. As empresas dizem que estão gastando milhões com as vítimas, tanto de Brumadinho quanto de Mariana. Ora, então por que nossa vida continua piorando? Será que estão gastando para piorar a vida da gente?

Como a luta indígena evoluiu desde o seu discurso na Assembleia Constituinte, em 1987?

Nós fomos para a Constituinte com a consciência de que a gente era invisível. Pintei meu rosto de preto como sinal de luto, mas também de disposição para o combate, para a guerra. Nós conseguimos avançar, incluir uma questão que até hoje é um espinho no texto da Constituição – tanto que os fascistas não o engolem, o espinho está atravessado na garganta deles. Escrevemos na Constituição o sentido que a terra tem para nós, o sentido não admitido por essa mentalidade do capitalismo. Essa gente que está no governo agora diz que os índios não têm direitos, que não usam a riqueza de seus territórios, que atrapalham o progresso e que têm que se engajar na vida consumista. Têm que vender suas terras, negociar sua floresta, seu subsolo. Ora, o povo indígena nunca entendeu a terra como um armazém aonde você vai retirar dinheiro. O povo indigena chama a terra de “nossa mãe”. É a Mãe Terra. Para essa gente, a terra é mercadoria. Mas não adianta querer nos apagar. Nós vamos ficar vivos. É isso.


Discurso de Ailton Krenak na Assembleia Nacional Constituinte, em 1987.

www.youtube.com / Karioka multimedia

Qual a importância da ancestralidade? O que é, afinal, a ancestralidade?

A ancestralidade é a vida, mesmo. É uma experiência tão maravilhosa que só tem paralelo com a experiência mística das religiões. Por exemplo, um menino que estava quebrando o pau por aí, correndo o risco de tomar uns tiros e, de repente, encontra a mãe de santo dele, vai ao terreiro, sai fora da rota do perigo, vira e fala: “A minha ancestralidade me protege”. Está relacionado com retomar o sentido de ser que não se encerra no sujeito pessoal, na coisa do ego. Se relaciona com essa espiral de tempo e de seres que nos antecederam. Muitos povos indígenas daqui entendem que, quando seu avô ou seu pai morrem, eles se tornam seres encantados. Sair dessa vida é um encantamento, diferente da ideia de que sair dessa vida é morrer. Então, a ancestralidade é uma transcendência. É o maravilhamento da vida. É sair da experiência de sobrevivência para a experiência de estar vivo. É a vida como uma dança cósmica. E a gente a troca por uma coreografia ridícula de consumir, de medir o tempo, fundar uma cidade, criar uma empresa, ser dono do Google, do Facebook. Diante da ancestralidade, tudo isso é brincadeira de criança.

O garimpo é responsável pela destruição de vários territórios indígenas. Há um debate, sobretudo na extrema direita, que diz que a solução seria legalizar o garimpo nas reservas. Qual a sua reflexão sobre o assunto?

É uma manipulação alguém dizer que legalizar o garimpo em terras indígenas seria uma maneira de nos proteger. É mais ou menos como dizer que distribuir armas é uma boa maneira de proteger a vida das pessoas. Quem argumenta nesse sentido não está interessado em criar outra situação. A outra situação era respeitar esses territórios na sua alteridade. Os territórios habitados por nossas aldeias, nossas famílias, são patrimônio da União, não são propriedade privada. Isso está lá na Constituição. Os brancos que são loucos para ter propriedade. Eles mataram um monte de gente para virarem dono dessa terra e têm a cara de pau de perguntar que contribuição os índios deram ao Brasil. Eu costumo dizer: a gente deu o Brasil inteiro. Está faltando mais alguma coisa? Vocês querem que a gente dê a Argentina para vocês? Vai lá e invade a Argentina. Então, são cínicos. Eu não dialogo com esse tipo de pensamento cretino.

A quem você atribui essa queda livre nesse abismo de negacionismo e retrocesso que estamos vivendo?

O poeta Carlos Drummond de Andrade, de quem eu gosto muito, tem este poema, “O homem e suas viagens”. Uma maneira de interpretar o poema seria entender a ideia da humanidade: ela experimentou um voo alto, quis ir para outros lugares, quase decolou da Terra para outro planeta, mas sofreu uma espécie de exaustão. Esse negacionismo pode ter tudo a ver com uma espécie de exaustão. Essa ideia positivista, o progresso, é como se a gente tivesse chapado de ciência, o que é muito perigoso. Em vez de você pensar de uma maneira luminosa, pensa de uma maneira obscura, negando a perspectiva de outros mundos. Quando Drummond diz que a grande viagem do homem é para dentro de si, ele está dizendo que é olhando para dentro de nós que vamos buscar conhecimento, sabedoria e sensibilidade. E talvez seja preciso pôr em questão toda a matriz de signos e imagens que constitui essa moderna humanidade. O antropocentrismo, a excelência do homem como única coisa que pensa, esse equívoco, ele instaura uma lógica de mundo que está se exaurindo. O capitalismo mercantiliza tudo, elimina o afeto. São poucos os pensadores do Ocidente que convocam a ideia do afeto como uma potência de criação de mundo. A maioria nega a perspectiva dos afetos e invoca muito a ideia da ordem. Ordem, ordem e progresso. E não tem coisa mais fascista do que ordem e progresso. Os fascistas adoram isso.

Como as pessoas poderiam ter uma relação melhor com o tempo?

A realidade é uma criação e o tempo é uma invenção. Então, nós podemos criar outros mundos. E a gente deveria criar outros mundos mais prazerosos, mundos para celebrar a vida. Mas fomos capturados por esse pensamento cartesiano, sobre o tempo ter um sentido prático e poder ser medido e calculado até chegar à máxima de que o “tempo é dinheiro”, né? A vida como um consumo, como uma lâmpada que tem prazo para acabar. As lâmpadas têm uma obsolescência programada, né? Ora, isso que se aplicava a materiais passou a ser aplicado à nossa vida. O ser humano começou a ter uma obsolescência programada. A vida útil, todo esse besteirol constituído pelo capitalismo. As pessoas, desde a infância, entram nisso e não têm como sair. Para sair, teriam que romper com a perspectiva, teriam que experimentar outras cosmovisões. Algumas culturas, como os povos de matrizes africanas, os aborígines, os povos originários das Américas escapam disso exclusivamente pelo campo da relação com a sua ancestralidade. O resto da humanidade é refém dessa narrativa do tempo prospectivo, de uma coisa da qual você corre atrás indefinidamente.

Em Ideias para adiar o fim do mundo, você utiliza a expressão “paraquedas coloridos”. Você poderia explicar o que seriam eles?

Os paraquedas coloridos se constituem num dispositivo – um dispositivo de pensar. Só que de pensar para além dos limites. É quando o poeta consegue implodir o casulo, quando o músico consegue ter a nota que ele queria, quando o pintor acha o tom, quando quem dança encontra o movimento. Eles aparecem dentro da ruptura e abrem o entendimento. Digamos, assim, que ele dá sentido. É quando você está fazendo alguma coisa que parece não ter sentido nenhum, todo mundo pode achar que “esse cara tá doido”, mas aquele gesto foi exatamente o que salvou o dia. E tudo ao redor foi beneficiado por isso. Então, quando me ocorreu a expressão “paraquedas coloridos”, ela veio como uma poética nova. É como se cada um de nós tivesse seu próprio universo de possibilidades. Por isso, eu a relaciono com a ideia do Drummond: enquanto Drummond estava vivendo a sua vida, ele foi projetado para além da existência dele, das montanhas, dos outros seres, da cidade onde nasceu, do mundo dele. Então, assim, é quando você consegue sair de si, talvez.

Este texto foi originalmente publicado na ELLE impressa, volume 2, em dezembro de 2020.

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes