Drag kings: a arte de quem desafia e reinventa o que é ser homem
Questões políticas e de gênero se entrelaçam nas performances irreverentes que questionam estereótipos e buscam diferentes significados para a masculinidade.
Com 1,52 m, corpo mignon e poucas curvas, trejeitos aparentemente delicados e fala ora cadenciada, ora eufórica, Rubia Romani sofre uma metamorfose no palco. E fica gigante. De repente, quem está ali é Rubão (na foto do abre), sua persona drag king. Com peruca, bigode, pelos no peito, jeito sério e cenho franzido, tudo muda: desde o seu jeito de olhar até a maneira como mexe a sobrancelha e as mãos. “Há uns oito anos, eu estava num bar com um amigo, e caiu um guardanapo no chão. Quando fui pegar, ele perguntou porque eu estava fazendo daquela maneira, quase como uma coreografia da Dita Von Teese (artista burlesca norte-americana). Ele imitou meus gestos e eu me assustei. Foi quando percebi que nenhum dos meus movimentos eram naturais, tudo era construído socialmente, e eu nunca tinha tido essa clareza. Por ser mulher, eu sorria de tal forma, meu tom de voz, o jeito de andar era aquele”, explica a atriz curitibana de 35 anos. A partir daí, e de suas vivências bem peculiares como performer burlesca e terapeuta orgástica, ela começou a questionar todos os signos que representavam o feminino e a trazer elementos masculinos para a sua vida. “Quando ganhei um lace de bigode e coloquei, minha cabeça explodiu. Logo em seguida, no Carnaval, saí com ele e me senti liberta, sem medo. Estava me jogando para todo mundo. Foi quando comecei a me montar sempre e me aproximei das drag queens, sendo o único menino no lugar delas”, diz. Rubão nasceu em 2014 e é um ponto de referência para a maioria das pessoas que performam a arte drag king. Ele é o criador do coletivo Kings of the Night, de Curitiba, um dos maiores e mais conhecidos do Brasil, e conta com 12 membros, entre mulheres e pessoas não-binárias. Juntes, eles se montam, trocam experiências e trabalham em projetos cênicos culturais.
À primeira vista e de forma bem superficial, você pode pensar que um drag king é a mulher que se veste e age como um homem, de maneira performática. O contrário das drag queens, como as cantoras Pabllo Vittar e Glória Groove ou as estrelas do reality show RuPaul’s Drag Race. Mas quem é parte desse universo existe de uma forma muito maior e quer muito mais – a começar pelo próprio autoconhecimento e a quebra da ordem heteronormativa social e cultural. “Digo que é uma arte queer porque foge das diretrizes normativas do corpo, dessa conduta das cisgeneridade. Borramos as fronteiras do gênero, expondo a forma como ele é construído. Várias mulheres, que até então eram heterossexuais, experimentaram o king e hoje são bi, porque exploraram outras coisas do corpo. Eu fico com homens, mas não tenho essa conduta heteronormativa. O Rubão é quase uma cura, porque deflagrou muita coisa que não aprecio nos homens. É a terapia drag king”, conta Rubia, sempre sorrindo.
O gênero construído e a história apagada
A palavra queer provém de uma gíria em inglês e, originalmente, tem um significado pejorativo. “É sempre pra falar de pessoas que são excluídas socialmente em questões de gênero e sexualidade. Aqui, traduzimos como ‘estranho’, ‘esquisito’. A teoria queer nasce do movimento queer, que aconteceu nos Estados Unidos, na Inglaterra e alguns lugares da Europa na década de 1980, e se apropria do termo. Algo como: ‘sou estranho e tenho orgulho disso’. Então, começa um pensamento de que a base dele é se desidentificar das categorias identitárias de sexo e gênero. Ou seja, pegar o que disseram que você deveria ser e reformular isso de uma maneira própria, individual”, fala a psicóloga e artista visual Renat Ferrer, 34 anos, que estuda gênero e sexualidade e tem a persona king Lucca von Füder. Ele é um nerd tímido, fofo e querido, que ajuda Renat a lidar com suas inseguranças, indo para um lugar diferente e trabalhando uma masculinidade menos estereotipada. Há três anos, ela faz parte do coletivo Piratas do Gênero, do Rio de Janeiro, que promove inúmeras atividades em grupo, entre elas, uma experimentação: “Incentivamos as pessoas a cortarem um pedacinho do cabelo, se olharem no espelho e imaginarem uma barba. A partir dessa barba, fazemos toda uma provocação de quem seria essa persona, nome, de onde veio, como se comporta”, explica.
Gênero, aliás, é um dos assuntos intrinsecamente ligados a quem performa a arte drag. A travesti Lua Lamberti de Abreu, 26 anos, é drag queen e king, formada em artes cênicas e, atualmente, doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Maringá. “Existia um transformismo nas obras de Shakespeare. Uma das muitas teorias é de que o anagrama drag tenha surgido nos textos dele, e significaria dressed as a girl“, afirma. “Os estudos de gênero e feministas foram uma bola de referências que levaram a eu me entender neste lugar da travestilidade, quando tudo passou a fazer sentido para mim”, diz Lua, matriarca do coletivo House of X, de Maringá, e cuja persona é Andromeda X. Seu primeiro contato com drag kings aconteceu ao frequentar uma oficina ministrada por Rubão. Ela e a amiga Ludmila Castanheira, de 36 anos, que performa o drag Milo, O Sensível, são colegas da pesquisadora e professora Patrícia Lessa, figura importante em estudos lesbianos e de gênero. Em 2015, Patrícia levou à cidade algumas oficinas drag kings com o teórico e pesquisador transfeminista Sam Bourcier. Além dele, a filósofa e escritora Judith Butler, além do filosófo espanhol e transhomem Paul Preciado, também fazem parte de um grupo vanguardista contemporâneo dos estudos da teoria queer e da arte drag king.
“Entendo que o king é deboche de determinada masculinidade. Há muitas maneiras de ser homem e mulher também. Eu sou sapatão, então, existe um feminino que se recusa a determinadas coisas. É uma possibilidade, um lugar de fluir outro corpo, outro lugar não socialmente aceito. E o gênero é uma ficção, brincamos com ele como quisermos. Com o passar do tempo, entendi que o drag king pode ser muitas coisas, mas não uma tentativa de nos equiparar ao homem opressor”, reflete Ludmila. O drag king Don Valentim, de São Paulo, tem 27 anos e prefere não dizer seu nome real. Apesar de ter sido designado mulher ao nascer, hoje se entende num lugar de não-binariedade, e a arte o fez repensar e ressignificar os símbolos femininos sociais, como a maquiagem, muito usada por sua persona. “Você só pode pertencer a uma caixinha, e a masculinidade sempre me foi negada. Eu comecei, por exemplo, a procurar roupas na sessão masculina das lojas e vi que tinha muita coisa legal para usar na minha vida out. O feminino sempre foi imposto, era algo obrigatório, mas o drag me fez repensar isso. Hoje eu misturo tudo e me divirto como quero”.
Saber mais sobre as origens ou o contexto histórico do surgimento dos drag kings não é uma tarefa fácil, já que toda história é contada por quem faz parte da hegemonia. No caso, homens brancos, cisgêneros e heterossexuais. “É um apagamento da nossa história, não nos deixam existir”, diz Lua. Tanto ela quanto Renat citam a estadunidense Stormé DeLarverie (1920-2014), mulher negra e lésbica que esteve no confronto de Stonewall, marco da luta dos direitos da comunidade LGBTQIA+, como um dos drag kings mais conhecidos mundialmente. Segundo o site Drag King History, Florence Hines (1890-1906), Bert Whitman (1888-1964), Gladys Bentley (1907-1960), mulheres negras e lésbicas, já performavam o gênero masculino.
Nas redes, telas e muito além delas
Enquanto no Brasil os coletivos drags ainda são escassos, a diversidade de corpos e pessoas é pequena – muito por falta de conhecimento e visibilidade sobre o assunto –, e as discussões de gênero caminham a passos lentos, em Londres, o grupo Drag Syndrome vem desafiando o status quo. Performances, shows e muita arte feita para as redes sociais tem como protagonistas drag queens e kings com síndrome de down. ELLE conversou com Justin Bond, persona da jovem Ruby Codiroli, de 22 anos. O nome é em homenagem ao cantor Justin Timberlake e ao personagem James Bond, por ser muito fã de ambos. “Sempre me interessei por artes e cultura, e quando vi a performance das drag queens, quis fazer o mesmo como um king. Eu sabia que seria bom nisso! Conheci kings com diferentes estilos e atitudes e, para criar Justin, me inspirei em mim mesma, nos meus sonhos e desejos”, relata Ruby. Ao ser questionada se já sofreu algum tipo de preconceito, ela é direta: “Algumas pessoas me julgam, acham que sou limitada ou não entendo o que faço, mas eu realmente não me importo, porque isso não é verdade. Basta olhar para mim e ver todas as minhas habilidades de performance. Quero inspirar pessoas com ou sem deficiência a ser quem elas quiserem ser, sem se importar com bullying ou ódio”.
Atração muito comentada da Netflix no ano passado, o reality Nasce uma rainha, apresentado pelas drag queens Gloria Groove e Alexia Twister, traz jovens com histórias de vida diferentes, convidados a explorar sua persona drag. Por ora, um único drag king apareceu no programa: Carlão Sensação. “Durante as gravações, eu fiquei intimidada, rolou um frio na barriga. E quando me vi na tela, senti um puta orgulho. Estava bem à vontade, mesmo com os meus pais presentes ali e existindo um contraponto entre mim e meu irmão. Foi quase uma terapia familiar. Muita gente disse que se emocionou com minha história”, diz a roteirista Carla Bernardes, de 35 anos. Com seu Carlão, ela resolveu questões do passado, como o bullying que sofria por ter um jeito mais masculino, e entendeu que esta é uma boa ferramenta para expor e lidar com a masculinidade tóxica. “Tento fugir disso e, ao mesmo tempo, apontar os problemas que ela pode trazer, tirando um barato dos homens hétero, usando o bom humor”.
Para o pesquisador Kevin Hacling, da Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba, enquanto as drag queens são celebradas e reconhecidas mundo afora, os drag kings permanecem ainda com pouca ou quase nenhuma visibilidade por não serem interessantes ao sistema capitalista. “Na sociedade patriarcal, é mais fácil e vendável performar a mulher com certos exageros, moldando essa maneira de se portar, de agir, sabendo se maquiar, costurar, do que questionar a masculinidade. Por isso, as queens estão sendo incorporadas na música, nos reality shows. Nas minhas leituras, vi que o Paul Preciado localiza o drag king como um tipo de ativista que se coloca de forma crítica à tecnificação da performance drag queen. É uma arte marginal, contestadora”, fala. Pelo momento reacionário em que vivemos, ele, que é um homem cisgênero gay, explica que é urgente levar o assunto e a discussão para fora das bolhas, conversando com quem pensa diferente. “Precisamos construir novas alianças, fora daquelas convencionais. Estamos muito longe disso, mas, apesar de tudo, há potência. Se todos os dias nos matam, todos os dias renascemos e continuamos vivos”.
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