Projeto Sankofa: quando o aquilombamento extravasa as passarelas
Iniciativa dos coletivos Pretos na Moda e VAMO, a ação pretende racializar a moda por meio da inserção de 8 novas marcas de pessoas negras e indígenas, na São Paulo Fashion Week.
Abrir as portas. É esse um dos objetivos do Projeto Sankofa, divulgado hoje (19.02) e idealizado pelos coletivos Pretos na Moda e VAMO (Vetor Afro-indigena na Moda). A iniciativa busca racializar um dos maiores eventos de moda do país, a São Paulo Fashion Week. Para isso, oito jovens marcas de pessoas negras e indígenas foram escolhidas, por meio de um processo seletivo gerido pelo VAMO, para integrarem a semana de moda durante três temporadas (abril e outubro de 2021 e abril de 2022).
Elas receberão apoio profissional variado: serão psicólogos, advogados, contadores e oito marcas madrinhas, uma para cada contemplada. Essas “madrinhas” são etiquetas já consagradas no line-up do evento. “O objetivo é que elas sejam como uma segunda mãe”, diz Rafael Silvério, representante do movimento VAMO. Os pares foram escolhidos de acordo com as necessidades e perfil de cada novo empreendimento e empreendedor.
Como primeira ação, está programada a produção de um filme fashion sobre as minicoleções (com 3 a 5 looks) desenvolvidas pelas oito grifes selecionadas. Se a situação sanitária estiver favorável, na edição de outubro da SPFW, ocorrerão os desfiles presenciais. Além disso, será produzida uma web série para documentar o desenrolar das atividades.
Numa segunda fase, após abril de 2021, o objetivo é assessorar as marcas para “desenhar um plano [exclusivo de comunicação], a partir de suas necessidades”, afirma Rafael. Serão oito estratégias de ações diferentes porque são oito negócios completamente diferentes. Com isso, o foco também é popularizar a moda diversa feita por pessoas negras e indígenas. “Cada preto é único. Preto não é tudo igual”, diz Rafael.
Ocupando os espaços
Atualmente, a representatividade negra e indigena na SPFW não faz juz aos 56% da população brasileira, que é preta ou parda: são apenas três marcas geridas por pessoas nesse perfil no line-up, segundo a criadora do Pretos na Moda, Natasha Soares. Mesmo com as pessoas negras sendo a locomotiva do Brasil – só as mulheres pretas e pardas formam o maior grupo da população brasileira e movimentam mais de 700 bilhões por ano – ainda existem muitas portas fechadas. São algumas delas que o Sankofa pretende abrir.
Para ela, desenvolver algo como esse projeto permite a entrada de muitas pessoas no mercado: “quando você coloca um preto num ambiente, ele traz outros com ele”, diz. Mesmo embrionária, a ação já colhe bons frutos só por visibilizar outras potências criativas. “A gente sabe que esses espaços precisam de muito para falar de diversidade; isso é um passo e queremos fazer mais”, finaliza.
Um dos diferenciais do cronograma é o apoio psicológico oferecido para os integrantes. “O estilista preto, neste país, tem uma autoestima muito baixa”, diz Rafael. Segundo o criador, é muito importante o projeto conseguir resgatar a coragem, autoconfiança e fortalecimento da autoestima de todas as pessoas envolvidas.
“Me sinto recebendo um cafuné de vó”
Para os irmãos Júnior e Céu Rocha, basta “você acreditar no que faz, e um dia o resultado vem”. Isso não significa que a dupla não trabalhe duro há seis anos em sua marca baiana chamada Meninos Rei, mas, sim, que é importante não perder de vista a essência das coisas. A grife desenvolve looks com tecidos africanos cheios de vida. “Dávamos nossa cara para bater”, diz Júnior. E de fato, batiam: os dois comentam sobre preconceitos que sofreram pela estética, cores e modelagens das roupas. Porém, eles nunca desistiram e afirmam que suas roupas são como “um texto”. Ambos acreditam que “pela roupa as pessoas fazem uma leitura do que você é.”
Júnior e Céu rocha vestem as roupas de sua marca, Meninos Rei.Foto: Ivan Costa.
Sempre de olhos bem abertos e fiéis a si mesmos, os irmãos viram uma enorme oportunidade de fortalecer o trabalho da marca no projeto Sankofa, mas não só. Todo o processo tem sido afetuoso e para além do técnico – afinal, não existe metodologia para fazer alma e coração vibrar. “A sensação que tivemos é de estar recebendo um cafuné de vó”, dizem eles, sobre as trocas no grupo de participantes. “É uma rede de apoio e a palavra que define é acolhimento. Sabemos os sentimentos envolvidos nisso: amor, sensibilidade, ouvir e dar uma palavra de conforto. Isso já ocorre, as marcas se apoiam.”
Sanfoka, o nome que verbaliza a iniciativa, faz parte de um conjunto de símbolos chamado “adinkra”, e significa “retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”. Esse conceito consegue explicar bem o que Milena Nascimento tem vivido enquanto integrante do projeto com sua marca de moda marginal ativista, a MILE LAB. Há alguns anos, ela foi camareira na SPFW, ajudava a arrumar as modelos e organizar as roupas nas araras antes dos desfiles. Sobre essa época, ela lembra ser vista como uma “zé-ninguém”. Já hoje, tomou seu lugar enquanto potência criativa: “Por muitos séculos tivemos nossas vozes silenciadas, então [fazer parte disso, na SPFW] é uma vitória, é uma resistência e uma arte”.
Conforme os entrevistados, para além das passarelas, representatividade e representação, o mais virtuoso e sensível têm sido vivenciar o “aquilombamento” que surge quando pessoas negras e indígenas se juntam, com propósitos semelhantes, para potencializar suas ancestralidades.
Modelo Nicole Vieira fotografa com roupas da marca MILE LAB.Foto: Vinicius Marques.
Para Milena, isso é mais que sonhar: é viver o próprio sonho. Assim como Mano Brown já deu a letra em A Vida É Desafio, cantando que “É necessário sempre acreditar que o sonho é possível / Que o céu é o limite e você, truta, é imbatível”, Milena também não se deixa acanhar e tem planos de ministrar oficinas criativas para a comunidade onde mora, no Grajaú, zona sul de São Paulo capital. “A minha ideia é focar nesse lugar e mostrar para as crianças e para a juventude que aqui dentro, existem possibilidades. Ver que a MILE LAB vai servir de espelho aqui e vai quebrar esse muros tem sido muito impactante para mim”, compartilha.
Conheça as marcas participantes
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