O legado de Carolina Maria de Jesus, que buscou na escrita um banquete para a fome

Autora negra e favelada, que marcou a literatura nacional, ganha homenagens no dia em que faria 107 anos.


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Ilustração: @taycabral



Era 14 de março de 1914. Nascia uma estrela: Carolina Maria de Jesus. Uma das mais icônicas escritoras do Brasil, ela escreveria Quarto de despejo. Com uma narrativa poética e realista, a autora documentou seus dias de fome, a maternidade e a vida na favela, em São Paulo. A obra vendeu mais de 100 mil cópias no seu primeiro ano de publicação (1960), foi traduzida para mais de 13 idiomas, chegou a mais de 40 países e ganhou adaptações cinematográficas.

No mês passado, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) concedeu o título de doutora honoris causa à escritora por sua contribuição para a sociedade. Neste domingo, dia em que completaria 107 anos, ela recebe uma homenagem do Instituto Moreira Salles (IMS): escritores e escritoras negras comentam sobre as obras e a relevância de Carolina no perfil de Instagram do Instituto, que prepara para junho a exposição Carolina Maria de Jesus – Um Brasil para os brasileiros.

A história da escritora começou em Sacramento, terras mineiras, onde nasceu. Lá, pode frequentar uma escola por dois anos, aprender a ler e escrever – algo bastante raro para uma menina negra da época. Em Quarto de despejo, seu livro mais vendido, ela cita a importância de sua primeira docente: ”Seria uma deslealdade de minha parte não revelar que o meu amor pela literatura foi-me incutido por minha professora, Lanita Salvina, que aconselhava-me para eu ler e escrever tudo que me surgisse na minha mente. E consultasse o dicionário quando ignorasse a origem de uma palavra”.

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Clarice Lispector e Carolina Maria de JesusFoto: Acervo Clarice Lispector/Instituto Moreira Salles

Mas como a casa grande surta quando a senzala aprende a ler, Carolina foi até presa e acusada de bruxaria por seu letramento. Acabou migrando para São Paulo, em meados da década de 40, com sua primeira filha. No início, trabalhou como empregada doméstica e foi morar na favela do Canindé, zona norte da capital. Depois, passou a catar papel para sobreviver e sustentar seus três filhos sozinha. Dos materiais que recolhia, separava cadernos e folhas para poder escrever.

Daria um filme, mas deu um livro

Carolina sempre enviava seus escritos para editoras e jornais. Sua biografia, assinada por Tom Farias, revela que na década de 40 ela já aparecia em textos e se apresentava como ”Carolina Maria, a poetisa negra”. Porém, foi quando a mineira conheceu Audálio Dantas, jornalista já falecido, que tudo mudou. O então repórter da Folha da Manhã, um dos jornais que deu origem à atual Folha de S.Paulo, foi incumbido de produzir uma matéria na comunidade do Canindé. Lá, se deparou com a potência da escritora, que lhe apresentou seus diários. Eles foram então publicados, em fragmentos, no ano de 1958, na Folha da Noite, e, um ano depois, na revista O Correio. Só mais tarde, em agosto de 1960, veio o livro mais famoso da autora, editado por Adélio.

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Reportagem de Audálio, publicada em 1959 na revista O Cruzeiro.Foto: Acervo Audálio Dantas

O título tem uma razão: ”É que em 1948, quando começaram a demolir as casas térreas para construir os edifícios, nós, os pobres, que residiamos nas habitações coletivas, fomos despejados e ficamos residindo em baixo das pontes. É por isso que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos”, escreveu Carolina ao final da obra.

Por conta de seu imenso sucesso, alguns renomados intelectuais duvidaram de sua capacidade e diziam que se tratava de uma estratégia de marketing. Para eles, era impossível uma preta favelada escrever com tanta maestria. Depois da popularidade do primeiro livro, Carolina conseguiu comprar uma casa e investir na publicações de outros escritos. Vieram Casa de Alvenaria (1961), Pedaços de Fome (1963) e Provérbios (1963).

”Quando eu não tinha nada pra comer, eu escrevia”

É difícil submeter Carolina a um único gênero literário. ”Ela escreveu desde diários, poesia, romance até dramaturgia, provérbios e textos jornalísticos”, explica Fernanda Miranda, doutora em letras pela USP e autora de Silêncios prEscritos: estudo de romances de autoras negras brasileiras. ”Embora se considerasse, acima de tudo, poeta, Carolina foi uma exímia narradora. Sua obra é permeada de reflexão e ação. Encontramos tanto fluxos de pensamento quanto descrições tão precisas que são quase cinematográficas”.

A escritora buscava na escrita um banquete para a fome. ”Quando eu não tinha nada pra comer, eu escrevia”, diz ela nas páginas de Quarto de Despejo. Para Fernanda, Carolina é uma narradora e pensadora do Brasil. Lendo-a, podemos interpretar melhor toda a desigualdade brasileira. ”A partir de sua escrita, passamos a compreender e acessar facetas, realidades e interpretações que não compõem o quadro fechado dos autores privilegiados que constituem o nosso cânone”, diz Fernanda.

À fome, inclusive, Carolina faz citações recorrentes. No dia 13 de maio de 1958, escreveu: ”Hoje amanheceu chovendo. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. […] Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. […] E assim no dia 13 de maio de 1948 eu lutava contra a escravatura atual – a fome”. Passados 72 anos de seu depoimento, o Brasil voltou ao mapa da fome.

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Capas de Quarto de Despejo em diversas traduçõesFoto: Reprodução

Vida após a morte

Se dizem que Carolina foi descoberta, o que a fazia ser encoberta? Afinal, ela não foi a primeira escritora negra do Brasil. Existiram muitas outras invisibilizadas por um racismo estrutural que torna ausente o que existe. Ela foi uma das primeiras a ser vista, notada e lida massivamente. Porém, acabou por cair no esquecimento de uma sociedade que ainda falha em enxergar pessoas negras em sua integridade e genialidade.

Morreu aos 62 anos, em 1977, de insuficiência respiratória, no seu pequeno sítio em Parelheiros, São Paulo. Após sua partida, foram publicados Diário de Bittita (1986), Antologia Pessoal (1996), Meu Estranho Diário (1996), Onde estaes felicidade? (2014) e Meu sonho é escrever… contos inéditos e outros escritos (2018), mas que nunca fizeram tanto sucesso. Em setembro passado, a editora Companhia das Letras anunciou que vai publicar outros títulos da autora – Fernanda integra o conselho editorial responsável. A coordenação é de Vera Eunice de Jesus (filha de Carolina) e Conceição Evaristo.

”Infelizmente, sua obra permanece pouco conhecida para além de seu primeiro livro publicado”, pontua Fernanda. ”O segundo, Casa de Alvenaria, é importantíssimo para compreensão de inúmeros processos de estabelecimento da posição de escritor no Brasil e do funcionamento do mercado editorial brasileiro, muito marcado por recortes raciais.” Fernanda ainda destaca Pedaços de fome, cujo título original era A Felizarda. É o único romance publicado por Carolina até hoje.

”Embora se considerasse, acima de tudo, poeta, Carolina foi uma exímia narradora. Sua obra é permeada de reflexão e ação.” – Fernanda Miranda

Por fim, neste 14 de março, também podemos lembrar de outras duas figuras importantes para o Brasil: Abdias Nascimento (1914-2011) e Marielle Franco (1979-2018). O primeiro nasceu na mesma data que Carolina e foi um artista e ativista do movimento negro. Fundou o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO) e participou da criação do Movimento Negro Unificado (MNU). Já a segunda foi brutalmente assassinada há exatos três anos, junto de Anderson Gomes, enquanto militava pela comunidade negra e pelos direitos humanos.

Fernanda acredita que ”em Marielle, Abdias e Carolina encontramos a potência de três vozes muito lúcidas e atentas ao seu próprio presente, que lutaram, cada uma a seu modo, para modificar realidades desiguais e constituir outros mundos possíveis para pessoas negras”. Como último recado, ela nos convida a não deixarmos mais vozes tão potentes serem ocultadas. ”Neste país tão acostumado a promover o esquecimento e apagamento de pessoas negras e suas trajetórias, não podemos permitir que suas vozes sejam esquecidas”, finaliza.

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