Das tripas, criação

Conheça a Emeka Suits, uma marca de ternos que está ajudando a empoderar alfaiates quenianos por meio do upcycling.


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É possível criar ternos com a reutilização e reciclagem de roupas coletadas em lixões? Quem acha que não precisa conhecer o trabalho de Sydney Emeka Nwakanma. Filho de um nigeriano com uma alemã, ele nasceu em Henstedt-Ulzburg, norte da Alemanha, mas morou em diferentes cidades da África e Europa. Em 2018, tirou do papel a marca Emeka Suits, que produz calças, blazers, camisas e chapéus com alfaiates da zona rural do Quênia. A matéria prima são tecidos, normalmente de cortinas, encontrados em aterros sanitários do país africano.


A ideia nasceu na varanda de sua tia, na Nigéria. ”Estava sentado lá com meu primo, que me explicou a dificuldade de encontrar oportunidades de trabalho na África. No final da noite, decidimos criar essas oportunidades nós mesmos”, conta Sydney. Ele sempre adorou a criação de roupas, mas estudou cinema e filosofia. Daí seu interesse em contar histórias por meio da imagem, sem perder os valores éticos nos quais acredita.

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Sydney Emeka Nwakanma usando sua marca, Emeka.Foto: Divulgação

Sua motivação é seu desejo de mudar o mundo. Com a Emeka, ele pretende não apenas colaborar com a geração de trabalho digno na África, mas também mudar a narrativa do continente de um lugar de luta e dependência, para um lugar de criatividade e beleza. ”Crio porque tenho uma visão de um futuro em que o planeta e as pessoas podem prosperar juntos”, diz o designer, com olhos atentos para as mudanças de mercado – pesquisas da Ellen MacArthur Foundation apontam que 71% dos consumidores expressam maior interesse em negócios circulares, como aluguel, revenda e conserto. ”O importante é que usamos o estado atual do mundo para nos inspirar e avançar em ideias que estão promovendo empoderamento e igualdade para todos. Fazemos isso enquanto protegemos nosso lar em comum: a Terra.”

A Emeka é uma marca que reúne muitas coisas em uma só: valorização dos alfaiates locais, que realizam um exímio trabalho de corte e costura nos territórios africanos há séculos; o fomento e a expansão da criatividade africana, em especial a do Quênia; e ainda a implementação de processos circulares na moda, ao mesmo tempo em que denuncia um sistema colonial persistente do Norte sob o Sul Global. Isso é mais que vestuário ou uma peça bonita e bem cortada: é usar a moda como transformação material e imaterial.

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Modelo usa terno da Emeka.Foto: Divulgação

O processo funciona da seguinte maneira: Sydney desenha os looks e acessórios, depois vai até Naniuqui, no Quênia, para garimpar os tecidos nos grandes lixões locais, às vezes com a ajuda de seu assistente, Chelena Kurisan. A principal matéria prima são cortinas que ele encontra em meio às pilhas de roupas, eletrônicos e sucatas. Depois, ele define com os artesãos locais como serão exatamente as peças e acessórios. Atualmente, a Emeka produz ternos sob medida e dispõe de alguns modelos para pronta entrega, tudo via e-commerce, em seu site. Para este semestre, a pré-venda da coleção Urban Garderner já está disponível.

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Modelo usa terno da Emeka.Foto: Divulgação

De terninho

Embora a Emeka esteja expandindo sua linha de produtos para camisas e chapéus, foram com os ternos que tudo começou. Os trajes, com silhueta bem definida, modelagem perfeita e corte reto, estão presentes na moda há séculos, e normalmente são definidos como ”peças de alfaiataria”. Daí sua relação com a moda masculina, já que a profissão de alfaiate começou com eles. A prática ganhou seu primeiro registro bibliográfico em 1589, mas aparece na história até como revolução: em 1798, alfaiates baianos lideraram a Conjuração Baiana, também conhecida como Revolta dos Alfaiates. O movimento popular exigia, entre outras coisas, a separação da Bahia de Portugal e a abolição da escravidão.

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Modelo usa terno da Emeka.Foto: Divulgação

Ao longo do tempo, os alfaiates e os ternos ganharam diversas variações. Contudo, para os homens negros recorrer a essas vestimentas não era só mais um símbolo de sofisticação, e sim uma forma de criar sua propria narrativa em confronto ao colonialismo e referências eurocentricas. Um exemplo são os dândis do Congo, conhecidos por sua elegância e excelência no ofício da alfaiataria. Desde a escolha de tecidos até a modelagem e costura, tudo isso forma uma cultura chamada por eles de SAPE (Société des Ambianceurs et des Personnes Élégantes). É mesmo muito chic – e até a Solange Knowles concorda. Não à toa, os dândis protagonizam o clipe de uma de suas canções mais famosas, Losing You.

Para Sydney, a escolha dos termos foi natural, e busca potencializar os alfaiates que existem nos países africanos. Tudo é feito com muito esmero: ”Da escolha dos tecidos até o corte e a costura. Todo o processo é manual e com muita atenção aos detalhes”, conta ele. ”Nosso alfaiate principal se chama Jeff. Eu o chamo de ‘Jeff, o Chef’. Ele está no ofício há 35 anos e é a razão pela qual nossos ternos são tão bem feitos.”

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Jeff, um dos alfaiates que trabalha na Emeka.Foto: Acervo pessoal do estilista

Do berço ao berço ou do berço ao túmulo?

Países do continente africano e alguns do continente asiático recebem enormes montantes de roupas, normalmente do Norte Global. Essas peças têm dois destinos principais: os mercados de segunda mão e aterros. No último caso, essa prática cria verdadeiros lixões a céu aberto, como o de Dandora, o maior em toda África. Localizado nos arredores de Nairóbi, no Quênia, o espaço recebe o excedente do mundo todo. São pilhas de roupas, tecidos e eletrônicos. Tudo sem separação ou reciclagem.

Ainda que menos nocivos ao ambiente, a revenda de roupas e itens descartados por países da Europa e Estados Unidos tem consequências prejudiciais e outro tipo: o enfraquecimento da indústria e criações locais. ”Os tecidos que usamos são roupas doadas da Europa e da América, que estão sendo enviadas para a África, mas isso atrapalha a indústria têxtil local e faz com que muitos alfaiates percam seus empregos, já que as pessoas compram as roupas baratas de segunda mão do Norte Global em vez de apoiar marcas locais”, explica Sydney.

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Dandora, o maior lixão do continente africado.Foto: Acervo pessoal do estilista

É bem provável que um sistema como o da moda, que produz bilhões de peças por ano, gere excessos. Não damos conta de usar tanta roupa, mas continuamos comprando itens novos. É por isso que, todos os anos, a cada cinco peças produzidas, três vão parar em aterros, conforme a Global Fashion Agenda. Sydney acredita que ”para resolver esse problema, precisamos abordar os efeitos colaterais da moda rápida e do consumo excessivo, criando uma abordagem mais circular para roupas. Precisamos perguntar não apenas de onde elas vêm, mas também para onde elas vão”.

E, se nos permitem, perguntar também por que países do Sul Global devem receber tudo aquilo que os países do Norte Global não querem mais. Esse sistema de doação e descarte revela um passado colonial que pouco mudou até hoje. Para Sydney, só vamos transformar esse cenário e avançar na criação de um sistema mais justo quando, além de implementarmos os processos de circularidade, pautarmos a moda nas pessoas e não em cifrões. ”Precisamos projetar nossas roupas pensando nas pessoas e no planeta e não apenas no lucro”, finaliza.

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