Tom Ford e o desfile que salvou a Gucci
No centenário da grife italiana, relembre a apresentação revolucionária do estilista em 1995.
A cena vocês provavelmente já viram: um modelo se aproxima de um fictício club Savoy, espia pelo olho mágico, abre a porta e sai desfilando por um corredor com câmeras e flashes mil. Começa assim o mais recente desfile da Gucci, primeira parte de uma série de celebrações em torno dos 100 anos da casa italiana. O look em questão é um smoking de veludo vermelho, exatamente igual ao apresentado por Tom Ford na temporada de inverno 1996 (e usado por Gwyneth Paltrow no VMA daquele ano).
Hoje, quem comanda a marca é Alessandro Michele. Quando assumiu a direção criativa, em 2015, promoveu uma verdadeira revolução estética com sua pegada romântica nostálgica e mistura frenética de referências e estilos de diferentes períodos da história. Foi um sucesso e a Gucci, até então um tanto apagada, voltou a brilhar sob os holofotes da moda.
Acontecimento similar aconteceu 20 anos antes. Mais precisamente com a coleção de inverno 1995 – ainda que não o primeiro desfile de Tom Ford para grife, sem dúvida seu mais importante, como o próprio costuma lembrar.
Milano 54
A entrada de Ford na Gucci foi discreta. Em 1990, aos 29 anos, o texano foi contratado por Dawn Mello, então diretora criativa da marca, para trabalhar sob a supervisão de Richard Lambertson, diretor de design. O estadunidense assumiu a posição do supervisor poucos meses depois, mas passou os anos seguintes frustrado com as decisões criativas de Mello, tentado a deixar a casa italiana em mais de uma oportunidade.
A almejada posição de diretor-criativo chegou em 1994, mas suas primeiras propostas como estilista não agradaram a imprensa. Em busca de dar um passo mais ousado, Ford descobriu entre os arquivos da Gucci alguns elementos que a definiram em décadas anteriores, como a relação com as celebridades.
Nos anos 1970, ícones da alta-sociedade, como Jackie Onassis, Grace Kelly, Elizabeth Taylor e Audrey Hepburn, eram constantemente fotografados em aeroportos com bagagens de couro da casa italiana. O pouco investimento na linha de roupas e a constante repetição de modelos, entretanto, cansou a grife aos olhos do público e, no fim da década de 1980, a Gucci já passava por dificuldades financeiras.
A decisão de reviver o pacto com figuras célebres seria um dos traços mais marcantes do trabalho de Ford, ainda que um movimento arriscado. Quando o estilista comentou com amigos sobre a ideia de fazer a coleção de inverno 1995 inspirada no Studio 54, Mark Lee (então presidente e CEO da Yves Saint Laurent) e Ed Filipowski (diretor de relações públicas da marca francesa) questionaram a proposta.
Resgatar a imagem de uma moda festiva e sensual era arriscada. Os efeitos da epidemia da AIDS nos anos 1980 ainda estavam sendo fortemente sentidos pela indústria e alguns dos maiores frequentadores do Studio 54, como Halston, Willi Smith, Antonio Lopez e Perry Ellis – para quem Ford havia trabalhado antes de entrar na Gucci – perderam suas vidas com complicações causadas pela doença há menos de uma década.
Gucci, Gucci, Gucci
Quaisquer que fossem as preocupações de insensibilidade ou fracasso, elas deixaram de existir no momento em Amber Valetta abriu o desfile, iluminada por um único holofote (um inspiração de Ford nas apresentações de Gianni Versace). Ela vestia uma calça de veludo preto e uma camisa de seda verde desafiadoramente aberta, por baixo de um casaco de chartreuse felpudo da mesma cor. O único testemunho de que aquele era, de fato, um desfile da Gucci era o bridão metálico no cinto. Até então, a marca jamais havia sido tão ousada e sexy na passarela.
Os 58 modelos seguintes fizeram da coleção um espetáculo de cor e sensualidade. Casacos de abotoamento duplo, em tons de azul, laranja e verde, foram desfilados ao lado de calças e costumes de veludo nas mesmas cores. Nos looks femininos, decotes e aberturas se somavam a saias e vestidos curtos. Em conjuntos menos reveladores ou de cores mais sóbrias, paletós acinturados e calças ajustadas impediam que a aura sensual deixasse as passarelas.
Kate Moss no desfile de inverno 1995, da Gucci. Foto: Reprodução
Madonna no MTV Video Music Award. Foto: Getty Images
Mulheres e homens desfilavam com irreverência, muitas vezes parando no caminho de volta para exibir mais um pouco de suas roupas para o público em frenesi. Kate Moss estava entre eles e desfilou uma blusa de seda azul e uma calça de veludo que, meses mais tarde, Madonna usaria no MTV Video Music Awards. Quando questionada sobre a origem da roupa, a cantora respondeu: “Gucci, Gucci, Gucci”.
Diferentes variações do vestidinho preto foram apresentadas – todas profundamente sexy – e os decotes, um após o outro, atravessavam provocantemente a passarela, muitas vezes combinados a bolsas e sapatos vermelhos. Jerry Hall, Bianca Jagger, Andy Warhol, Elsa Peretti e todas as outras personas que pisaram no Studio 54 estavam representadas ali.
Reflexos do passado ilustre que Tom Ford procurou como inspiração também podia ser notado em flashes de ousadia e sofisticação. Um conjunto de sapatos, calça, blusa e trench coat – todos brancos – desfilado com um par de óculos escuros oversized e arredondados, poderia ter saído do próprio guarda-roupa de Jackie O.
Ao final da apresentação, Ford recebeu os aplausos e louvores de uma indústria que, depois de anos, se via livre novamente para sonhar, ousar e explorar estilos que dialogassem, sem receios, com os impulsos de divertimento e sensualidade deixados de lado por tanto tempo.
Sedução e sensibilidade
O êxtase midiático do dia seguinte ao desfile foi apenas uma pequena amostra do que viria ser os anos do império do glamour construído por Ford na Gucci (e para si mesmo). O sucesso comercial da apresentação transformou o estilista no sócio de Domenico de Sole, então CEO da Gucci. Em 1999, a marca foi disputada pela LVMH e o atual grupo Kering (então Pinault Printemps-Redoute), com quem acabou ficando por 8.7 bilhões de dólares. Naquele mesmo ano, De Sole e Ford compraram a Yves Saint Laurent, na qual o estilista também assumiu o cargo de diretor criativo.
Campanha da coleção de inverno 1995 da Gucci. Foto: Reprodução
Além de originar o arquétipo do designer-empresário, Ford deu início ao fluxo de novos criadores em conceituadas casas de moda europeias nos anos 1990. John Galliano foi para a Givenchy e depois para a Dior (Alexander McQueen o substituiu na primeira), enquanto Narciso Rodriguez foi contratado para a Loewe e Michael Kors, para a Céline.
Ao lado de uma equipe de profissionais em harmonia com suas tendências provocadoras, como o fotógrafo Mario Testino e a stylist Carine Roitfeld, o texano despertou um desejo insaciável pela sensualidade, que definiu não apenas o renascimento da Gucci, mas o de toda a indústria.
Em 2021, ano em que alguns países já começam a dar sinais de recuperação da Covid-19, é impossível não perceber os ecos dos rumos audaciosos que Ford tomou há quase três décadas, quando o mundo também começava a indicar um desejo de regeneração.
Simon Porte Jacquemus é um dos criadores modernos que parece enxergar na sensualidade uma saída para a sensibilidade sombria que dominou o último ano. Sua série fotográfica L’Amour (mesmo nome de sua coleção de primavera 2021) é um dos exemplos do retorno do imaginário sexual à moda. A campanha Build Love, da Paco Rabanne, é igualmente parte do movimento.
Ainda é cedo para discutir se, na década que se inicia, a sensualidade será uma porta para a liberdade ou apenas mais uma ferramenta de publicidade. Mas se essa discussão sequer existe, suas raízes estão na ressurreição triunfal da Gucci, pelas mãos de Tom Ford, no outono de 1995.
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