Desvendando as cartas de tarô que apareceram no couture da Dior
Para apresentar a sua mais recente coleção de alta-costura, a etiqueta francesa apostou em um fashion film cheio de símbolos e mistérios. Deu play e não entendeu nada? Então vem com a gente!
Ainda em meio a mais uma onda da Covid-19, a alta-costura parisiense está apresentando suas coleções para o verão 2021 de forma digital. A aposta da Dior, uma das maisons mais clássicas e importantes do calendário, foi um fashion film que nem tem a pretensão de simular uma passarela. Antes de lançar o vídeo, a marca anunciou que sua apresentação seria uma experiência diferente. E, como já sabemos que a diretora criativa da casa é obcecada (assim como eu) por tarô, já era de se imaginar que o vídeo tivesse alguma coisa a ver com o oráculo milenar
O curta-metragem leva o título de Le Château du Tarot (algo como “O Castelo do Tarô”, em português). Dirigido pelo romano Matteo Garrone, o filme segue os passos de uma garota em busca da resposta a uma pergunta ontológica: “quem sou eu?”, diz a protagonista enfrentando o olhar caloroso de uma taróloga que, logo na sequência, tira para a jovem (interpretada pela atriz franco-italiana Agnese Claisse) a carta da Papisa. Após metamorfosear-se em um ser humano (vestido de alta-costura Dior dos pés à cabeça) o arquétipo entrega à personagem uma chave.
Dior Haute Couture Spring-Summer 2021 Collection
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No tarô de Marselha, a Papisa representa um momento de reflexão profunda. O trono em que está sentada a figura da carta se posiciona logo à frente dos portões do inconsciente. Ou seja, este é o momento em que o filme anuncia que estamos embarcando em uma viagem pela mente de alguém. Que a geografia, os cenários, e (por que, não?) as roupas deste curta, existem em um plano diferente. Tudo a ver com essa inclinação quase espiritual, mágica, que a cultura da couture prega sobre si para o resto do mundo, não?
De qualquer forma, o curta continua seguindo a personagem que, dentro deste contexto onírico se divide em duas: uma delas veste um terno tipicamente masculino escoltado por um cabelo tipo joãozinho enquanto a outra está de vestido e longas madeixas cor-de-rosa. No mundo real, masculino e feminino são conceitos que, cada vez mais (e que bom!) estão sendo desconstruídos e repensados. No entanto, para ler o tarô de Marselha é preciso retomar o sentido arquetípico destes fantasmas. Neste baralho, quando cartas como o Papa ou o Imperador aparecem, estamos falando do mundo da racionalidade. No caso de cartas como a Papisa e a Imperatriz, fala-se do universo sentimental. Tudo isso para dizer que agora essa divisão (entre razão e emoção) estão representadas pela personagem cindida. O que, como vocês verão mais adiante, carrega a trajetória dela com interpretações bastante interessantes.
A versão de vestido e cabelo rosa segue até uma sala em que dá de cara com a Justiça. Sentada em frente a uma balança, ela coloca a sua espada sobre um dos pratos e pede para que a protagonista encontre entre os pesos sobre os degraus, qual deles gera o equilíbrio perfeito. No tarô, esses dois elementos: a espada e a libra, nesta carta, tem significados profundos. A libra é um convite para uma análise do passado, um olhar para trás corajoso no intuito de entender se os investimentos valeram a pena, se os sofrimentos foram cabíveis, os amores correspondidos… A arma é a decisão que se faz depois dessa avaliação. É só a partir do passado que podemos tentar definir o nosso futuro. É só o que temos.
Curiosamente, no meio dessa circunstância agonizante, quem chega para ajudar a personagem principal é o Louco, a primeira carta do tarô. O Louco fala sobre o primeiro momento de tudo, um movimento gerado tão somente pela sua liberdade. Ele não sabe para onde vai, mas vai para algum lugar que seu coração guie porque ele é o seu único guia. Considerando a pergunta inicial (“quem sou eu?”) feita pela protagonista no começo do curta, só mesmo o Louco (com essa certeza vinda do coração e não cérebro) poderia ajudá-la. Tanto que, apesar de brincar com ela e de tentar confundi-la, o close no rosto do Louco pouco antes do final da cena aponta para o fato de que, desde o início, ele já sabia qual era a resposta certa daquela charada. E assim, a Justiça a permite seguir em frente.
Enquanto isso, uma situação similar ocorre com a “versão masculina” da personagem. Ela está perdida em um corredor, sem saber qual porta abrir. Novamente, o Louco brinca, tentando confundir, dá risada, mas indica a porta certa em que a personagem de terno, descobre a carta do Pendurado. Este, por sua vez, fala sobre uma circunstância de pausa intencional. De falta de ação, de meditação profunda, de espera, de paciência extrema. Tudo isso, entrega ao Pendurado uma visão de mundo diferente da maioria das pessoas focadas no agora, no imediatismo. O Pendurado sabe que tem algo grande que o aguarda no futuro, mas ele precisa deixar o tempo passar, precisa manter as coisas como estão. É aquela sensação de “só mais um pouquinho, já estamos chegando” quando se está viajando. É com esse referencial que o personagem aponta para uma parede que, para ser entendida como mais uma porta, precisa ser vista de ponta-cabeça.
Le Château du Tarot, portanto, fala sobre alguém que precisava se reencontrar. Alguém que queria ir para um lugar novo, mas ainda não tinha se dado a oportunidade de dizer adeus para as dores e delícias de tudo o que fez para chegar até aqui.
A protagonista de terno, a seguir, encontra-se com a Temperança. Representada por um anjo que brinca com a água no interior das duas taças que carrega (uma em cada mão), a carta fala sobre um tédio positivo. Uma sensação de normalidade, de “tudo no lugar”, algo como uma rotina que não é cansativa, mas saudável.
Antes de continuarmos dissecando a trajetória da personagem de Agnese Claisse, vale uma revisão do paralelo criado até aqui. A pergunta “quem sou eu?” quebra a protagonista em dois personagens: um racional e o outro emocional. Traduzindo o que esses símbolos significam combinados, dá para dizer que ambos estão sendo guiados pela magia do começo de uma nova trajetória de um novo momento em suas vidas do qual nenhum dos dois é capaz de entender (por isso são guiados pelo Louco. Depois, a “versão feminina” (ou seja, o universo emocional) coloca seu passado em cheque, revisa o que viveu (com a ajuda da Justiça) para tomar uma decisão e seguir em frente. Do outro lado, a “versão masculina” (racionalidade) se choca com a realidade da espera, de uma circunstância que não pede movimento (o Pendurado) e, apesar de entediado por esse novo contexto, sabe que pode encontrar tranquilidade e paz no fim desse caminho (Temperança).
De volta ao filme, corta para a “versão feminina” que, feita a revisão, se entrega nas mãos do Diabo. O Diabo fala sobre um momento de alta intensidade emocional, fala sobre as energias mais obscuras do nosso espectro sentimental. Ou seja, era preciso olhar para o buraco, encarar o problema de frente. O interessante é que essa entrega, no curta, é ensaiada quase como um beijo. Como se a protagonista passasse uma noite de amor com a carta do Diabo… Particularmente, acho que é um jeito muito bonito de falar sobre trauma. Em certa medida, é preciso entregar-se a ele antes de dizer o último adeus. Pelo menos no meu caso, antes disso, todos os “adeus” que vieram não duraram muito.
Andando no cena-a-cena, a “versão masculina”, sabendo que terá de pôr a sua vontade de agir em stand by e aceitando essa nova maneira de viver, finalmente, vê a Estrela – carta que representa um deságue emocional que esvazia o sujeito para abrir espaço para a chegada da esperança. Não à toa, o personagem enxerga, lá embaixo, uma banheira cheia de água (a água no tarô também fala de sentimentos e emoções). A “versão feminina”, antes de chegar a esta mesma banheira, ainda passa por mais duas e poderosas cartas. A primeira delas é a Lua, carta da imaginação que a ajuda a propôr os novos mundos que pode criar para si. Na sequência, vem a Morte que a despe de seu vestido (e das estruturas de poder que antes a acorrentavam [este é o sentido da carta no tarô: mudança radical, fim do que era estático, imutável]) e a encaminha para a banheira.
Fechando o filme, as duas versões se encontram e se apaixonam uma pela outra. Depois do beijo, elas são a mesma. Nuas, sabemos da fusão pelo cabelo: agora ele é um joãozinho cor-de-rosa. O corte de um com a cor do outro. Le Château du Tarot, portanto, fala sobre alguém que precisava se reencontrar. Alguém que queria ir para um lugar novo, mas ainda não tinha se dado a oportunidade de dizer adeus para as dores e delícias de tudo o que fez para chegar até aqui. Este “quem sou eu?”, é claro, não encontra uma resposta definitiva. Ainda assim, a personagem encontra seu novo eu ao permitir dar uma pausa para si, olhar para dentro, encarar tudo o que estava mal resolvido dentro de si, deixar vazarem todas essas emoções para só então, organizar-se novamente, e seguir em frente. Bonito, né?
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