Modelos negras cobram o fim de práticas racistas na moda
Após denúncias e relatos de discriminação nas redes sociais, profissionais de moda falam sobre a urgência por mudanças.
Há pouco mais de uma semana, as nossas timelines do Instagram foram tomadas por quadrados pretos. As imagens faziam parte do movimento Blackout Tuesday, uma corrente virtual que aconteceu no dia 2 de junho, após os levantes do movimento norte-americano Black Lives Matter e em solidariedade à luta contra a injustiça racial. A ação foi criada por duas produtoras musicais negras e, rapidamente, ganhou milhões de adeptos. Muitos deles, porém, não tinham histórico de comprometimento com a causa. No episódio 3 desta semana do nosso podcast Pivô, explicamos como a campanha foi usada em alguns casos apenas como discurso de marketing, expondo ainda mais o racismo sistêmico.
Cansada de ver posts assim, no dia 4 de junho a modelo paulista Thayná Santos se manifestou. Em seu perfil no Instagram, contestou o posicionamento de alguns estilistas, mais especificamente Gloria Coelho e Reinaldo Lourenço. Na sequência, as também modelos Camila Simões, Natasha Soares, Cindy Reis, Diara Rosa, Samile Bermannellie, Júnia Evaristo engrossaram o coro, confirmando as denúncias da colega e relatando suas próprias experiências de racismo, discriminação e abuso moral.
Em entrevista por e-mail, Gloria Coelho, estilista veterana do SPFW, diz: “O eurocentrismo cultural da sociedade brasileira formata uma certa narrativa branca. Eu compactuei com isso, sem nem perceber meus vieses inconscientes. Essas meninas estão certas, nossa sociedade precisa evoluir.” A estilista também se diz comprometida em tomar medidas internas para promover a inclusão de profissionais negros em suas equipes, campanhas e desfiles.
A reportagem de ELLE tentou contato com Reinaldo Lourenço, mas o estilista preferiu não comentar o caso.
Constrangimentos públicos, boicotes em seleções de trabalho, comentários depreciativos em relação à aparência física, sobretudo aos traços negros, e cachês consideravelmente inferiores aos dos brancos foram alguns dos pontos levantados pelas modelos. Dentre as profissionais que apoiaram de alguma maneira o movimento estão Deise Nicolau, Gracie Carvalho, Ana Barbosa, Natasha Soares, Natiele Alves, Mahany Pery, Liza, Gerlen Moura, Íris Camilo, Raissa Leme, Jessica Mara, Taya Nicaccio, Naiara Arcuri, Elen Santiago, Sayonara Romão. A lista cresce diariamente e é provável que, até a publicação desta matéria, outros nomes surjam.
Natasha Soares.Foto: Divulgação
“Ver posts em apoio à causa vindo de marcas sem nenhum ou com pouquíssimos negros em suas equipes, campanhas e desfiles foi um grande tapa na cara”, diz a carioca Natasha Soares a ELLE. “Não adianta falar que se importa com as nossas vidas e não fazer nada”.
Para Cindy Reis, a vontade de falar e debater os absurdos que viveu ao longo de sua carreira existe desde a primeira vez que sofreu discriminação dentro da indústria, há três anos. “Se autopromover e fazer marketing em cima de uma ação tão importante como o movimento #BlackLivesMatter é inaceitável. Foi então que fiz o que me parecia justo: tornar públicas informações e vivências reais, para que todos pudessem entender o quão problemático e cruel é o racismo de alguns profissionais do mercado da moda.” Desde então, conta ela, o retorno de colegas de profissão e da área tem sido uma supresa. “Tive e estou tendo apoio de toda a galera da indústria: desde renomados diretores de casting, fotógrafos, maquiadores, cabeleireiros e até mesmo marcas me parabenizaram e mandaram mensagens positivas. A resposta que tive da minha agência [Joy Model Management] me surpreendeu demais. Todos os meus bookers elogiaram minha coragem e postura.”
A pauta não é novidade. Nem na moda, nem no mundo. O racismo é estrutural e está presente em todas as esferas e camadas de nossas vidas. A diferença é que a atitude das modelos nas últimas semanas mostra que o silêncio não é mais aceito. Ele é tão cruel quantos os atos em si.
Cindy Reis.Foto: Divulgação
“O silêncio facilita a ação de opressores”, afirma a arquiteta, urbanista e colunista da ELLE Brasil Joice Berth. “A opressão é sempre expressa por uma relação vertical de poder, onde um está acima do outro. A linguagem pela qual essa relação desigual se comunica é a violência em diversas formas articuladas. E uma dessas formas é o silenciamento. Ele acontece porque quem silencia sabe que tem poder para excluir quem se manifesta. É um círculo vicioso e já viciado”, continua. Segundo Joice, a única maneira de garantir que haja um espaço para manifestações desse tipo é realmente o apoio dos próprios colegas do meio ou a repercussão popular – é preciso que todos estejam cientes de que essas violências acontecem.
“Existe um medo gigante de se queimar, de perder clientes, de ficar na geladeira”, diz Cindy. “Há o medo de sermos repreendidas por colocarmos a nossa posição. E nós também temos responsabilidades, a necessidade de nos sustentar. Tem meninas que ajudam famílias inteiras. Quando você coloca tudo isso na balança, dá para entender por que muita gente não se pronuncia.”
Diara Rosa conta que o medo sempre falou mais alto, embora não tenham sido poucas as situações em que foi vítima de racismo. Muitas vezes dentro da própria agência, na época, a Joy Model Management. Segundo a modelo baiana, alguns de seus pagamentos atrasaram sistematicamente. “Quando eu cobrava o que era meu por direito, recebia respostas debochadas, como se não devesse estar ali reivindicando”, afirma.
À reportagem, a agência escreveu um comunicado oficial que afirma que os atrasos ocorreram por inadimplência do cliente e que todas as dívidas com a modelo foram quitadas. “O nosso papel é o de intermediadores das contratações, promovendo e viabilizando prestação de serviços dos modelos para terceiros. Trabalhamos na viabilização desses trabalhos com suas respectivas formalizações legais, além de dispormos (sic) ao nosso time de agenciados todo o suporte necessário para que possam prestar serviços de forma segura, com contrato e, no caso de algum contratante descumprir qualquer acordo firmado, temos um time financeiro e jurídico que trabalha para fazer as devidas cobranças e honrar o que é devido aos nossos modelos. Quando acontece algum caso de inadimplência de um contratante, como este, nós nos empenhamos pra reverter, e pra honrar todos os acordos dos nossos modelos. Este caso específico foi por outro desvio de conduta, que é o descumprimento de um acordo já firmado. Este mesmo cliente atrasou não somente o pagamento da Diara, mas de mais modelos, de etnias diversas. Já o racismo é algo muito pior, abominável, criminoso, e que combatemos intensamente, em toda a nossa história. Se fosse aplicável neste caso e exclusivo às modelos negras do nosso casting, as medidas pra soluciona-lo seriam ainda mais duras.”
“Sem receber eu não tinha como me manter em São Paulo; quem me ajudou foi um grande amigo, que me deu casa, dinheiro e apoio. Além, claro, da minha mãe. Eu desabafava com ela, que sempre me apontou o racismo dessas condutas. E eu sempre dizia que um dia ia falar sobre isso”, relembra Diara.
As denúncias de abusos se repetem entre os entrevistados, até com profissionais já bem estabelecidos e com carreiras internacionais. “Assistindo a live da Natasha com o Paulo Borges [reivindicada pelas modelos que encabeçam o movimento], passou um filme na minha cabeça. De repente, muitas memórias vieram à tona e eu me lembrei do quanto tudo aquilo me machucou”, diz Carol Ribeiro. A modelo paraense, hoje sócia da agência Prime Model, iniciou a sua carreira em 1996. “Eu sabia que meu perfil era ‘exótico’ demais para o mercado, e que eu não iria trabalhar tanto quanto as modelos com perfil eurocêntrico.”
O início da carreira de Carol foi majoritariamente nas passarelas. “Diziam que eu não era vendável para fotos. Por muito tempo, eu até usei a frase que sempre ouvia – ‘você não é nosso perfil’ – como uma forma de proteção, mas aquilo entrou em mim e me marcou. Carreguei isso a minha vida toda”, revela. Segundo Carol, o apoio familiar foi essencial ao longo da carreira. “A moda nunca foi acolhedora, pelo contrário, foi muito excludente.”
A modelo Gracie Carvalho está no mercado há cerca de 12 anos, e estava inquieta com tudo o que observava nas redes sociais e já tinha vivido nos bastidores. “Quando vi o post da Thayná, pensei: é agora! Eu e minha geração não tivemos coragem de nos expor, mas agora não dá mais para ficar calada. Ver meninas sofrendo o que eu já sofri há 10 anos… Não dá mais”, diz. Ela afirma que também já passou por situações racistas com alguns nomes acusados.
No dia 2 de junho, data da ação virtual Blackout Tuesday, a marca By Helena Bordon convidou a modelo mineira Júnia Evaristo para um trabalho de última hora com cachê baixo e permuta. “Fui pesquisar sobre a grife e vi que havia pouquíssimos negros nas campanhas e comunicação, sem contar que qualquer produto custava mais do que o valor que queriam me pagar. Ficou claro, para mim, que era um convite oportunista”, explica a modelo. Após o ocorrido, Helena Bordon entrou em contato com Júnia para se explicar e pedir desculpas.
Em comunicado oficial enviado à reportagem, a By Helena Bordon alega que oferece a mesma remuneração para todas as modelos, sem qualquer distinção entre profissionais. “Enquanto marca, reconhecemos nossa responsabilidade em promover mudanças, assim como reafirmamos que estaremos hoje e sempre abertos a sugestões e críticas, através do diálogo”, continuam.
Júnia Evaristo.Foto: Divulgação
Júnia Evaristo é negra retinta, um perfil dificilmente representado por agências, marcas e revistas de moda. “Tentei entrar em diversas agências, nas maiores do país, mas nenhuma me aceitou. Diziam que não conseguiriam me vender ou que eu não era o que estavam procurando”, diz. Via de regra, o negro que ganha destaque na moda ainda hoje é aquele com traços finos e de pele mais clara. Esta realidade foi reportada e confirmada por praticamente todas as modelos entrevistadas.
Autora do livro Quando me descobri Negra, Bianca Santana é uma jornalista que explica este tipo de leitura, prática e exclusão frequente não só no meio da moda. No texto “Quem é mulher negra no Brasil? Colorismo e o mito da democracia racial”, publicado pela Revista Cult, ela descreve que “colorismo significa, de maneira simplificada, que as discriminações dependem também do tom da pele, da pigmentação de uma pessoa. Mesmo entre pessoas negras, há diferenças no tratamento, vivências e oportunidades, a depender do quão escura é sua pele. Cabelo crespo, formato do nariz, da boca e outras características fenotípicas também podem determinar como as pessoas negras são lidas socialmente. Pessoas mais claras, de cabelo mais liso, traços mais finos podem passar mais facilmente por pessoas brancas e isso as tornaria mais toleradas em determinados ambientes ou situações.”
O colorismo é um assunto com várias camadas, mas na moda é um fator que precisa ser discutido porque a indústria trabalha justamente com aparência e os impactos são grandes. Os cabelos são um exemplo. Não raro, modelos negras têm que alisar, esconder os fios crespos e até mesmo raspar as cabeças para conseguirem mais ou melhores trabalhos. “Você já se perguntou por que há tantas modelos negras de cabeça raspada?”, indagou esta semana a empresária e jornalista Cris Guterres, em sua coluna para o site Universa, do UOL.
Thayná Santos.Foto: Divulgação
Desde que Thayná expôs as práticas racistas que sofreu, diversos profissionais relataram suas experiências, anonimamente ou não. O perfil @modaracista, no Instagram, reúne uma série de relatos de abusos, discriminações e racismo. A exposição é necessária e urgente, mas vale ressaltar que as modelos responsáveis por iniciar o movimento não possuem relação com a conta. Elas apoiam as denúncias, mas criaram um grupo próprio, o #PretosNaModa, junto a colegas de profissão e outros profissionais da área. Até a publicação desta matéria eram 48 membros nesse grupo. “Estamos articulando pesquisas, desenvolvendo discursos e textos educativos para dialogar e explicar em quais pontos o mundo da moda está errado e como pode melhorar”, explica Natasha. “É importante dizer que não estamos trabalhando sozinhas. Temos intenções de mudar as regras, fazer o mercado mais inclusivo, que nunca mais seja como antes”, continua.
Essa ação em grupo é importante, principalmente porque a informalidade do trabalho de muitos profissionais da indústria da moda, como o das modelos, facilita que abusos se repitam e não sejam denunciados. Com ausência de sindicato, instituição e legislação precisa sobre as relações profissionais, não é fácil se manifestar, provar e responsabilizar os abusadores. “O poder do dinheiro é o que fala mais alto, essa é a verdade”, diz a advogada Valéria Santos. “É ele que determina quem ganha mais, quem se destaca.” De acordo com Santos, é essencial que profissionais negros se unam para exigir regulamentações trabalhistas junto a entidades como a OAB.
DISCURSO E PRÁTICA
A realidade é insustentável e mudanças são necessárias. Discursos de inclusão e representatividade ganharam destaque nos últimos anos, mas a prática ainda não condiz. O São Paulo Fashion Week já foi alvo de algumas ações judiciais no passado devido à ausência de modelos negros em suas passarelas. Em 2009, um acordo entre o Ministério Público e a semana de moda determinou um sistema de cotas nos desfiles: ao menos 10% do total dos profissionais devem ser negros. Ao longo dos anos seguintes, a porcentagem se manteve acima do limite estabelecido com consideráveis variações entre uma temporada e outra. Nas mais recentes, a contagem proporcional chegou próxima aos 30%, muito devido à presença de marcas jovens, independentes e a ausência das grifes tradicionais do mercado. Paulo Borges, criador e diretor criativo do SPFW, já falou sobre a criação de um comitê racial para o evento.
Na imprensa, e este veículo incluso, o cenário não é diferente. Apesar de pautas mais representativas e maior presença de negros em capas e editoriais, o número de profissionais colaborando e empregado nas equipes das principais publicações de moda do país é baixo.
“Enquanto não tivermos negros em cargos administrativos, nada vai mudar”, afirma Natasha. “Quando você tem um negro em um posto de liderança, ele traz pessoas e ideias alinhadas ao raciocínio antirracista. Não é só colocar preto na capa, na passarela, não é só usar negro como fonte para assuntos relacionados à cultura negra ou racismo. Nós falamos, fazemos e somos capazes de muito mais. Isso precisa ser refletido nas estruturas internas das empresas”, diz a modelo.
“É necessário ter pessoas negras em diversas camadas do mercado de moda”, explica a pesquisadora de moda e colunista da ELLE Brasil Hanayrá Negreiros. “Talvez esta pessoa não contribua efetivamente com uma pesquisa sobre negritude para a coleção ou para a criação da informação de moda, mas o corpo negro desta pessoa e as vivências que ela traz já fazem parte deste universo que contribui muito mais para uma diversidade”, ela afirma.
Estas verdades ecoam há tempos no mercado, mas ainda enfrentam resistências estruturais. São também o motivo pelo qual muitas práticas racistas persistem em diversas instâncias. Bruno Pimentel, stylist responsável por vestir celebridades como Majur, Cris Vianna, Marta Silva, Vaneza Oliveira, Maria Gadú, Letícia Colin, Fernanda Vasconcellos, Flávia Alessandra e Letícia Lima, conta que não foram poucas as vezes que foi perseguido e abordado por seguranças em shoppings de luxo de São Paulo, enquanto trabalhava. O entrevistado prefere não revelar o nome do estabelecimento.
“Estava fazendo uma produção para a revista de um grande shopping paulistano, quando fui abordado de forma grosseira pelo chefe de segurança e mais quatro agentes. Eram cinco seguranças abordando um homem negro. Sim, neste país, um homem negro passando um dia num shopping de luxo provoca estranheza. Todo prestador de serviço em um shopping tem de ter autorização para trabalhar ali dentro, mas a minha parecia que era para garantir a minha própria segurança.
Bruno Pimentel Foto: Divulgação
Segundo relatos do stylist, ele foi encurralado e questionado sobre o que fazia ali. “Perguntas como ‘quem te mandou aqui?’ ‘quem é você?’ eram completadas com ‘não pode andar aqui! Você não é bem-vindo! ‘ – e eu estava lá fazendo justamente a revista deste próprio shopping!”
Caio Sobral, stylist e produtor de moda também passou por situações racistas em sua carreira. “Já me pediram para realizar tarefas completamente contra o que acredito e desrespeitando minha negritude”, afirma. “Um dos casos que mais me marcou foi quando me convidaram para fazer um editorial com temática negra, mas contrataram também uma historiadora branca para atuar como um tipo de consultora. Já fiz muito trabalho com o qual não concordava porque tinha um aluguel para pagar. Dessa vez não deu.”
Caio Sobral Foto: Divulgação
Caio já vestiu personalidades como Vanessa Rozan, Talytha Pugliesi, Carol Ribeiro, Karin Hills e Nicole Rosemberg, Fabiana Gomes, Camila Fremder, Theodoro Cochrane e Federico Devito. Recentemente, ele assinou a produção de figurino do The Donna Summer Musical, com casting majoritariamente negro. A experiência deixou ainda mais clara a dificuldade de produzir looks para pessoas negras. Conforme depoimentos de ambos stylists ouvidos pela reportagem, algumas marcas e assessorias de imprensa hesitam em emprestar roupas para celebridades negras. “É difícil entender porque uma marca libera um vestido para uma branca e não para uma preta”, questiona Caio. “Meu trabalho como negro é dar voz às pessoas e marcas comandadas por negros. Não dá mais para apoiar marca racista e homofóbica.” Bruno acrescenta que, geralmente, só “liberam para o padrão europeu ou para quem mais se aproxima dele. Algumas marcas até tentam se atualizar, mas ainda enxergam o preto como ‘tendência’ e não como consumidor.
A criminalização de pessoas negras e algumas das origens do racismo é o tema da coluna de retorno da filósofa Djamila Ribeiro à ELLE Brasil. Ela explica justamente como esse tipo de memória social problemática proporciona, por exemplo, que um estilista negro seja barrado na entrada de eventos do qual ele mesmo faz parte. “Muitas vezes não é culpa do organizador e nem do segurança, mas de uma estrutura tão séria que aquela pessoa que me barrou simplesmente não está acostumada a ver um estilista negro”, diz Jal Vieira, que já foi impedida de entrar no camarim do próprio desfile.
Jal é uma das estilistas – e a única mulher – que integra uma célula de designers negros formada pelos participantes da Casa de Criadores, evento de moda focado em marcas independentes. A ideia partiu de Rafael Silvério, da Silvério Brand, com apoio e incentivo de André Hidalgo, idealizador e diretor da CdC. A motivação foi praticamente a mesma que levou as modelos a se unirem contra o racismo.
Em entrevista à reportagem, os estilistas que integram esta célula relataram um grande incômodo ao ver colegas do próprio evento postando mensagens de apoio à causa negra, muitas vezes mencionando apenas designers internacionais. “Ninguém lembrou da gente”, desabafa Weider Silveiro. Como podemos falar de inclusão se nem aqui estamos unidos”, questiona Rafael. “Era hora de nos fortalecermos, traçar estratégias: como ter um banco de dados de profissionais negros, estipular cotas de inclusão e também cuidar da saúde mental de cada um de nós”, diz.
Weider fala que um dos principais objetivos do grupo é dar suporte aos outros negros. “Eu tive muito menos referências de pessoas negras bem-sucedidas do que a nova geração. Minha referência de negro bem-sucedido era a Vera Verão e eu amo. Mas, naquele momento, eu não conseguia olhar para um negro e vê-lo como um estilista ou empresário de sucesso. Era sempre uma figura caricata, para entreter”, diz.
Look da coleção inverno 2020 de Weider Silveiro Foto: Agência Fotosite
Como em qualquer profissão, o acesso e ascensão de um negro é extremamente dificultado pelas estruturas racistas presentes em nossa sociedade. Fotógrafo e produtor de moda, Fredericonceptual (como preferiu ser creditado) foi um dos que usou as redes sociais para relatar abusos e experiências racistas ao longo de sua carreira. Natural de Belo Horizonte, ele se mudou para São Paulo em busca de melhores oportunidades no mercado. Mas a experiência não foi fácil. Após trabalhar em uma loja e em um estúdio de fotografia, ele ficou desempregado. “Nas entrevistas eu sempre ficava para trás e quem passava era uma pessoa branca”, conta ele, que teve que voltar para a casa dos pais, em sua cidade natal. Graças a trabalhos de marketing digital com marcas mineiras, ele conseguiu juntar dinheiro e hoje vive em Portugal.
Jal Vieira conta que participou de diversos concursos para conseguir uma ou outra vaga, mas sempre perdia para um profissional branco. “Talvez a minha roupa não fosse boa, mas quando isso acontece sempre, aí você se questiona”, diz. Fora do eixo Rio-São Paulo, o acesso é ainda mais difícil. Theo Alexandre, estilista goiano responsável pela Thear, passou anos tentando uma vaga na CdC. Após a conquista, os desafios foram ainda maiores: a cada temporada era necessário transportar toda sua produção para a capital paulista, onde acontecem as provas de roupas, ensaio, além do desfile em si. Para uma marca pequena, os custos de tudo isso são altíssimos.
“É importante compreender que as maiores mobilizações e mudanças no cenário nacional ultimamente têm nascido dos pequenos empreendimentos, então existe uma necessidade de estar próximo e estudar essas diversas novas faces que estão espalhados por toda extensão do país.” Quem diz é o estilista baiano Hisan Silva. Ao lado de Pedro Batalha, ele comanda a Dendezeiro, marca que acaba de integrar o line-up da Casa de Criadores. “O fato de não vivermos um padrão eurocentrista não significa que não somos capazes, que não abraçamos novas tecnologias ou que não temos valor. Estamos em uma nova era, com uma nova moda, novas ou contemporâneas formas de produzir e consumir. O combate ao racismo é especialmente atrelado a novas oportunidades para pessoas negras e indígenas. Existe aquele que já não é mais aceitável quando se fala de racismo, o perceptível, mas ainda tem muito nas entranhas, escondido na construção de todo um sistema que precisa ser combatido”, afirma o estilista.
A CONSTRUÇÃO E PERMANÊNCIA DE UM SISTEMA RACISTA
Na última semana, o fotógrafo Pedro Pinho também postou em seu perfil pessoal do Instagram situações de racismo que sofreu ao longo de sua carreira. Os relatos vão desde a marca exigir a entrada de assistentes pela portas dos fundos ao episódio em que um fotógrafo roubou uma foto dele e a usou com crédito próprio. “Nenhum desses atos existe num vácuo, ainda mais no Brasil. Todos estão relacionados à questão racial”, diz. “Eu sou negro de pele clara e já cheguei com alguns privilégios. Parece absurdo, mas eu falar inglês já é um fator para as pessoas me associarem a uma classe mais alta. Quando comecei, sempre via alguns disparates, mas, naquela época, a gente ainda tinha aquela mentalidade de ‘ai, o mundo da moda é assim mesmo'”.
Com o passar do tempo, Pedro percebeu que o mundo da moda de fato era e ainda é desse jeito. Mas isso não significa que está OK. Ele diz que a sociedade fica mais atenta às práticas conforme os anos passam e entende que isso corre junto ao entendimento de que este setor é extremamente classista. “Um ponto que a gente deve enumerar e que faz do sistema de moda excludente e racista é o espaço ser muito elitista”, confirma Hanayrá Negreiros. “Você vê a valorização apenas de marcas que geralmente trazem narrativas que dizem respeito sobretudo a um universo de referências brancas e eurocêntricas; a faculdade de moda no Brasil é muito cara, e as pessoas negras ainda são as mais pobres deste país. Faça a pergunta: quem tem acesso ao estudo de moda hoje no Brasil para virar um criador de moda?”, questiona.
Gabriela Stefany da Silva em retrato de Pedro Pinho publicado junto à matéria sobre costureiras transsexuais, na edição de março de 2018 de ELLE.Foto: Pedro Pinho
É este sistema elitista e racista que impossibilita que pessoas negras cheguem a espaços de poder. A estilista Jal Vieira, da CdC por exemplo, conseguiu concluir o seu ensino superior graças ao ProUni. Diego Gama, também estilista da CdC, lembra que o mercado ainda exige uma excelência incompatível com a realidade destes profissionais. “Raramente levam em consideração as limitações de uma marca comandada por um negro”, ele explica. Com acesso dificultado a linhas de crédito e investimento, há poucos recursos para manutenção de uma grande equipe e o próprio criador executa todos os processos.
Isso faz com que a moda, no Brasil e no mundo, siga comandada por poucas famílias, donas de grandes empresas e majoritariamente brancas. Pedro Pinho faz questão de lembrar que, por muito tempo, a moda viveu de “gatekeepers”: pessoas responsáveis por permitir acesso aos demais. Na moda, este tipo de “porta de entrada” é muito conhecido pelo velho “quem indica”. Em uma entrevista para a ELLE Brasil, em maio de 2018, a historiadora de moda nova-iorquina Shelby Ivey Christie explicou este hábito: “A contratação no mercado de moda acontece geralmente por indicações. E isso, em geral, implica em indicações de gente que parece com você. É necessário interromper esse ciclo de amigos que indicam amigos para colocar no lugar candidatos qualificados e diversos. Essa é uma maneira de impulsionar talentos negros”.
Desde que as denúncias das modelos vieram à tona, uma resposta comum de estilistas e marcas é o fato dos empresários empregarem negros nos bastidores de suas empresas: são costureiros, modelistas, assistentes. Isso é usado como uma justificativa para dizer que estas marcas são inclusivas.
Na pesquisa de mestrado de Hanayrá Negreiros, ela faz exatamente um resgate histórico deste tipo de prática e o que ele representa. Selecionando anúncios de jornais brasileiros do século 19, Hanayrá aponta como mulheres negras escravizadas eram anunciadas como costureiras, modelistas, empregadas para modistas brancas, então detentoras de lojas. “Isso faz a gente pensar em quem sempre costurou as nossas roupas, quem sempre esteve prestando este tipo de serviços: pessoas negras escravizadas. E ainda quando as mulheres negras eram livres, elas continuavam ganhando menos do que as profissionais brancas. É a mesma coisa, é a mesma coisa”, comenta Hanayrá, num link necessário entre o passado e o presente.
A pesquisadora ainda lembra que a ativista Angela Davis, na década de 1980, também levantou a relação das mulheres negras escravizadas com a costura nos EUA. É histórica a relação da moda com a população negra, mas sempre de uma maneira subalternizada na situação diaspórica, dados os processos de escravidão. “E é o que acontece ainda hoje. Ainda quando surge um estilista que se destaca, se cria uma narrativa cansativa, de que este estilista veio de um lugar de pobreza, uma narrativa que não dá vazão ao brilho de suas produções. Esta é uma situação em que nós temos que falar da história do Brasil, de um país que nasce para ser colônia de exploração, onde pessoas negras foram forçadamente trazidas para cá e submetidas a um processo de escravização durante mais de 300 anos. Não tem como o sistema de moda brasileiro não ser racista, se o país continuar a ser racista. As pessoas enxergam os pretos e não dão acesso porque o imaginário da sociedade brasileira é o mesmo de quando o primeiro preto pisou aqui nesta terra. A moda, como todos os espaços, seguirá sendo racista por muito tempo, se a estrutura não mudar.”
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