Com frizz, sem medo

"O frizz é uma das últimas coisas que você derruba da ditadura do liso", afirma a hairstylist Luciana Safro que explica, junto a outras profissionais, por que a cultura de combate ao frizz, que é especialmente intensa no Brasil sobre o cabelo cacheado e crespo, não faz sentido.


Solange Knowles com cabelo cacheado e com frizz
Foto: Getty Images



“Não lembro a primeira vez que a minha mãe passou uma química de transformação no meu cabelo, mas deve ter começado ali pelos 7 anos de idade”, conta Jacy July, afrohairstylist e influenciadora digital. “Eu só parei de usar química em 2017, então com quase 30 anos eu nunca tinha visto meu cabelo natural. É muito bizarro que em 27 anos da minha vida me fizeram acreditar que eu estava errada, esse cabelo é errado, esses traços são errados, essa cor de pele é errada.”

A experiência da comunicadora carioca não é exceção. Ainda que o Brasil seja um país onde 56% da população é negra, altamente miscigenada e plural, qualquer diferença do padrão de beleza europeu aqui é vista como uma falha. Em uma espiral de frustração e culpa, em busca de oportunidades de emprego e bem-estar, o povo passou a perseguir um dos maiores símbolos dessa beleza rígida: o cabelo liso. Mas mesmo após sessões e sessões que vão contra o aspecto e textura natural do cabelo, alguns fios rebeldes nos lembram do despertencimento latente.

Onde você vai com todo esse frizz?

Segundo a especialista em cabelo cacheado e crespo Gabriela Jorge de Oliveira, de 37 anos, mais conhecida como Gabbi Jorge, o frizz nada mais é do que um fio mais leve que os demais. Ela já adianta: não existe cabelo cacheado e crespo sem frizz. “Nosso fio tem três camadas; o cabelo cacheado e crespos têm a camada cuticular mais aberta e geralmente têm menos massa na composição, então é tendencioso formar mais frizz”, explica a tricologista paulistana. O excesso de frizz pode significar ressecamento, falta de massa no fio ou até deficiência de vitamina da pessoa, mas também pode ser só uma característica própria do cabelo. De qualquer forma, a batalha contra o frizz parece vir de um lugar mais sensível do que o autocuidado.

Um dia, Gabbi estava no salão de beleza e ouviu que uma cliente tinha passado amaciante de roupas no cabelo, na tentativa de domar o frizz. Das muitas, essa foi a investida mais extrema que já viu. “Ela passou e foi enxaguar no salão porque a tinham instruído passar e deixar.

Quando veio essa onda do óleo de coco, tinha gente que embebia o fio e ficava três dias com óleo de coco na cabeça porque o brilho encanta. Mas esse brilho exposto ao sol frita o fio. Esse óleo que faz o cabelo ficar pesado [e, logo, abaixa o volume], também desce para o couro cabeludo e, se você não lavar por uns dias, seu cabelo vai acumular poeira, resíduos e vai impedir o crescimento”, explica.

Cabelo cacheado e crespo: do começo

“Virei chacota. Estava em transição [capilar], que é um momento difícil de encontrar aceitação, querendo desistir a todo momento, chorava horrores. E não ter apoio de quem você espera ter deixa você mais fragilizada ainda ─ mas todas as pessoas são afetadas pela estrutura social, então se eu aprendi a odiar o meu cabelo, por que a minha mãe não iria aprender também?”, reflete Jacy.

A transição capilar é dolorosa, não fisicamente como é o alisamento, mas emocionalmente; é preciso coragem para se olhar no espelho e maturidade para rebater os comentários racistas. Entre as questões mais complexas da fase, Jacy descobriu que seu cabelo não forma cachos.

“Eu entrei nesses grupos de transição lá em 2014 e era muito isso: vamos aceitar os nossos cachos”, relembra a influenciadora. “Era aquele cacho Ana Paula Arósio que eu estava esperando, então a expectativa desmanchou na minha frente. Eu relaxei o cabelo de novo: não aguentei a pressão de não ter o outro cabelo que eles querem. Eu entrei na transição capilar porque eu queria um cabelo cacheado e isso foi muito prejudicial ─ mas, era o que estava sendo vendido, né?”. Logo, entrar em contato com outras pessoas crespas que também estavam conhecendo o próprio cabelo natural, pessoas que eram parecidas com ela, foi fundamental para Jacy. Quase que intuitivamente e na ânsia de compartilhar informações, ela começou a criar sua própria comunidade online.

Hoje, na sua aclamada conta do Instagram de quase 300 mil seguidores, a influenciadora digital ainda recebe cobranças em tom de sugestões — “por que você não faz uma fitagem?” é provavelmente a mais comum.

Existe uma pressão para definir os cachos, domar o volume, esconder o frizz, como se o cabelo crespo e cacheado só pudesse ser belo a partir de concessões, se conseguisse mascarar suficientemente sua crespice.

Gabbi Jorge atribui essa lógica a um traço cultural. “Quando você começa a usar seu cabelo natural, você não usa com todo esse volume, geralmente é uma finalização mais comportada, com um efeito molhado. Tem muitas pessoas que usaram o cabelo liso a vida inteira. Essa é a cultura brasileira. Para nós, o cabelo liso passa mais credibilidade, o cacheado mais comportado vai abrir mais portas”, comenta.

Jacy July tem um projeto chamado #EsculturaCrespa, que promove a autoestima por meio do resgate cultural de penteados afro feito em cabelo cacheado e crespo.

Jacy July tem um projeto chamado #EsculturaCrespa, que promove a autoestima por meio do resgate cultural de penteados afro. Jacy July

Por uma estrutura social racista, mulheres negras que usam seu cabelo natural têm menos chances de serem contratadas. Porém, o alisamento não é uma solução para esse problema, na verdade, não é nem uma medida paliativa ─ no máximo, é um indicativo de quão mal resolvida é a questão racial no mundo.

Hoje, existem consultorias feitas por pessoas negras para mudar regimes de contratação e ambientes de trabalho, com o objetivo de construir espaços que não sejam racistas. A responsabilidade deve ser uma agenda da sociedade, não do indivíduo negro. Ainda assim, as sequelas ardem.

“Na escola, trabalho, família, as pessoas achavam melhor eu ter um cabelo liso todo detonado do que um cabelo crespo saudável”, desabafa Jacy July. “Porque o cabelo crespo [para os outros] significava que eu estava desarrumada ou que eu não tinha dinheiro para fazer relaxamento.” Ainda que relembre a transição capilar com realizações difíceis de engolir, a conquista final é gratificante: a influenciadora afirma que não é especialista em cabelos, mas é a maior especialista que pode existir sobre seu cabelo crespo, que não cacheia, cresce para cima, imponente, forte e natural.

A ditadura em ruínas

O frizz é uma das últimas coisas que você derruba da ditadura do liso“, afirma a hairstylis Luciana Safro. “Para quem começa a transição, é muito difícil desapegar do liso, essas pessoas têm um apego afetivo ao cabelo, não querem cortar, não querem perder o comprimento, então às vezes você vê a pessoa literalmente no meio da ditadura do liso e da libertação da raiz. É um processo começar a ver que [o cabelo natural] tem frizz, fica desorganizado. A transição capilar é uma transição de pensamento, da própria identidade, de como olhar para si.”

Safro tem vasta experiência em salões de beleza, com todo tipo de cabelo, mas atualmente seu trabalho é também voltado para o mercado editorial. “Cabelo é muito sobre mim, minha profissão, o que é ser negro, o que eu quero mostrar, o que eu quero que as pessoas vejam, coisas que estão na nossa cultura há tanto tempo e que as pessoas sempre tiveram um olhar de crítica e racismo ─ e não conseguiam perceber a beleza”, reflete a profissional baiana. “Eu faço releitura de cabelos que usava na minha infância e as pessoas falam ‘nossa, que incrível. [A beleza] Sempre existiu, só que as pessoas nunca viram.”

Com a necessidade de isolamento social, muitas pessoas conseguiram abrir mão das rotinas de finalização de mil e um passos e aceitar o frizz como parte do aspecto do cabelo. A hashtag #NakedHair no Instagram já coleciona mais de 5 mil publicações com esse propósito: em sua maioria, são mulheres negras, de cabelo cacheado e crespo, espalhando mensagens de amor, orgulho e aceitação capilar, como estadunidense Jade Kendle, uma das precursoras do movimento.

De qualquer maneira, há quem ainda se preocupe muito com o frizz e não se sinta preparado para essa investida. E está tudo bem! Gabbi Jorge indica fugir dos mitos: hábitos alimentares, hábitos de lavagem e hidratação são os pilares de um cabelo saudável. No fim, segundo a tricologista, o melhor remédio para o frizz é relaxar um pouquinho.

Jade Kendle precursora da hashtag #NakedHair, posa com seu cabelo cacheado e com frizz

A influenciadora Jade Kendle @jadekendle

Jacy July fala em afrofuturo: ela comunica autoestima hoje para reverberar o orgulho preto de geração em geração. “Acho muito interessante o feedback de mães cuidando de cabelos de filhos, pensar como meus penteados inspiraram crianças a gostarem de penteados. A próxima geração já cresce mais ciente de si, da sua negritude, dos seus cabelos”, considera a influenciadora.

“Esse impacto que a gente está causando tem uma resposta tímida agora e a resposta real vem daqui 10, 20 anos. Que bom que a gente está fazendo um trabalho de base para balançar a estrutura.”

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes