Um guia para a não-definição dos cachos
Menos produtos, menos tempo na frente do espelho. Não, você não leu errado – aqui o papo é sobre dar adeus, de uma vez por todas, à obsessão pelo cabelo cacheado com o "cacho perfeito".
Enquanto assisto Maria Bethânia cantar “Não Mexe Comigo”, penso no que seria de toda sua potência se ela tivesse passado a vida preocupando-se com a forma de seus cabelos. Carol Castilho, cabeleireira especialista em cabelo cacheado e crespo, me lembra de como era difícil ser comparada, de forma pejorativa, à cantora nos tempos de escola – e se você for cacheada, assim como nós, sabe bem do que estamos falando.
Bethânia deve ter quebrado todas as regras que existem no quesito cuidado capilar. Zero definição, corte reto, muito frizz e volume. Se nos anos 1970 isso era considerado subversivo, há de se imaginar que em pleno 2021 teríamos conseguido nos resolver com a questão. Mas a verdade é que continuamos obcecados com um cacheado que só existe mesmo na imaginação.
O boom da transição capilar e do conteúdo sobre cabelo cacheado
É bem verdade que, de lá para cá, caminhamos um bocado. A grande virada para os não-lisos veio em meados de 2017, quando conversas sobre transição capilar se tornaram mais comuns. Um estudo realizado nesse mesmo ano pelo Google BrandLab, batizado de “A Revolução dos Cachos”, mostrou um crescimento de 232% na busca pelo encaracolado e de 309% pelo afro.
Na época, houve um aumento significativo de conteúdos sobre o assunto, tanto nas redes sociais, quanto na mídia. Foi principalmente com o YouTube, de acordo com este mesmo estudo, que nós cacheadas começamos a aprender o que hoje parece ser senso comum, mas que na época ainda parecia conhecimento de um mundo distante – não pentear os fios secos, trocar a toalha por uma camiseta macia e diminuir o uso de shampoo, por exemplo.
Ainda nos dias de hoje, o que não falta é conteúdo sobre o tema. No TikTok, só a hashtag “curly hair” soma 10,4 bilhões de visualizações e não faltam vídeos sobre rotina de cuidados e truques para alcançar a definição perfeita. A maioria envolve o uso de, em média, cinco produtos diferentes em quantidades absurdas, e técnicas para enrolar os fios, mecha por mecha, em bugigangas como tubos de espuma e canudos.
O excesso de regras para o cabelo cacheado
Quando você passeia entre gôndolas de farmácias ou lojas de beleza, mulheres cacheadas e crespas estampam embalagens aos montes, cena que há poucos anos seria completamente inusitada. Novos produtos foram criados e outros se popularizaram enquanto essa nova categoria ganhava força.
Mas não acredite que isso é mera coincidência. Uma pesquisa realizada pela plataforma Texture Media revelou que pessoas com cabelo cacheado gastam até 100% mais em produtos para o cabelo. Desses, 91% estão sempre em busca de novos itens para adicionar à rotina capilar.
Ainda que o movimento tenha nos ajudado no processo de autoaceitação e na compreensão de como cuidar dos fios, a contrapartida foi o excesso de regras, rituais e produtos colocados para nós: tudo que a gente acreditou que precisava para alcançar o que foi chamado de “cacho perfeito”. Esse, nada mais é, do que um padrão angelical, que parece ter sido tirado direto de pinturas renascentistas – comportado, brilhante, de preferência loiro, que forma caracóis abertos e totalmente definido da raiz às pontas.
Não é estranho ouvirmos frases como “controlar o volume”, “conter o frizz” e “domar os cachos”. Não à toa, o cabelo cacheado está sempre ligado a palavras de restrição. “Não pode ter personalidade, tem que ser discreto e, se possível, escondido. Lotado de creme ou amarrado. Os cortes indicados são sempre os que pesam e diminuem o volume”, lembra Carol Castilho.
“Base disso é o racismo na nossa sociedade. Pois quanto mais aberto o cacho, mais desejado e aceito ele é. Quanto mais fechado, mais ele se aproxima do crespo, que é o menos representado, menos visto na mídia e menos curtido nas redes sociais”.
Uma pesquisa realizada pela plataforma Texture Media revelou que pessoas com cabelo cacheado gastam até 100% mais em produtos para o cabelo. Desses, 91% estão sempre em busca de novos itens para adicionar à rotina capilar.
A expectativa do cacho idealizado atravessa o processo de autoaceitação desde a transição capilar. “Eu esperei ansiosamente pelo momento no qual eu faria o big chop e meus cachos finalmente surgiriam. Mas, como meu cabelo era totalmente diferente do que se vendia nas propagandas, eles não apareceram. Todas as finalizações que aprendi não funcionavam, porque ele não era cacheado, era crespo”, conta Jacy Carvalho, afrohairstylist e influenciadora. “Percebi que até para a aceitação do cabelo natural tinha um limite de curvatura”.
O que fica cada vez mais claro é que ter cachos só é tolerado se ele estiver dentro de um padrão muito específico. E este não aceita o crespo, o não-definido, o frizz ou o volume. Recebemos lembretes constantes de que, ainda que a gente consiga se livrar da ditadura do liso, a estética certinha e ordenada permanece controlando nossos fios.
Para a influenciadora Bruna Vieira, que compartilhou todo o processo de transição no Instagram, a cobrança também aconteceu. “Absolutamente todas as fotos que eu postava tinham comentários como ‘por que você não cuida do cabelo direito?‘, ou ‘seu cabelo está muito ressecado!’ quando na verdade a textura natural dele tem mesmo frizz, volume e personalidade”.
A maquiadora e influenciadora Stephanie Suero, que passou pelo processo de redescoberta dos cachos recentemente, lembra também como fios com textura não são considerados arrumados ou adequados para certos eventos. “Eu escutei muito: ‘Mas nossa, você vai ficar com o cabelo desarrumado?’. Quer dizer que a gente tem que usar 1 milhão de produtos, ferramentas e equipamentos, às vezes gastar duas horas do nosso dia, e só assim vamos estar dentro do que é aceito?”, questiona.
A verdade que não nos contam é que chegar nessa definição perfeita dá sim muito trabalho. “Não é apenas sobre a quantidade de produtos, mas o trabalho para deixar os fios assim. Tem que lavar ou molhar todos os dias, usar creme e gel em bastante quantidade, enrolar mecha a mecha (o famoso dedoliss), secar com difusor para garantir a forma. Sem contar as restrições – não sair no vento com ele molhado e evitar climas úmidos ou chuvosos”, explica Carol Castilho. E mesmo que você tenha os melhores produtos à sua disposição e horas disponíveis para dedicar aos fios, é possível que você não chegue nessa definição, já que cada cabelo cacheado é único.
“Em todas as fotos que eu postava tinham comentários como ‘por que você não cuida do cabelo direito?’, ou ‘seu cabelo está muito ressecado!’ quando na verdade a textura natural dele tem mesmo frizz, volume e personalidade”.
Cabelo cacheado dá mesmo mais trabalho?
Esse ponto, aliás, é comum entre todas as entrevistadas para esta reportagem. Aprender com outras pessoas e receber dicas ajuda no processo, mas o mais importante é olhar para si e entender o que funciona para você. “Testei diversas finalizações e truques para cacheados que não funcionavam no meu crespo. Ficava triste pois tentava encaixar meu cabelo num molde que não cabia, ele era maior que isso e carecia de cuidados específicos”, compartilha Jacy Carvalho.
Então, fica a pergunta: será que o cabelo cacheado e crespo dão mesmo mais trabalho ou é a gente que está buscando um padrão inatingível?
Além de encontrar soluções e maneiras pessoais de lidar com os fios, a palavra-chave me parece ser praticidade, já que para a maioria das pessoas é insustentável manter essa rotina elaborada no dia a dia. “Foi o único caminho para me dar bem com o meu cabelo natural. Testei todos os cremes da farmácia, encontrei meus favoritos e descobri um jeito de gastar menos de 5 minutos e ter um resultado que eu gosto ao vivo e nas fotos. Esse tempo que sobra eu uso em outras coisas importantes da minha vida”, conta Bruna Vieira.
Todo este papo é sobre tornar mais leve a relação com o cabelo. “Acho que é importante abraçar a realidade e não ficar vivendo na expectativa do que os outros colocam para você. Porque senão fica tudo muito pesado. Ao invés de se libertar, você vira refém de mais um padrão”, aconselha Stephanie Suero.
A verdade é que tudo que foge do controle e de moldes muito bem definidos assusta. Os dois espectros, o liso certinho e o cacheado angelical, excluem toda a forma de beleza que escapa ao controle. Os cacheados e crespos naturais são intimidadores porque não seguem regras. São selvagens, potentes e disruptivos – ainda bem! Que possamos deixá-los livres para os serem.
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