Transtorno dismórfico corporal: a feiura imaginária que causa sofrimento real

Traumas e pressão psicológica podem ser gatilho para distúrbio psicológico que altera a nossa percepção da própria imagem.


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Ilustração: Gustavo Balducci



Imagine como seria se toda ida ao banheiro provocasse em você um sofrimento enorme. Seja pela necessidade dolorosa de desviar do espelho para não encarar o próprio rosto, seja por sentir um magnetismo insuportável que lhe faz perder horas encarando um único detalhe do seu corpo por não se conformar com seu formato. Essa é a realidade de 1% a 2% da população devido ao transtorno dismórfico corporal (TDC).

“A pessoa vê uma falha ou valoriza muito uma pequena falha que os outros simplesmente não enxergam”, explica a psicóloga Maria José Azevedo de Brito, uma das autoras do livro Transtorno dismórfico corporal: a mente que mente. “Não é apenas uma vaidade, uma futilidade, uma simples insatisfação com o corpo. Não é isso. É algo muito desconfortável. É uma sensação subjetiva de feiura e inadequação, de ser observada pelos outros, é uma coisa muito forte que causa um sofrimento muito grande”, pontua.

Segundo o cirurgião plástico Alan Landecker, especialista em rinoplastia pela Universidade do Texas e membro titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, um das manifestações mais comuns é o paciente ter um incômodo excessivo em relação a uma assimetria de um milímetro entre as narinas. “Ele chega falando que não aguenta se olhar no espelho, que não sai na rua por esse defeito. É um desconforto desproporcional em relação a um algo mínimo”, comenta.

A dismorfia corporal é um transtorno mental

A psicóloga Maria José esclarece que se trata de uma condição mental que é deslocada para o corpo. Por não compreender isso, quem sofre TDC costuma procurar um cirurgião plástico, um dermatologista ou um odontologista para solucionar o problema. No entanto, de nada adianta alterar a parte física se não houver um tratamento psicológico já que o desajuste é, na realidade, psicológico. “Existe mesmo uma disfunção no processamento da informação visual. É algo neurológico também”, aponta.

“O paciente nunca vai estar satisfeito com a sua aparência corporal independente de como estiver o aspecto fisico, porque ele tem um transtorno de autoimagem. Ele se vê de forma distorcida”, comenta o cirurgião plástico. É muito diferente de quem acha a própria testa um pouco grande ou preferia ter os lábios maiores, por exemplo.

Se você consegue identificar essa característica que o incomoda dentro da face como um todo, consegue ver que existe uma harmonia, explicita a psicóloga. “Mas eles identificam apenas detalhes separados e os hipervalorizam, sem conseguir ver que aquele nariz fica bonito naquela face, por exemplo. Muitos enxergam seu rosto como se estivesse queimado: só com olhos, narinas e um traço”, descreve.

Sintomas do transtorno dismórfico corporal

O TDC pode se apresentar em vários graus. Nos casos leves, a pessoa consegue namorar, trabalhar e estudar, mesmo sofrendo com a própria imagem. Já nos mais graves, o indivíduo se isola socialmente, se compara muito e sempre se acha pior que os outros. “Esses pacientes, geralmente, têm uma vida muito restritiva. Se são mais jovens, não vão mais à faculdade ou ao colégio. Acabam ficando, literalmente, dentro do quarto”, relata Maria José.

A rotina deles acaba sendo afetada também pelo ponto de vista cognitivo, já que só ficam pensando na mesma coisa o tempo todo, sem conseguir prestar atenção em mais nada. A psicóloga conta que “são praticamente 24 horas do dia com os pensamentos todos direcionados para a aparência.” Alguns não gostam nem de trocar de roupa só para evitar tocar no próprio corpo.

Enquanto alguns evitam o espelho e não gostam de tirar fotos, outros passam horas se avaliando nos mínimos detalhes. “A imagem deles muda muito, é bastante instável, então a luminosidade ou a distancia que estão do espelho são muito importantes para eles”, explica a especialista. Nesse cenário, é comum que eles insistam em perguntar aos outros coisas como “você acha que meu nariz é deformado?” e tirem muitas selfies, geralmente com filtro, mas nunca gostem de nenhuma.

Já na consulta ao cirurgião plástico, é possível observar outros comportamentos recorrentes. “Um histórico de muitas cirurgias plásticas anteriores sempre levanta uma suspeita”, conta Alan. “Pacientes que trazem fotografias ampliadas, cheias de flechas e marcações, algumas vezes com ângulos diversos e luzes variadas. Esse excesso de perfeccionismo é desproporcional.”

Outro alerta é quando nem mesmo a simulação da rinoplastia no computador, com um nariz mais adequado ao rosto segundo o que é entendido como o padrão estético, agrada. “Se a pessoa não consegue enxergar isso e pede uma coisa bizarra, totalmente fora da proporção, você vê que ela não tem um bom julgamento da própria aparência”, comenta o cirurgião.

Causas do transtorno dismórfico corporal

Como em qualquer transtorno mental, três fatores estão associados ao desenvolvimento do TDC: genético, neurológico e ambiental. Ele parte de traumas psicológicos e pressões sociais que agem como gatilho em quem já tem predisposição à doença. Entre as causas mais comuns estão o bullying ou o abuso sexual. Grande parte dos pacientes relata que a insatisfação com o próprio corpo se iniciou após ter sido vítima de alguma dessas violências, revela Maria José.

Segunda ela, “há também uma porcentagem significativa de dismorfia corporal entre quem pratica esportes de elite ou balé, já que a profissão exige uma performance perfeita.” A imposição por um corpo impecável, por uma postura eximia e por movimentos realizados com extrema exatidão pode desencadear o transtorno em quem já tem tendência. “Isso não significa que todo atleta vai ter TDC, nem toda vítima de bullying e de abuso, mas que ele evolui em quem tem predisposição genética e neurológica”, reforça a psicóloga.

Diagnóstico do transtorno dismórfico corporal

Apesar de a grande maioria das pessoas que sofre TDC procurar procedimentos estéticos para tentar diminuir seu sofrimento em relação à própria aparência, apenas um psiquiatra – ou psicólogos e psicanalistas que estejam acostumados a atender esse tipo de distúrbio – é capaz de fazer um diagnóstico correto da situação. O cirurgião plástico, o dermatologista ou o odontologista pode até perceber sinais como os apontados por Alan, mas deve encaminhar o paciente para uma consulta com um profissional especializado em transtornos mentais.

A má notícia é que isso raramente acontece, já que a dismorfia corporal ainda é pouco conhecida pela população em geral e por profissionais de outras áreas da saúde. “Geralmente, eles falam ‘mas você não tem nada, está exagerando’, subestimando o sofrimento de quem foi pedir ajuda”, diz Maria José. E, mesmo quando há um encaminhamento, o processo é complicado já que o paciente crê piamente que o defeito está no corpo. “É difícil fazê-lo acreditar que é a mente que está fazendo ele se enxergar daquela forma, não os olhos”, lamenta.

Tratamento e cirurgia plástica no transtorno dismórfico corporal

“O tratamento é feito à base de psicoterapia, que pode ser tanto a terapia cognitiva comportamental quanto a psicanálise, e também de psiquiatria com medicação prescrita”, conta Maria José. Ela aconselha a todos que sentem uma insatisfação intensa com a própria aparência física a se interrogar sobre o motivo daquilo estar causando uma angústia tão grande e procurar ajuda. “É possível, sim, diminuir o sofrimento desses pacientes”, afirma.

Nos casos mais leves, a cirugia plástica pode ser indicada como parte do tratamento, pois a pessoa consegue enxergar a mudança e se satisfazer com ela em certa medida. Porém, não se deve operar quem tem um quadro moderado ou severo “pois ele nunca ficará satisfeito com o resultado”, alerta Alan.

“É consenso na literatura mundial que, nesse contexto, o indivíduo precisa ser encaminhado para tratamento psicológico e só pode fazer cirurgia caso seja liberado por esse profissional”, conta. Caso contrário, a situação pode, inclusive, se agravar – resultando em dor de cabeça para a equipe médica e mais sofrimento para o paciente.

Como é muito difícil identificar quem tem dismorfia corporal só pela primeira consulta, Alan decidiu contratar Maria José como psicóloga fixa da sua clínica para atender a todos que querem operar o nariz. Ele diz que a exigência é apenas para esse grupo porque, em rinoplastia, o índice de TDC pode ser de 20% a 50%, enquanto em cirurgia plástica geral é mais baixo, por volta de 5%. Dentro do valor da cirurgia, agora estão incluídas três consultas com a especialista, uma pré-operatória e duas pós para que a experiência seja mais tranquila e segura para todos. A iniciativa ainda é rara no Brasil, mas Alan espera que se torne cada vez mais comum.

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