“A saída tem que ser a mulher”, diz Gerald Thomas

Diretor encena F.E.T.O – Estudos de Doroteia Nua Descendo a Escada, que conta apenas com personagens femininas.


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Um dos principais diretores do teatro brasileiro, Gerald Thomas, 68, está em cartaz em São Paulo com F.E.T.O – Estudos de Doroteia Nua Descendo a Escada. A montagem faz uma livre adaptação de Doroteia, peça em que Nelson Rodrigues conta a volta da prostituta do título à casa das primas após a morte do filho, não sem uma condição fixada pelas anfitriãs: que a parente se dispa da beleza.

Por livre adaptação, entenda-se que o texto da década de 1940 aparece como um sopro fugaz, mais por suas grandes temáticas (pelo seu “entorno”, como define Thomas) do que por minúcias de trama e diálogos.

“A peça (original) é datada, irrelevante. A ideia do castigo imposto a uma mulher por ser bonita não faz sentido”, diz o encenador, que se interessou mais pelos voos surrealistas de algumas passagens, como a situação da personagem natimorta que, não notificada sobre sua morte prematura, prepara-se para um casamento.

“A saída (para os problemas do mundo) tem que ser a mulher”, afirma ele, quando o entrevistador pontua que os homens estão virtualmente ausentes da Doroteia dos anos 1940 – são apenas citados, nunca entram em cena. “O homem a gente já sabe que falhou. Agora vamos tentar outra coisa.”

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Cena de F.E.T.0.Fotos: Sesc Consolação

Sobre essa tela com leves pinceladas rodriguianas, Thomas (que também é pintor) acrescenta acenos ao artista plástico gaúcho Iberê Camargo (1914-1994) e ao papa do surrealismo, Marcel Duchamp (1887-1968). Mas as tintas mais densas ficam mesmo reservadas para as questões que acossam o diretor desde a década de 1980: a violência, a guerra (especialmente a máquina estadunidense), a decrepitude física e moral dos homens, a arte como válvula de escape inócua – e absolutamente indispensável.

O coquetel vem embalado em algumas das marcas registradas do “método Thomas”: texto hiperfragmentado, palco envolto em fumaça de gelo seco, uso recorrente da voz do diretor em off, intrincado desenho de luz, superposição de imagens na superfície desconexas… e doses sadias de autodepreciação. Uma das melhores cenas do espetáculo envolve um monólogo hilário (e improvisado) da atriz Ana Gabi sobre esse arsenal de ferramentas do encenador, nascido em Nova York e criado entre a metrópole estadunidense, Rio e Londres.

Em cartaz até 28/08 no teatro Sesc Anchieta, no Sesc Consolação, em São Paulo, a montagem dobra a aposta no “selo” Gerald Thomas, mas também delineia novos horizontes. A contenção dos diálogos e o número expressivo de cenas aéreas (em que duas atrizes dançam e gracejam suspensas por cabos) tornam o espetáculo um dos mais leves do diretor em termos visuais.

Na entrevista a seguir, feita por Zoom dias antes de Thomas vir de Nova York a São Paulo para acompanhar as apresentações finais da temporada de F.E.T.O, ele fala sobre as (não) expectativas em relação à eleição de outubro no Brasil, as dificuldades do governo Joe Biden nos EUA (o diretor se diz um obcecado por política estadunidense), a sua relação com o palco quando não está trabalhando (“eu não gosto de teatro; fico irritado, acho defeituoso, estático”) e adianta detalhes do projeto que desenvolve com Marco Nanini, que já esteve sob sua batuta em Um circo de rins e fígados (2005).

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Você tentou montar Doroteia com a atriz Beth Goulart em meados da década de 1980. Disse que sofreu oposição da viúva de Nelson Rodrigues à época. O que o levou a voltar a esse texto agora, quase 40 anos depois?
A minha produtora (Dora Leão) agora conseguiu os direitos. Não parei de pensar em Doroteia neste tempo todo. Não é que tenha havido um pulo, um silêncio de 1986 para cá. Sempre volto a ela, a Nelson. Fui ao Brasil em 1978 como representante da Anistia Internacional para visitar presos políticos e conversar com eles sobre tortura, acesso a advogados etc. Em um dos presídios encontrei (o militante político) Nelson Rodrigues Filho. Um ano antes, tinha ido ao Rio apresentar 4 Vezes Beckett, com Rubens Corrêa no elenco, e ele passou uma madrugada lendo em voz alta a obra completa do Nelson. E uma coisa que se destacou foi Doroteia. Fiquei interessado e descobri que ela tinha sido escrita para a Eleonor Bruno, avó da Beth Goulart. Mas não consegui comprar os direitos. Daí falei: “Quer saber, vai tomar no c* todo mundo!”. Fui fazer Electra com Creta (1986) e foi muito melhor pra mim, porque deu início à minha carreira de playwright (dramaturgo). Tinha feito Carmem com filtro (1986) com o (Antonio) Fagundes. Eletra foi o segundo nessa corrida pelo encenador-autor, solidificou alguma coisa.

Desta vez, finalmente tive a chance de montar Doroteia e, na hora H, falei: “Ah, não! É tão datado. Não preciso montar essa peça. Aliás, eu não vou montar essa peça, vou montar o entorno”. É irrelevante hoje em dia. A ideia do castigo imposto a uma mulher por ser bonita não faz muito sentido. Bobagem. É interessante, sim, uma personagem (a natimorta Das Dores) estar morta fora do ventre da mãe (e viver normalmente) ou a imagem de um jarro perseguindo uma pessoa (uma das passagens surrealistas do texto de Nelson). Tem um simbolismo surrealista curioso. O castigo, não. É uma forma cafona de salientar o pecado.

Em Doroteia, os homens estão praticamente ausentes. São citados, mas não aparecem. A saída para as crises de toda ordem que o mundo atravessa é feminina?
Espero que sim. Nós, homens, somos a grande desgraça do mundo. Só discordo que a gente não exista em Doroteia. Elas só pensam na gente, estamos onipresentes. Tudo é dito em relação ao homem, a tê-lo, agarrá-lo, beijá-lo, a partir em núpcias com ele. O que é a feiura, a beleza. É mais forte até do que uma presença física. A saída tem que ser a mulher. Tem que se dar essa chance, ao menos por algumas décadas. Se falhar, o próximo passo é uma outra coisa. O homem a gente já sabe que falhou. Agora vamos tentar outra coisa. Achava a (ex-primeira-ministra do Paquistão) Benazir Bhutto fantástica, assim como a (ex-líder de Mianmar e Prêmio Nobel da Paz) Aung San Suu Kyi. E não tenho nada de mal a falar da (ex-chanceler da Alemanha) Angela Merkel. Mas não gosto muito da Alemanha (sorri). Meus pais (ele, alemão, ela, galesa) sofreram muito com a divisão do país. Agora, por exemplo, Hillary (Clinton) eu gosto muito. (A vice-presidente dos EUA) Kamala Harris, gosto também.

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E Dilma Rousseff?
Conhecia desde antes por ter sido presa política e por causa do meu trabalho com a Anistia Internacional. Mas o governo, eu não acompanhei muito, não. Não acompanho política brasileira, e não é por esnobismo. Não tenho confiança, acho um conchavismo… é um disse-me disse danado sobre aliança, acordo. Não consigo levar a sério esse bando de bigodudo barrigudo discursando no plenário. Gosto do (ex-deputado federal Fernando) Gabeira, mas não consigo levar aquele bando de brega crente a sério. Não conseguem falar. É tétrico.

F.E.T.O é uma de suas peças mais leves. Há um aprofundamento do humor autodepreciativo que já vem de alguns anos, várias cenas em que atrizes são suspensas por cabos para executar delicados balés aéreos, além de diálogos bem enxutos para os seus padrões. Os tempos atuais te deixaram sem palavras?
Não. Na verdade, quis olhar para Nelson como uma criança. Tem vassoura passando em cena, um zepelim, um palhaço. É como se fosse Alice in Wonderland (Alice no país das maravilhas), só que em Auschwitz. Uma criança vendo Nelson Rodrigues em Auschwitz, no meio de uma guerra. Esse é o setting, o ponto de partida. Como uma criança não lida tanto com palavras, surgem essas imagens encantadas e macabras. E o humor vem do fato de o teatro ser uma bobeira, uma bobagem, séria, mas ainda assim bobagem.

Então não é algo que vá prosseguir necessariamente em trabalhos futuros…
Acho até que vai. Doroteia conseguiu abrir em mim essa porta infantil através da qual eu posso continuar investigando esse inferno, mas de uma forma mais leve. E é um ponto de vista que não é menor, inferior a nada – e é muito pouco explorado por nós, artistas de teatro, que tentamos ser sempre tão maduros. Se a gente se coloca num lugar mais vulnerável, como aliás aconteceu nesses dois anos de pandemia, é uma boa projeção.

“Não consigo levar a sério esse bando de bigodudo barrigudo discursando no plenário”

Mesmo acompanhando só de longe a política brasileira, qual é a sua expectativa para a eleição de outubro? O que espera de um possível governo Lula?
Não tenho grandes expectativas em relação a nada. É uma bobagem ter expectativas, porque você vai levar porrada na cabeça. De alguma forma, vai haver decepção. Converso muito com motorista de táxi aí no Brasil na hora de ir pros ensaios. Eles são violentos, veem a mídia como inimiga do povo. Não tem jeito de conversar. A burrice paranoica é a dona da verdade. É teoria da conspiração com olho arregalado. Acho uma loucura esse cassino da política, de colocar todas as fichas no mesmo espaço (no mesmo candidato). Nada no mundo é resolvido assim. Canonizam, santificam o Lula. “Lula! Lula!” Falam com a voz dele. O cara não tem mais defeito nenhum, é a solução. Até que, dois meses depois, não é mais. Acho que temos que ter duas coisas na vida: Nutella e cautela. Um é gostoso, e o outro, prático.

E o Biden, como você avalia essa quase metade de governo dele?
Vejo ele como um automóvel tentando se manter na pista, atrás daquele ônibus sem controle que era o Trump. É difícil suceder a um louco desvairado. O Trump é um fora-da-lei, um Jesse James, um Bonnie, do Bonnie & Clyde, um justiceiro. Ele quer quebrar os Estados Unidos. O Biden está tentando colar os cacos da porcelana que esse filho da p*** tentou quebrar. Iconoclasta no poder é um absurdo. É a contradição em termos, o ódio no poder, o ódio ao povo no poder. O Biden tem problemas de velhice, de carisma, parece que tá sempre chorando. Bota logo um capacete da Nasa nesse homem, gente. Mas é super bem treinado, foi senador por 40 anos, vice-presidente por dois mandatos. Acho que ele sabe o que está fazendo.

“Eu não gosto de teatro. Eu uso o teatro porque está available to me (disponível para mim)”

O que você anda assistindo no teatro? E no cinema?
Eu não gosto de teatro. Eu uso o teatro porque está available to me (disponível para mim). Quando vou ver um amigo ou amiga, fico irritado, acho defeituoso, estático, sem movimentação. Fico olhando para todos os lugares, menos para onde está o foco de luz. Não consigo. Ao cinema eu vou mais. Porque está pronto, posso me levantar, comprar pipoca. Mas vejo mais no meu computador. Acho avião o melhor lugar para ver filme. Gostei de Green Book: O Guia, vejo vídeos do (cineasta underground) Kenneth Anger no YouTube. Adoro o David Lynch. Tudo o que você acha que eu adoro eu adoro mesmo. Sou muito fã do (grupo de humor inglês) Monty Python. Meu grande ídolo é Robin Williams (1951-2014). É uma bomba que explode para todos os lados e depois suga de volta os estilhaços. O comediante inglês Kenneth Williams (1926-1988) também.

Você tem um filme para fazer com o Marco Nanini, Traição
Sim. Ele faz os sete personagens. Tudo acontece dentro de uma ambulância. O ponto de partida é um cara que teve um treco, um meltdown, porque recebeu a notícia de que foi escolhido por um partido para ser candidato a presidente da Inglaterra. Daí na ambulância, a caminho de uma audiência com a rainha, ele percebe: “Peraí, não tem presidente na Inglaterra”. É uma trip “alucinogênica”, um nascimento para ele. É um filme que também vai ser peça. Primeiro, no streaming. Só não me pergunte como.

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