Psicodermatologia: mente sã, pele sã?

A constatação da conexão entre saúde mental e física tem levado especialistas a adotarem tratamentos globais, inclusive para a pele.


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Em junho deste ano, a OMS (Organização Mundial da Saúde) divulgou o seu mais extenso relatório sobre saúde mental desde a virada do século. As informações do documento revelam dados alarmantes. Exemplo disso é o fato de que, em 2019, quase um bilhão de pessoas – incluindo 14% dos adolescentes do mundo – viviam com algum transtorno mental. Some isso à pandemia da Covid-19 que veio logo na sequência, o isolamento social, a eco-ansiedade e a alta do desemprego e o resultado é um panorama psíquico nada favorável. E, como sabemos, isso tudo se reflete no nosso corpo.

Claro, a visão integrativa da saúde não é novidade. “Ela remete à medicina ayurvédica, da Índia antiga, quando já se sabia que mente e corpo formam uma unidade em que uma parte influencia a outra”, explica o dermatologista Roberto Doglia Azambuja, formado pela Faculdade de Medicina da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e co-autor do título Psicodermatologia: Pele, Mente e Emoções, publicado pelo Grupo Editorial Nacional em 2014. “O próprio conhecimento popular já sintetizava esse conceito com definições como: ficar ‘vermelho de raiva’, ‘pálido de susto’, ‘verde de inveja’, ‘amarelo de medo'”, aponta.

Nessa abordagem, a pele é vista como um “órgão de expressão”, servindo de limite entre nós e o resto do mundo. “Por isso, os autores que trabalham com o tema são cada vez mais enfáticos ao sublinharem a necessidade de um olhar psicológico ao paciente dermatológico”, afirma a psicóloga Hericka Zogbi Jorge, mestre e doutora em Psicologia pela PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), e cujo extenso corpo de trabalho aborda pele e psiquismo.

Segundo suas pesquisas, estima-se que 40% a 80% dos pacientes atendidos em serviços de dermatologia experimental sofrem com alguma questão psicológica ou psiquiátrica importante. “Existem condições com origens exclusivamente psicológicas. São manifestações cutâneas de doenças psiquiátricas – como as mutilações e o skin picking (“cutucar” a pele)”, explica. “Além disso, há também as circunstâncias em que a pele responde a fortes fatores psicogênicos – caso da urticária, do eczema e até mesmo da acne, muitas vezes. A psoríase, por sua vez, depende de questões do ambiente ou da genética, mas o estresse também influencia na maneira como ela se revela”

A psicodermatologia como saída

“Por definição, o que tem se popularizado como psicodermatologia é, na verdade, um esforço integrativo, que se vale dos recursos da medicina alopática, da psicoterapia e de outras variedades e técnicas que possam colocar em equilíbrio o organismo humano, como a meditação, a acupuntura, a homeopatia, os florais, os movimentos físicos, os aromas, a nutrição, o repouso e tudo o que contribui para a sua harmonia”, sintetiza Roberto. Por carregar uma conotação holística no conhecimento popular, por vezes a psicodermatologia pode ser percebida como uma visão para-científica, o que é um equívoco.

Em resumo, hoje se sabe que os pensamentos são diferenciados no hipotálamo entre facilitadores e perturbadores. A partir daí, eles são transformados em moléculas químicas que vão até a hipófise que, por sua vez, produz mensageiros químicos de relaxamento ou de estresse. “Estes serão levados a todas as células, serão reconhecidos e, sob a forma de mensageiros secundários, chegarão até o DNA”, explica Roberto. “Dependendo da mensagem que levarem, esse DNA vai se modificar, podendo ou não produzir influências negativas a ponto de ativar um gene de doença e iniciar uma enfermidade.”

A correlação pele-mente é, portanto, comprovadamente legítima – mas ela também pode ser observada na eficácia dos tratamentos? A jornalista Karen Pereira (23), de São Bernardo do Campo, SP, sofre com dermatite atópica, uma doença crônica que gera alergias em algumas partes do corpo, desde muito pequena. “Apesar dos médicos falarem um pouco sobre [fatores emocionais], só fui entender realmente na adolescência”, relembra. “Tenho memória de quando mais nova, em época de provas, as alergias ficarem mais fortes. Depois de começar a trabalhar e fazer faculdade, em que a pressão e o cansaço eram maiores, tive as piores crises alérgicas. Com a pandemia o quadro também se agravou, devido a instabilidade emocional que eu vivia”, revela.

Depois de explorar por muitos anos diversos tipos de tratamento, ela finalmente encontrou uma combinação de medidas que, juntas, têm servido ao seu bem-estar. “[Tentei] vacinas, corticóides, diversos cremes e pomadas. Hoje em dia, faço uso de uma injeção nova no mercado, Dupixent, que mudou a minha vida. Também faço terapia há alguns anos, o que me ajuda muito a controlar e entender meus sentimentos”, ela conta. A terapia, que foi recomendação de seu alergista e de sua dermatologista em conjunto, é uma entre algumas das medidas psicológicas tomadas por Karen. “Além de exercício físico, tento fazer meditação algumas vezes na semana combinada com pequenos exercícios de respiração. Também já fiz consultoria de aromaterapia e utilizo óleos essenciais para controlar ansiedade.”

Na visão de Roberto, o primeiro tratamento em psicodermatologia é a própria relação médico-paciente. “Nessa relação, o médico tem que ser também terapeuta, para entender o que está por trás do quadro clínico e da história que o paciente lhe conta”, diz. “Os recursos a serem empregados vão depender da visão e do conhecimento do médico. A psicoterapia e a psicofarmacologia são os mais frequentes.” Nelas, técnicas de relaxamento, que o médico pode ensinar no próprio tempo da consulta, e meditação desempenham papel fundamental. “A hipnose clínica é um recurso muito simples e muito eficiente, em certos casos, bem como o encaminhamento para um homeopata ou um acupunturista”, acrescenta.

Apesar de ainda não ser amplamente adotada, o futuro da psicodermatologia é muito promissor, segundo os especialistas. Não à toa, em 2022, a revista Skin Health and Disease, referência na área, lançou uma edição especial dedicada exclusivamente ao assunto. “Nos últimos anos, o número de publicações científicas sobre o tema subiu bastante”, Zogbi constata. No PUBMED, uma base de dados que busca artigos da National Library of Medicine – National Center of Biotechnology Information, apresenta 230 artigos publicados no mundo sobre o tema entre 2017 e 2022 e apenas 131 publicados de 1971 a 2016.

“Acredito que as novas gerações têm buscado tratamentos mais globais e menos especialistas, que acabam por ver a pessoa apenas em partes”, constata Henricka. Para isso, o ensino da psiconeuroimunologia e da epigenética – que explicam comprovadamente como ocorre essa interação – terá de ser ampliado. “Ainda não é uma realidade”, lamenta. No Brasil, apenas ambulatórios específicos, como o de Dermatologia Sanitária, em Porto Alegre, incluem psicólogos diretamente nos tratamentos dermatológicos.

Em uma realidade em que a saúde mental tornou-se pauta incontornável, é apenas uma questão de tempo até que a vitalidade do corpo seja vista também como parte integralmente conectada ao bem-estar emocional. De acordo com os especialistas, até chegarmos lá, a desestigmatização de doenças mentais e conversas honestas que transformam tabus em oportunidades reais de tratamento são os melhores remédios.

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