Hiperpigmentação: quando manchas escuras te tornam alvo de gordofobia e racismo

Ainda há muita desinformação e preconceito ao redor desse assunto. Aqui, conversamos com mulheres que sentiram na pele o peso dessa violência e com dermatologistas para, finalmente, colocar os pingos nos "is" desta questão.


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Larissa da Silva Fontana, 25, percebeu que tinha algo diferente na pele de seu corpo aos oito, nove anos, por conta dos comentários de sua mãe. “Ela começou a reparar que eu tinha hiperpigmentação nas axilas e na virilha”, diz a pesquisadora e assistente de projetos de Campinas (SP). Na adolescência, quando Larissa começou a se relacionar romanticamente com outras pessoas, as manchas escuras começaram a lhe incomodar. “Principalmente as da virilhas e coxas. Nunca deixei de fazer nada, mas sempre tive receio de ser constrangida por alguém sobre isso usando um biquíni, por exemplo. Ou quando estou em um encontro com alguém que acabei de conhecer”, comenta. 

Porém, por mais que as manchas incomodassem, essa não era a maior questão para Larissa. O atrito entre as coxas grossas, que causavam feridas e ficavam bastante inchadas, era um problema mais urgente. Por isso, foi atrás de tratamentos para diminuir a gordura localizada na região, mas logo suas manchas se tornaram pauta das sessões. “A esteticista, que também era negra, começou a insistir para que eu fizesse tratamentos de clareamento, porque, segundo ela, as manchas estavam muito escuras”, narra. 

Mais do que uma questão estética, o que torna a situação bastante desconfortável para quem tem hiperpigmentação é o fato da condição estar relacionada a má higiene. “É algo que ficou bastante impregnado na minha cabeça. Tanto que é involuntário, quando tomo banho, as regiões com as manchas é onde esfrego com mais força. Tento controlar, porque sei que não é bem assim, mas é difícil tirar isso da minha cabeça”, desabafa. “Eu me sinto suja. Mesmo sabendo que não é sujeira, fico com receio também de que as outras pessoas pensem que é.”

Saúde ou preconceito? 

Devido a gordofobia, é comum que um gordo ou uma gorda receba pitacos não solicitados sobre a sua saúde com uma frequência desagradável. A diabetes do tipo 2, bastante relacionada ao sobrepeso, é a falsa preocupação número 1 dos gordofóbicos. Agora imagina se um dos “sintomas” estivesse estampado na sua pele? 

Katleen Conceição, dermatologista especialista pela Sociedade Brasileira de Dermatologia, diz que a hiperpigmentação pode ser causada por diversos fatores. “Nas axilas podem ser por irritação no uso de desodorantes e o próprio ato de depilar, utilização de roupas apertadas, pêlos encravados diabetes e até mesmo excesso de suor”, fala a médica. Foliculite e processos alérgicos também são pontuados como causas para o escurecimento de áreas como a virilha, coxas e pescoço. Porém, algumas manchas podem ser causadas por alterações hormonais ou por excesso de peso. E é neste ponto que, muitas vezes, a hiperpigmentação se torna mais um fator de preconceito para pessoas gordas – principalmente para as negras e afro-descendentes. 

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A acantose nigricans é um dos diversos motivos para o surgimento de manchas no pescoço e axilas. Suas causas podem ser várias: desde obesidade até hipotireoidismo ou hipertireoidismo, ovários policísticos e fatores genéticos. Ainda assim, muita gente acha que quem acantose tem diabetes, mas é claro que uma coisa não está 100% relacionada com a outra. A estigmatização da condição fica ainda mais evidente quando olhamos para a incidência dela: segundo estudos norte-americanos, menos de 1% das pessoas com acantose são brancas. A prevalência dela é maior entre latinos (5,5%) e afro-americanos (13,3%). 

A vendedora Diana*, 34, sempre teve hiperpigmentação nas axilas e no meio das coxas. Porém, seu incômodo ficou mais intenso quando ganhou 20kg e as manchas apareceram em áreas de seu pescoço. Ela já foi ao médico, fez exames e não, não tem diabetes. “Mas ainda estou investigando o porquê da hiperpigmentação ter aparecido também nessa parte do meu corpo”, diz. Negra da pele clara, Diana percebe que os olhares das pessoas se tornaram ainda mais julgadores. “É como se não bastasse eu ser preta, mas também ser ‘suja’”. Como trabalha com o público, ela tenta manter as manchas sempre escondidas. “Tenho medo de que achem que vou passar alguma doença para os outros e eu perca o meu emprego.”

Hiperpigmentação x colorismo

O tratamento da hiperpigmentação vai depender da causa dela. “No caso do excesso de peso, a própria perda de peso já diminui as manchas escuras. Se for diabetes, o uso de medicações e exercício físico irão auxiliar bastante nesse processo de pigmentação”, fala Katleen Conceição. Procedimentos com laser e uma investigação com alergista também podem ser abordagens interessantes. 

Larissa da Silva Fontana e Diana* têm histórias semelhantes no tópico busca por um tratamento: ambas já usaram vários produtos para tentar clarear as manchas. Alguns industrializados e, em outros casos, receitinhas caseiras que pareciam ser a solução de todos os seus problemas. “O mais recente foi o Bepantol. Mas também já usei muita coisa recomendada em grupos e sites, como o óleo de rosa mosqueta”, revela Larissa. 

Nas redes sociais é fácil encontrarmos produtos milagrosos para clarear as axilas, parte interna das coxas e pescoço. O mais recente é um sabonete chamado “Omy Lady”, vendido no Aliexpress, que faria o clareamento da virilha e a deixaria “cheirosinha”, de acordo com um TikTok que bombou na internet brasileira. Isto está longe, no entanto, de ser algo dos tempos atuais. A Dove tem, no mercado, um desodorante que promete clarear a região das axilas. Em países onde a pele clara é padrão de beleza, como Coréia do Sul, China e alguns lugares do continente africano, os fabricantes vão além: em 2014, por exemplo, a cantora Dencia foi a garota-propaganda de Whitenicious, um creme que seria recomendado para pessoas com hiperpigmentação, acne e juntas escuras, mas que, na prática, prometia deixar a pele mais clara. Até 2026, a indústria de clareamento da pele deve dobrar de tamanho e deve movimentar por volta de 12 bilhões de dólares, de acordo com a consultoria Global Industry Analysts Inc. 

É que a pele branca é o padrão hegemônico de beleza. Uma teoria que vem dos tempos do colonialismo, em que as pessoas escravizadas mais retintas faziam trabalhos braçais, enquanto as que tinham a pele mais clara, tinham funções mais “elitizadas” – apesar de serem igualmente oprimidas. Falamos mais sobre isso nesta reportagem.

Para Katleen Conceição, nem todo mundo quer clarear a pele para ficar mais próximo do padrão branco. “As pessoas querem uniformizar a pele, na busca de uma pele saudável e com mais viço, melhorando a autoestima”, fala a dermatologista. A hiperpigmentação, no entanto, se tornou mais uma camada e marcador de preconceito contra pessoas negras e gordas. E, segundo mulheres como Diana e Larissa, ela deveria ser mais discutida. “Talvez se tivéssemos modelos negras e gordas com hiperpigmentação em propagandas. Se ela deixasse de ser uma grande fábrica de dinheiro para a indústria da estética. Ou, ainda, se esse debate fosse mais comentado por profissionais e sociedade, iríamos ter oportunidade de acabar com os mitos que envolvem a hiperpigmentação”, comenta a pesquisadora de Campinas (SP).

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