Nu masculino ganha destaque no streaming

De Euphoria a And just like that…, séries vêm naturalizando homens sem roupa em cena, mas o motivo pode ser mais uma lógica de mercado e menos um avanço da sociedade.


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Arte: Gustavo Balducci



Euphoria (HBO) parece ter decretado: o nu frontal masculino está, definitivamente, deixando de ser tabu em produções audiovisuais. Ao menos nas plataformas de streaming. Em janeiro, a segunda temporada da série estreou entregando em suas primeiras cenas o pênis ereto de um homem de meia-idade, que é atingido por tiros enquanto recebe sexo oral. E com direito a close. No mesmo episódio, em outros dois momentos, houve nu frontal masculino. Se não foram determinantes, as sequências certamente contribuíram para fazer do capítulo o mais comentado de uma série de TV nas redes sociais, batendo o recorde do final de Game of thrones, em 2019. E homens pelados continuaram aparecendo na nova leva de capítulos de Euphoria.

Nos últimos anos, Oz, Roma, Game of thrones, The affair, Sense8 e Westworld, entre outras, já haviam exibido ocasionalmente o nu frontal masculino. Mais recentemente, Sex education e Normal people também mostraram. E os nus não estão restritos ao universo jovem. And just like that…, spin-off de Sex and the city que retrata as personagens aos 50 anos, trouxe dois homens pelados em um episódio. E justiça seja feita: as amigas nova-iorquinas não estão simplesmente “embarcando na tendência”. Há 14 anos, o filme que leva o nome da série catapultou à fama o modelo Gilles Marini, que interpretava o vizinho de Samantha (Kim Cattrall), graças à cena em que ele aparecia tomando banho nu de costas e rapidamente de frente.

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Cena da segunda temporada de “Euphoria”Reprodução

Com tanto pênis em cena, é comum ver as séries virando assunto não só pela história, mas por fãs querendo saber o que é prótese e o que é real. Sex/Life, lançada no ano passado pela Netflix, foi uma das que surfaram nessa curiosidade. A cena do ator Adam Demos e seus suposto dote físico ferveu nas redes sociais, muito mais do que a trama. Mas tanto ele quanto a autora da série, Stacy Rukeyser, sempre desconversaram quando perguntados sobre o que havia de verdade e de ficção naqueles vários centímetros à mostra.

Igualdade x fetichização

Entre os avanços feministas dos últimos anos e o aumento da presença de mulheres no audiovisual, os nus frontais masculinos acabaram se fortalecendo em cena. Na avaliação de Luciana Rodrigues, professora do curso de cinema e coordenadora da pós-graduação em gestão de produção e negócios audiovisuais da FAAP, embora seja positivo, o fenômeno está enraizado a uma lógica de mercado. “As mulheres sempre fizeram parte do audiovisual, só que isso foi negado, apagado. O nosso papel foi relegado àquelas funções que as pessoas não enxergam como essenciais, embora sejam, como a de montadora ou roteirista.” O modo como o nu chega à tela, afirma Luciana, levanta um questionamento: “Mostrar o ser humano verdadeiro não é um problema. A questão é quando você só transforma isso em mercadoria. Será que as obras audiovisuais não estão exibindo mais o nu masculino em um viés de fetichização, como sempre foi feito com as mulheres, mas agora para um outro público? Um público que o mercado passa a reconhecer como consumidor dessas obras, como o LGBTQIA+ ou o feminino?”, questiona a professora. “Acho que a gente costuma ver extremos com relação a corpos. De um lado, eles são tratados como mercadoria, e de outro, há uma defesa do nu. O Goethe falava que o único ser humano verdadeiro é o nu, que significa exatamente tirar o olhar erotizado sobre o corpo.”

Ainda que não seja a primeira a deixar os homens sem roupa em cena, Euphoria se destaca justamente por essa naturalização, equilibrando a nudez feminina com a masculina e mostrando os homens pelados em situações em que estão fragilizados e não necessariamente envolvem sexo ou sedução. Como o personagem do ator Ansel Pierce ao usar o banheiro durante uma festa ou o de Eric Dane, que, bêbado, urina na frente da própria casa e discute com a esposa, dizendo que se sente solitário. Em tempo: o primeiro contou no Instagram que não usou prótese, já o segundo, sim.

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A nudez masculina em “Euphoria” (HBO), “Sex/Life” (Netflix) e “And just like that…” (HBO) Foto: Reprodução

Para Carla Cecarello, psicóloga e psicoterapeuta individual, de casais e sexual, os mais jovens tendem a lidar melhor com essa naturalização. “Tenho uma percepção de que a sociedade está mudando, mas num ritmo bem lento. De alguma forma, esses seriados estão tentando ser mais ágeis para que haja uma aceitação melhor, mas o público acima acima de 30, 35 anos ainda não encara isso com tanta tranquilidade. É o que parece pelo que escuto nos consultórios.”

Motivadas ou não por demandas genuínas, mudanças como essa acabam alterando não só a percepção de quem assiste mas também a de quem produz as obras. “É impossível analisar esse fenômeno sem olhar para o que está acontecendo no mundo. Ao mesmo tempo, o audiovisual sempre teve o poder de pautar a sociedade. Para o bem e para o mal. Participo de um grupo, Mais mulheres na liderança do audiovisual brasileiro, e (o aumento da nudez masculina) é uma coisa que a gente observa e comenta”, conta Luciana.

As mulheres, ao saírem da posição de objeto de desejo para experimentar a de apreciadoras, também tendem a sair ganhando. “Boa parte delas se excita com o visual do nu masculino, até porque é algo tão fechado, tão misterioso. E a gente tem que considerar que muitas, principalmente nessa faixa de idade de 35 anos, às vezes não tiveram tantas experiências sexuais, viram pouco o corpo masculino, pouca diversificação”, diz Carla.

Para a psicóloga, mudanças podem surgir a partir daí. “Como (o nu masculino) não é algo comum ainda, pouco aceitável socialmente, tem aí um outro ponto positivo que é realmente mostrar que somos iguais. Por que só as mulheres podem ser alvo de desejo? Mas tem o outro lado, que é o que acontece com elas, de tornar aquele corpo um objeto apenas. Então, é preciso procurar um equilíbrio nisso.”

Revolução, mesmo, só quando todos os tipos de corpo forem vistos nus nas telas, opina Luciana. “Em geral, é um bando de caras musculosos, que culturalmente fomos educados a achar bonitos. Acho que a gente ainda precisa entender que o corpo não é só o magro, o branco, o jovem.” E a nudez masculina, avalia, ainda é mais respeitada do que a feminina. “O corpo feminino negro, por exemplo, sempre foi tratado com muito desrespeito. A partir do momento em que você tiver mais pessoas fora desse padrão ‘homem branco hétero cis’ fazendo filmes, terá cada vez mais grupos que historicamente foram minorizados dizendo ‘não aceito mais que me coloquem nessa posição’. Nosso corpo a gente tem independentemente da idade e não é no sentido da mercadoria, é de quem a gente é. Essa sou eu, com ruga, com ‘pneuzinho’. Essa sou eu e eu sou bonita”, encerra.

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