Gregorio Duvivier: “Humor e poesia são sanduíches que levamos para as trincheiras”

Ator, apresentador e escritor lança livro de sonetos para tratar do amor nos tempos do Tinder, defende a ocupação das ruas (depois de duas doses de vacina) e diz que a resistência política não pode excluir a festa.


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“Deste livro, veloz, me livraria,/ nada que encontras nele é necessário./ Não entendo o porquê da Companhia/ publicar tantos livros desse otário.” Estes são os primeiros versos que o leitor irá encontrar em Sonetos de amor e sacanagem. O autor, o que se autointitula otário, é Gregorio Duvivier, e o livro, recém-lançado pela editora Companhia das Letras, é o sétimo título publicado por ele. Ator, apresentador e escritor, ele se lançou agora o desafio de escrever poesias sob a forma dos sonetos, estrutura rígida que exige do poeta seguir a fórmula de quatro estrofes – dois quartetos e dois tercetos, todos com dez sílabas poéticas, que se contam a partir do som das palavras.

Trata-se de uma espécie de matemática da poesia, uma arte que começou no século 14, com Petrarca, e tem entre os grandes nomes no Brasil, Gregório de Matos, no século 17, e Glauco Mattoso, na era contemporânea (hoje com 70 anos de idade). Como um artista renascentista, Gregorio parece dominar todas as artes a que escolhe se dedicar sem grandes dificuldades. Está à frente de Greg News, programa que mistura jornalismo e humor, na HBO, e é um dos fundadores e ator do grupo Porta dos Fundos. O humor aliado ao bom texto flui em ambos os projetos. E é assim também nos 48 sonetos do novo livro, que cumprem à risca as exigências da métrica. A liberdade, como sugere a palavra “sacanagem” no título da obra, está no campo temático.

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Foto: Divulgação

Gregorio fala do amor nos tempos do Tinder, de Instagram e nudes, como no “Soneto do amor virtual”: “Há quem goste mais de homem, de mulher/ de animal, de cadáver, de apanhar,/ e há quem goste, como esse meu affair,// de manter relação com avatar./ Só me resta pensar: ‘fiz o que pude’./ Torcer pra, ao menos, receber um nude”. Ou ainda faz rimas com estrangeirismos no “Soneto da Faria Lima”: “Caro colega, peço que se informe:/ ninguém mais liga, agora faz um call. Ao invés de conversa, faz brainstorm,/ Até shopping, agora, chamam mall.””

Para ele, fazer sonetos é como manejar um cubo mágico, jogar sudoku ou resolver um quebra-cabeça. Em entrevista à ELLE, ele afirma que “a métrica fixa é uma restrição que liberta” e conta que deixou o cenário da política brasileira de fora do livro porque “precisava de um respiro, um alimento” – e humor e poesia, completa, são “sanduíches que levamos para as trincheiras”. O ator defende que, em 2022, ano de eleição, “nossa tarefa é resgatar a esperança”, sem excluir a festa, que é uma forma de resistência política. Ansioso para voltar a aglomerar, ele afirma: “A revolução será carnavalesca, ou ela não será”.

Por que escolheu escrever sonetos, uma forma considerada difícil dentro da poesia e pouco usada pelos poetas contemporâneos? Você tem uma relação específica com os sonetos?

Tenho, mas não de longa data. Comecei a ter essa relação com o (poeta) Paulo Henriques Britto. Foi ele quem me apresentou a forma fixa do soneto. Fiz um curso que se chama Formação de Escritor, na PUC-Rio e lá, em 2004, conheci o Paulo, que é, para mim, o maior poeta da nossa língua hoje. Nunca imaginei que ia começar a escrever sonetos, mas o Paulo me despertou o interesse pelas restrições. Acho que a restrição liberta. Na poesia, é muito fácil você escrever aquilo que já foi dito mil vezes, usar as mesmas imagens. Paulo diz que a primeira pessoa que rimou “estrela” com “vê-la” fez uma rima rica, e a segunda fez um clichê. A eficiência de uma metáfora está ligada ao frescor. A forma fixa te obriga a criar imagens novas, porque precisa caber no decassílabo, tem um esquema rígido de rimas e, graças a isso, você dá um drible nos clichês da subjetividade. A métrica fixa é uma restrição que liberta.

“Acho que a restrição liberta”

Muitos sonetos fazem menção ao confinamento. Como foi escrever em meio à pandemia?

Comecei a escrever sonetos lá atrás, em 2004, mas parei, até porque é um trabalho muito exaustivo. Parece um quebra-cabeça, um sudoku, um cubo mágico, que é outra paixão minha. Quando você ajeita um lado, desajeita o outro. Se você ajeita um verso aqui, vai ter que trocar a rima lá na frente. É uma conta mesmo, que parece muito um quebra-cabeça. Então, demoro muito para escrever, o que é uma delícia, é muito gostoso. É um tipo de trabalho braçal legal. Por isso, voltei a escrever na pandemia. Trancado em casa, com criança pequena, paramos de gravar o Porta dos Fundos. É um trabalho de exercício mental, e eu lembrei do prazer dele na pandemia. Aí voltei a ler os sonetistas para escrever: Gregório de Matos, que é espectacular, o Glauco Mattoso, que é o nosso sonetista mais produtivo, um obsessivo, e o Paulo, que é esse professor e poeta, para quem eu mandei o livro primeiro.

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Foto: Divulgação/Ana Alexandrino

Alguns sonetos são delicados, sobre o amor pela filha, por exemplo, e outros são escatológicos, sacanas. Como foi a escolha por esses temas?

O barato do soneto é que cabe tudo. É uma forma muito rígida, e quase todos os sonetos do livro são decassílabos. É isso que une todos: 14 versos decassílabos rimados. Mas os temas, em contrapartida, falam de tudo mesmo. Acho que tem um contraste engraçado você fazer um soneto sobre o pau mole, por exemplo. É curioso porque o soneto, normalmente, na nossa imagem, é solene, fala da torre de marfim na qual mora o poeta, das estrelas no céu. Você tem, em geral, temas mais transcendentes. Mas eu uso o soneto para falar de coisas muito banais, porque gosto muito desse contraste. Não que eu tenha inventado isso. Glauco e Gregório de Matos já fazem isso. Gregório, meu xará, colocava palavrão em soneto no século 17. Botar palavrão na poesia hoje, em verso de livro, não choca ninguém. Agora, o desafio para mim é encaixar um “caralho” num decassílabo rimado, no lugar certo. Acho que vira um novo desafio encaixar palavrão e anglicismos, rimar “Barra Square” com “tupperware”.

O livro não tem poemas sobre política, que é um tema quase onipresente nos seus outros trabalhos, o Porta dos Fundos ou o Greg News. Por que a política ficou de fora?

No livro, não tem política. Não tem exatamente porque, para mim, o exercício do livro foi encontrar um lugar fora da política, embora tudo seja política, claro. E o livro esbarra o tempo todo em questões de gênero, por exemplo, ou de paternidade, que são questões políticas, mas não a política institucional. Acho que tem uma hora que a gente precisa de um respiro, de um alimento, para continuar nas trincheiras. A poesia é esse alimento, esse sanduíche que você leva para dentro das trincheiras. Acho que foi a Laerte que falou uma vez: “O humor serve de munição para quem está nas trincheiras, mas também serve de alimento, pra gente continuar lutando”.

Mesmo fazendo poesia, com o Greg News principalmente, você não deixou de observar a política. Como avalia o final da CPI?

A CPI fez um grande trabalho, que foi falar sobre a pandemia todo dia. Tem que ter alguém falando sobre isso todo dia. Não podemos ter 600 mil mortes e falar de outra coisa. A CPI já teria feito um trabalho muito importante, mesmo que não tivesse revelado nada de novo, de ter repetido aquilo que não podemos esquecer: houve um genocídio e houve um governo que possibilitou e viabilizou esse genocídio. Essa cumplicidade do governo federal com o vírus ficou muito clara para todo mundo pela CPI, sem falar na revelação do caso da Prevent Senior, uma empresa de saúde que estava lucrando com a morte de idosos.

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Foto: Divulgação/Ana Alexandrino

Na sua opinião, as eleições de 2022 podem ser um momento de virada na política brasileira? Como o cidadão comum pode lutar para que seja um momento de virada?

Volta e meia a gente se pergunta: por que todo mundo foi para a rua em 2013 e, agora, que está muito pior, não vai tanta gente? A resposta está na própria pergunta. A gente não vai às ruas agora exatamente porque está muito pior, e a gente precisa estar um pouco bem para ir para a rua. Acho que agora a gente está ruim a ponto de não ter nem força vital às vezes para ir às ruas protestar, porque a gente acha que não vai dar em nada. Para o ano que vem, nossa grande tarefa é resgatar a esperança e tem que ser o quanto antes, não só em outubro. Tem que ser um trabalho desde já e que não pode excluir o humor, a festa. Agora já está podendo voltar a aglomerar. Já tem gente com segunda dose aglomerando, aí eu não julgo mesmo.

Você acha que essa ocupação das ruas como festa pode ser uma ferramenta política, bem como o humor?

Sim. A gente tem que começar a usar a tecnologia festiva que o Brasil tem e que é muito politizante. O Carnaval, por exemplo, é uma forma muito eficiente de fazer política, de fazer manifestações coletivas. A gente tende a achar que só as manifestações sérias valem, mas eu acho que não. A revolução será carnavalesca, ou ela não será. O que leva a gente para a rua é festa, e a festa não significa o recalque da tristeza, assim como o humor não significa o recalque da tristeza. Humor tem a tristeza dentro dele, e o Carnaval, também. Acho que foi o (jornal britânico) The Guardian que, em 2015, fez uma matéria na linha: “Brasil festeja, apesar da crise”. Eles estavam chocados, falavam: “O Brasil está festejando à beira do abismo”. Não entenderam nada do que é o Carnaval. Ele não existe por causa da opulência, da abundância, não é “Thanksgiving”, que você faz para agradecer a colheita. Assim como, no humor, você não ri porque está feliz. São ferramentas de revolta, a arma dos revoltados. O Carnaval só existe por causa do abismo. E quanto pior o ano, melhor o Carnaval, aliás.

“A revolução será carnavalesca, ou ela não será”

Você está pronto para voltar às ruas, deixar o confinamento? Tem algum receio?

Estou pronto. Ainda tenho um pouco de medo de ambientes fechados, mas, para ambientes abertos, estou pronto, sim. Estou louco para ir a um bom samba aberto. Já fui ao Bafo da Prainha (no centro do Rio de Janeiro) outro dia e foi espetacular. E quero fazer o lançamento do livro ao ar livre. Acho que já estamos com duas doses, isso é um sinal de que a gente tem que começar a ocupar a rua. Não necessariamente para voltar a economia, mas pela nossa saúde mental. Nós somos seres políticos, aglomerantes e gregários. Para mim, faz muito bem, e eu sinto muita falta. Além, claro, de viver de aglomeração. Eu sou ator de teatro, que é a arte da aglomeração.

Tem planos de voltar aos palcos?

Sim, morro de saudade. Amo fazer teatro. É uma alegria sem tamanho entrar no mesmo espaço, no mesmo tempo que 500 pessoas, e se locomover junto com elas de um lugar para o outro. É uma coisa comovente mesmo, segundo a origem da palavra, que é “mover junto”. É por essa comoção que eu escolhi essa profissão, e acho que é isso que a gente precisa como país hoje: sentir que estamos no mesmo barco. Volta e meia a gente tem a impressão de que cada um está vivendo uma experiência. A pandemia exacerbou isso, a gente ficou trancado em casa, cada um com seu celular, com sua narrativa. Cada um viveu de uma forma. Muito poucas vezes a gente sentiu que estava junto. A primeira vez que eu senti isso foi justamente no ato contra Bolsonaro, quando vi gente que não via fazia muito tempo, pessoas que eu conheço e que não sei o nome. Ali, senti que nós somos numerosos, somos muitos.

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