Como a falta de pesquisas excluiu peles negras de tratamentos estéticos

Segundo profissionais da área, a situação já melhorou bastante, mas ainda está longe do ideal.


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Ilustração: Mariana Baptista



Desde a adolescência, o vendedor Rafael Batista de Souza, 35 anos, batalha contra os sintomas de foliculite na barba. De remédios manipulados a depilação com cera quente, nada resolveu o incômodo com pequenas bolhas e manchas na pele. Após tentativas frustradas, finalmente um método prometia a solução do problema: tratamento com laser. Mas, ao procurar uma dermatologista, a aplicação foi contraindicada pela especialista por ele ser negro.

“Ela me disse que o laser era arriscado para mim porque ele poderia tirar a pigmentação da minha pele conforme eu fosse fazendo as sessões”, contou. Até hoje, Rafael tem dúvidas se pode ou não fazer tratamento com a tecnologia. “Eu preferi não fazer, para não prejudicar a minha pele.”

Utilizado em cirurgias de correção da miopia ao tratamento de câncer, o laser é praticado em diversas áreas da medicina desde a década de 1960. Na dermatologia, o feixe de luz passou a ser usado no final da década de 1990 e é hoje empregado em tratamentos estéticos para o rejuvenescimento da pele, combate à acne, redução de celulite e, principalmente, na depilação.

O médico e pesquisador americano Richard Rox Anderson, da Universidade de Harvard, é um dos pioneiros no uso do laser para a depilação. Em suas pesquisas, ele viu ser possível direcionar o laser para moléculas ou células específicas que, quando aquecidas, são destruídas sem causar danos à pele. Na maioria dos lasers, o alvo dessa energia – chamado cromóforo – é a melanina. Este método foi aplicado pela primeira vez em 1996 e, no ano seguinte, o FDA [Food and Drug Administration], órgão regulador dos Estados Unidos, aprovou essa tática de depilação para uso comercial no país.

Hoje, os métodos mais populares de depilação a laser ainda usam a melanina como cromóforo. Por isso, nestes casos, o tratamento é mais efetivo com pêlos mais escuros e em peles mais claras. O dermatologista André Moreira, que atende em consultório, em Brasília, explica que os lasers com afinidade à melanina não são proibidos para pessoas negras, mas não têm garantia de segurança com relação à hiperpigmentação ou manchas na pele.

“Pessoas negras têm o mesmo número de melanócitos, que é a célula que dá a cor da pele, de uma pessoa branca. Porém, os melanócitos são mais ativos e produzem mais melanina. Quando do uso determinado tipo de laser que vai jogar essa energia na melanina, o problema é que nós, negros, temos bastante melanina também fora do pelo, na pele. Então, aí vemos os problemas, como as queimaduras e cicatrizes inestéticas”, explica o médico.

No entanto, desde a descoberta de Rox Anderson até agora, os lasers evoluíram muito. “Temos diversos tipos de equipamentos que podem ser usados com mais segurança na pele preta porque o cromóforo não é mais a melanina. Por exemplo, para depilação, nós temos o Nd: YAG, que é um laser que o cromóforo, ou seja, o que puxa a energia é a hemoglobina, a célula vermelha do sangue. Então, eu destruo o vaso que nutre o pelo e consigo depilar a pele preta com segurança.”

Outro recurso que impacta na eficácia de um laser na pele negra é o tempo que os pulsos de luz demoram a atingir uma área específica da pele. Neste caso, o mais recomendado é a tecnologia de picossegundos, indicado para o tratamento de melasma, redução de olheiras e usado também na depilação. Como age de forma rápida e profunda, diferentemente da luz pulsada, esta tecnologia garante mais eficácia ao tratamento, pois consegue destruir a melanina sem causar danos à epiderme, a camada mais superficial da pele.

Discriminação e justiça

Mesmo com a evolução da tecnologia, a falta de orientação e informações adequadas podem afastar pessoas negras que buscam pelo serviço.

Há um ano, em novembro de 2020, a auxiliar odontológica Fernanda Batista recebeu um voucher de uma amiga para uma promoção que prometia as primeiras sessões de depilação grátis. Após um atendimento prévio por telefone, em que foi bem atendida, ela foi até a uma unidade da Espaçolaser em Itaboraí, município da região metropolitana do Rio de Janeiro. A empresa é a maior rede de depilação a laser do país e tem mais de 700 unidades no Brasil e América Latina.

Ao chegar ao local para fazer a avaliação para o procedimento, a gerente do espaço afirmou que aquela unidade “não atendia pessoas negras” e que Fernanda deveria procurar no Google um local que atendesse seu tom de pele. “Nem para avaliação pude entrar, falaram isso já na recepção mesmo. Foi um constrangimento enorme. Ninguém me explicou o motivo. Eu saí dali chorando, aquilo me atingiu muito”, contou à ELLE Brasil. “Aquilo mexeu muito comigo porque me lembrou de outro caso de racismo que tinha passado recentemente.”

Por vergonha, Fernanda não registrou boletim de ocorrência na data, mas foi incentivada por amigos e familiares a prosseguir com a denúncia. Neste ano, a cliente entrou com uma ação na justiça contra a Espaçolaser por danos morais. “Isso deve ser algo que deve ser evitado ao máximo, temos que ter muito cuidado. Já sofremos muito com racismo, em um país praticamente negro.”

“A tecnologia já existia, mas não tinha interesse em se fazer protocolos e estudos para que nós pudéssemos usar. E até hoje é um pouco difícil”, André Moreira, dermatologista.

O episódio desmotivou Fernanda a realizar o procedimento estético, mesmo hoje com a informação de que pode, sim, realizar o procedimento. “Fiquei com trauma, ainda hoje quando passo em frente a uma clínica, sinto raiva ou vontade de chorar”, conta. No site Reclame Aqui, há outros relatos semelhantes ao de Fernanda, de pessoas negras que buscavam tratamentos com laser e que não foram atendidas em clínicas de estética.

André Moreira explica que, independente da pele ser negra ou branca, o uso adequado do parâmetro faixa de energia é o que vai garantir resultados satisfatórios do tratamento. Mas, por muito tempo, não existiu um protocolo de segurança ou indicação deste parâmetro para todos os tons de pele, o que fez por muito tempo as pessoas negras estarem excluídas deste tipo de tratamento.

Para o médico, essa exclusão ocorreu pela falta de pesquisas voltadas às particularidades deste tipo de pele. “A tecnologia já existia, mas não tinha interesse em se fazer protocolos e estudos para que nós pudéssemos usar. E até hoje é um pouco difícil”, argumenta o dermatologista.

Em resposta à reportagem da ELLE Brasil, a assessoria de imprensa da Espaçolaser disse que “não comenta sobre processos judiciais” e reafirmou comprometimento com a “democratização de um serviço com tecnologia de ponta, que até pouco tempo não era acessível”. A empresa informou que investiu R$ 3,7 milhões para implementar, em 2020, o tratamento com laser Nd: YAG e oferecer atendimento a pessoas com fototipo 5 a 6, pessoas de pele negra segundo padrão da escala Fitzpatrick, que classifica a pele em 6 fototipos cutâneos de acordo com a quantidade de melanina. Antes disso, apenas o laser Alexandrite, que tem a melanina como alvo do laser, estava disponível na rede da empresa.

Estética aqui e lá fora

Sem referências de estudos em peles negras, dermatologistas tiveram que desbravar um caminho desconhecido para democratizar o atendimento. Pioneira no Brasil, a médica Katleen Conceição, dermatologista especialista da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), é hoje a maior referência no país sobre o tema. Quando começou a realizar o procedimento em peles negras, há quase duas décadas, a médica conta que não havia livros ou pesquisas empíricas específicas.

“Nunca percebi existir essa carência para pele negra. Eu acho que isso é até uma questão do racismo estrutural, que a gente não observa que a gente não está sendo visto”, relata a médica. “Mas quando eu fui ser chefe em um ambulatório de peeling, começaram a chegar muitas pessoas negras para mim. Então vi que era totalmente diferente. Eu fui estudar fora, fui procurar livros e cursos fora para poder atender a população negra que começou a chegar, em grande maioria, no meu consultório. Mas eu não tinha referências para dar aula, de livros.”

Por isso, a médica começou a fazer testes em sua própria pele para garantir a segurança de tratamentos tecnológicos. “Muitas vezes testei em mim ou no meu marido, irmãos… Eu falava que precisava da ajuda deles para que eu pudesse fazer uma avaliação de um laser. Foi um processo muito complicado e doloroso”, lembra a médica.

A grande dificuldade, pontua a médica, é o desenvolvimento da tecnologia em estudos em peles muito diferentes da brasileira, principalmente nos EUA e Europa. “A gente adquiriu uma máquina para depilação atualmente lá na clínica que, se você realmente for utilizar o parâmetro que eles indicam, você vai, realmente, estourar a pele negra. Porque eles não têm a noção que, mesmo nós sendo negros ou pigmentados, ainda somos bronzeados, porque somos um país tropical”, diz a médica. “Muitas vezes eu recebo no consultório que um produto é para pele negra, mas eu pergunto quem foram as pessoas voluntárias? Quem foram os profissionais envolvidos?”, questiona.

Redução da desigualdade

Empresas nacionais começam a oferecer equipamentos mais direcionados à pele brasileira. A empresa mineira LMG – Laser Medical Group – é uma das que oferecem equipamentos à classe médica feitos, com algumas peças importadas. Eles têm 180 funcionários.

O dermatologista Abdo Salomão, sócio e diretor científico da empresa, afirma que os produtos nacionais ajudam a democratizar o acesso à tecnologia, seja pelo custo do equipamento, mais barato que o importado, ou pelos estudos aplicados para a produção, com foco nas necessidades da população local.

“Uma máquina feita no Brasil tem como amostra a pele brasileira, então ela acaba sendo mais específica para isso. Justamente por isso que as máquinas brasileiras não perdem em performance para as máquinas americanas, por exemplo”, defende o empresário. “Hoje temos um corpo de engenheiros com uma formação em engenharia eletromédica, são profissionais que têm uma formação voltada, além de médicos, capazes de pegar essa tecnologia e validar para a pele brasileira.”

“Antes, indicar um simples filtro solar para pele negra era uma tarefa difícil, as empresas antes não observavam essa demanda”, Katleen Conceição, dermatologista.

“Antigamente, apenas as clínicas grandes e dos grandes centros, com maior poder aquisitivo, poderiam adquirir uma plataforma de laser. Hoje, com a entrada da indústria nacional, você vê que clínicas em cidades menores, com menos de 100 mil habitantes, também têm capacidade financeira de investir nessas máquinas porque o custo mudou muito com a produção aqui. Acho que isso realmente democratizou o uso no Brasil.”

Além da entrada das empresas nacionais, a médica Katleen Conceição também enxerga uma mudança no interesse de médicos e estudantes pelo tema. “Ainda está muito aquém do que é para ser, mas já está muito melhor do que quando comecei, há 18 anos. Hoje já existem congressos, fóruns, lives, empresas querendo fazer produtos”, diz a médica. “Antes, indicar um simples filtro solar para pele negra era uma tarefa difícil, as empresas antes não observavam essa demanda. E hoje já temos.”

A médica integra a Skin of Colour Society, que é referência em estudos para peles não brancas nos EUA. Além disso, chefia o ambulatório de dermatologia para pele negra da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, onde coordena um programa de especialização, criado durante a pandemia e com duração de 6 meses, com objetivo em formar dermatologistas na área.

André Moreira também enxerga a mudança de cenário que, para o médico, é resultado de uma pressão social. “A gente está gritando isso. Precisamos criar um espaço para pessoas pretas. As pessoas pretas querem consumir”, pontua o médico.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva em 2019 mostrou que as mulheres negras, por exemplo, movimentam cerca de R$ 704 bilhões por ano no Brasil. O valor, estimado a partir do cruzamento de dados de renda e consumo do grupo, representa cerca de 16% do consumo nacional.

“Existe um público se impondo, dizendo que também é consumidor e merece estar aqui, não só como trabalhador, de serviço, mas quer ser visto como consumidor. Eu acho que foi por isso. Tem uma parte do movimento negro que acredita que o consumo não leva ao fim do racismo, o que concordo, mas acho que precisamos estar presentes nos lugares.”

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