A letra que existe: o que os assexuais querem que você saiba

Para além do mito de que a assexualidade tem a ver apenas com a falta de sexo ou com problemas físicos e mentais, quem se identifica com o A da sigla LGBTQIAP+ pode ter relações estáveis e uma vida sexual ativa. Confira relatos e vivências de quem é muito feliz assim.


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“Então você não faz sexo, né?”
“Mas como assim você não transa?”
“É só praticar que você se acostuma”
“Há meses não transo com ninguém, acho que estou assexual, hahaha!”

Ouvir frases como essas, em tom de espanto ou piada, já foi, em algum momento, parte da rotina de quem se identifica como assexual, até mesmo antes de entender o que isso significa. Rodeada por mitos, a assexualidade é uma das identidades mais invisibilizadas socialmente e até mesmo dentro da própria comunidade LGBTQIAP+. “Ela não é uma patologia, não tem nada para ser ‘consertado’. Quem é assexual tem desejo e libido, mas não tem atração sexual, não tem atração pela prática do sexo. A sociedade se baseia muito em normativas, então existe um sofrimento social, a família questiona ou cobra por performance ou posicionamentos sexuais com os quais essa pessoa não se identifica; muitas vezes o parceiro dela não entende e não aceita seu lugar enquanto assexual. Então, ela precisa se afirmar e entender como se posicionar”, defende o psicólogo, pesquisador e educador sexual Breno Rosostolato.

Assim como a hetero, bi ou a homossexualidade, por exemplo, a assexualidade é autodeclarada. E a primeira coisa a se entender sobre o assunto é que ele não tem relação, apenas, com fazer sexo ou não, ideia clichê e parte do imaginário popular. “Essas pessoas canalizam sua libido para outros aspectos da vida e vivem muito bem, não existe sofrimento. Até porque, a vida sexual das pessoas é muito diferente, e os assexuais podem ter relacionamentos baseados no romantismo, em afeto, e eventualmente podem fazer sexo”, explica Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade (Prosex) da USP.

Outro ponto importante: a vida sexual de um assexual pode existir ou não, pois o ato sexual independe da atração ou do desejo, duas coisas que também são diferentes, conforme explica o advogado Walter Mastelaro Neto, de 34 anos. Ele se descobriu assexual aos 14 e, desde então, passou a estudar sistematicamente sobre o assunto. “Quando você olha para alguém, aquela pessoa ou várias delas te despertam uma vontade de fazer sexo e você tem isso como algo constante na vida – isso é a atração. O desejo é algo mais voltado para a sua satisfação, o seu prazer pessoal, uma excitação. É possível se satisfazer, por exemplo, com a masturbação, ou desviar esse desejo para outra coisa. Por isso é importante diferenciar, porque apesar de nós não sentirmos atração, nós podemos ter desejo”.

Área cinza: a pluralidade de existir

Em paralelo ao surgimento da internet, entre as décadas de 1990 e 2000, surgem também os primeiros grupos de assexuais pelo mundo. Criada em 2001, a The Asexual Visibility and Education Network (AVEN) vem para jogar luz às questões da comunidade, debater publicamente o assunto e oferecer um espaço acolhedor para assexuais, seus amigos e familiares, sendo considerada uma referência no mundo. Já no Brasil, um dos coletivos mais conhecidos é o Coletivo Abrace, em SP, criado pela designer gráfica Sarah Hannah, de 36 anos, ao lado de mais quatro pessoas, em meados de 2019. Segundo ela, o maior desafio é defender as pautas e garantir a liberdade e existência dos assexuais. “Não queremos que pareça, para o resto da comunidade LGBTQIAP+, que estamos tentando privar a liberdade sexual das pessoas. Já ouvimos essa acusação várias vezes! Até porque, quando a gente fala sobre sexualidade, não queremos falar que a gente não transa, não tem a ver com a prática. Queremos falar que existem pessoas que não se atraem sexualmente, sobre o estupro corretivo de assexuais e também sobre o acesso à saúde, porque existem problemas estruturais que impedem isso. Por exemplo, pessoas com útero, que são lidas como mulheres, vão ao ginecologista e não têm acesso a exames importantes se não disserem que tem vida sexual ativa, e precisam mentir”, conta ela. Recentemente, em suas redes sociais, a Abrace lançou uma campanha voltada para profissionais da saúde física e mental, com o objetivo de despatologizar as pessoas assexuais.

Em 2016, uma pesquisa comandada por Carmita Abdo à frente do ProSex apontou que sete em cada 100 mulheres, e três em cada 100 homens, não tem interesse em ter vida sexual. “Foi um levantamento feito com milhares de brasileiros em todo o país, perguntando sobre vários aspectos da sexualidade. É um número bastante expressivo quando pensamos nisso, levando em conta o tamanho da população”, aponta a psiquiatra. Estudos feitos pelo pesquisador Alfred Kinsey, na década de 1940, e pelo sexólogo Anthony Bogaert, em 2004, apontam que pelo menos 1% da população mundial não querem ter relações sexuais.

As particularidades e a diversidade que permeiam a assexualidade são tantas que, dentro dessa identidade, outras foram sendo descobertas; entre a alossexualidade, onde estão os indivíduos que sentem atração sexual constante, e os assexuais estritos, que nunca sentem essa atração, existem aquelas dentro do que se conhece como área cinza. “Existem graduações, que dão a tônica plural e as diferentes formas de se relacionar e sentir desejo, de se identificar e se expressar socialmente. Dentre as mais conhecidas, estão a demissexualidade, na qual pessoas se permitem ter relação sexual mediante a criação de um vínculo afetivo; os assexuais fluidos e greyssexuais, que transitam dentro dessa área, podendo ter ou não relações sexuais; e os assexuais estritos, que praticamente nunca sentem atração”, fala Breno.

Abaixo, você confere relatos em primeira pessoa de quem se identifica dentro dos espectros da assexualidade, um pouco sobre suas vivências e relacionamentos afetivos.

Walter Mastelaro Neto, 34 anos, advogado:

“Eu me identifico como assexual estrito e bissexual, sempre soube que gostava de pessoas independentemente do gênero delas. Na adolescência, meus relacionamentos iam sempre para a prática sexual, e eu percebia que não me despertava interesse. Minha primeira experiência foi aos 14 anos, com uma garota, depois com garotos… Eu não posso dizer que foram ruins, porque eu cheguei ao orgasmo, mas ao mesmo tempo, não me trouxeram satisfação e me deixaram incomodado, porque as pessoas que estavam comigo sentiam diferente, e isso gerava conflito. Me diziam que eu era uma pessoa fria, quebrada, por não sentir o que elas sentiam. Aos 18, entendi que sexo não era para mim e eu não iria mais transar. Eu não gosto, não tenho interesse e sigo com a minha vida. Cinco anos depois, passei a estudar a sexualidade e descobri o que era ser assexual. É complicado explicar que você gosta de alguém e não é só amizade, explicar o amor sem sexo; essa sexonormatividade afeta todo mundo, e assexuais expressam seus afetos de formas diferentes. Falamos sobre atração sensorial, sensual, que não são entendidos como sexuais. A gente tem uma linha bem definida que passa por algo íntimo. Hoje estou solteiro, mas tive sorte porque, depois de entender minha sexualidade, sempre consegui conversar e me entender com quem estava comigo.”

Sarah Hannah, 36 anos, designer gráfico:

“Me entendi demissexual na época da faculdade, quando um colega comentou se identificar assim e eu fui pesquisar para saber como lidar com ele. Inicialmente, eu não sabia de nada, porque achava que assexual era quem nunca tinha feito sexo. Eu comecei a minha vida sexual muito cedo, ainda na adolescência, e achava que havia alguma questão moralista por não me atrair pelas pessoas antes de conhecê-las, criar um vínculo. Não via sentido em estar atraído por alguém sem um contexto, então, eu me percebia diferente das outras pessoas. Por isso, eu era até muito ativa, porque achava que podia ser algo mal resolvido dentro de mim. Enfim, isso é muito danoso, porque em quantas coisas me meti desnecessariamente por causa disso…

Eu sou não-binária e pansexual, o gênero não era uma questão para mim. Fui casada durante alguns anos, e quando essa relação terminou, fiquei um bom tempo sem sair com ninguém e foi minha fase mais livre, leve e feliz, porque eu estava estudando muito sobre a sexualidade e me livrando de tudo que me prendia. Entendi que não preciso fazer terapia para essa questão, nem tomar hormônios, não preciso transar com mais pessoas ainda pra ver se algo muda, porque eu não tenho nenhum defeito. Nesse caminho eu conheci minha esposa, que hoje também se entende como demissexual, então, é muito curioso perceber que quando alguém fala tranquilamente sobre o assunto, sem tabus, abre o diálogo para que outras pessoas se entendam melhor.”

Fernanda Ribeiro, 33 anos, advogada:

“Desde a adolescência, nunca fui namoradeira, nunca me achei romântica ou tive esses sonhos padrões. Sempre achei estranha essa dificuldade em me relacionar, como as meninas da minha idade faziam. Eu namorei dos 15 aos 20 com um rapaz com quem tive meu primeiro relacionamento sexual, depois tive uma outra paixão avassaladora, mas demorava para transar e me questionava sobre isso. Aos 21, comecei a namorar meu atual namorado e, após uns oito anos juntos, começamos a frequentar casa de swing e baladas liberais, porque eu estava sempre numa busca de tentar entender o que acontecia comigo. Nunca tinha ouvido falar em demissexualidade até uma amiga tocar nesse assunto comigo, e aí fui atrás para tentar entender. Eu preciso ter uma conexão, um vínculo para transar, e essa minha descoberta é recente. Eu ainda não entendo isso muito bem… Se o meu relacionamento acabasse hoje, eu teria uma dificuldade imensa de ‘cair na vida’, talvez eu tenha que me adequar.”

Lórien Rezende, 37 anos, petsitter:

“Sou uma pessoa não-binária e assexual estrito, nunca senti atração sexual. Descobri há alguns anos que sou assexual, mas durante uma fase muito curta da minha vida, quando mais jovem, tive interesse em participar de atividades sexuais com o parceiro que eu estava na época. Depois de um tempo, isso passou e eu fui tentar descobrir o que estava acontecendo, porque não tinha mais vontade, e nada do que eu fazia resolvia. Os hormônios estavam normais, a psicoterapia não ajudou. Então, me analisando mais calmamente, aos 21 anos, percebi que foi uma fase que fiz sexo não por sentir atração, mas porque queria provar para mim mesma que eu era adulta. Achava que todos os adultos tinham que fazer sexo. Hoje, se eu tiver um encontro e, entre as opções, for em um bar ou motel, vou para o bar 99,9% das vezes. Fazer sexo não é uma necessidade minha e eu fico muito bem sem. O principal preconceito que já senti foi o médico, porque ouvi repetidamente de ginecologistas que eu teria um desequilíbrio hormonal, e de psicoterapeutas, que eu estava confusa.”

Felipe de Andrade, 27 anos, auxiliar de escritório:

“Eu sou assexual homorromântico estrito, e não sinto atração sexual de jeito nenhum. Me descobri assexual logo depois de me assumir homossexual para minha mãe, três anos atrás. E ela perguntou se era esse o tipo de sexo que eu queria fazer. Aí olhei e pensei ‘tem que ter sexo?’ Foi quando caiu a ficha: ‘é, as pessoas fazem sexo, mas eu nunca tive interesse nisso.’ Comecei a pesquisar e descobri a assexualidade. Nem todo mundo entende, a maioria das pessoas faz uns comentários maldosos, só acham que eu não gosto de transar. Mas hoje eu tenho namorado, ele também é assexual e estamos há três anos juntos, muito bem e felizes. Temos a prática sexual, mas nada do que chamam de sexo comum, é só masturbação. Tem gente que não vê isso como sexo, mas nós somos ok com isso. Eu sou o que a gente se batizou de ‘piranhense’, que é aquele assexual que gosta muito de rapazes, bem piranha no espírito (risos), porque na prática, o meu namorado foi o único homem que peguei.”

Jeanine Adler, 26 anos, produtora de eventos:

“Meu processo de descoberta foi em etapas. Primeiro, percebi que não me interessava tanto nem por ficar com alguém ou ter alguma intimidade física. Uma vez, uma moça falou que eu devia ser assexual, mas eu não conhecia o termo, então, não dei atenção. Uns anos depois, aos 20, fiquei um pouco aflita por não entender a minha falta de atração e fui pesquisar. Descobri um blog que falava sobre, me identifiquei com vários relatos e definições nele, e hoje me entendo como greyssexual. A primeira pessoa com quem eu falei sobre foi meu melhor amigo e ex-namorado, que é demi. Só anos depois eu tive um relacionamento com um alossexual, e tudo foi muito bem conversado, eu disse que eu poderia nunca sentir atração sexual, então tudo aconteceu sem pressa e nem pressão. Com o tempo, fomos desenvolvendo certa intimidade física, para um contato mais íntimo, mesmo que não sexual.”

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