A guerra das sobrancelhas

De um lado a versão "naturalzinha" com gel e mais nada, de outro a micropigmentação, o corretivo e nenhum fio fora do lugar. Será que existe um meio termo?


Linha do tempo da sobrancelha
Ilustração: Gustavo Balducci



Desde os primórdios da civilização, as sobrancelhas funcionam como uma espécie de marcador das nossas expressões. Ao longo da história de diferentes povos ao redor do mundo, elas já foram raspadas, alisadas, abandonadas, descoloridas, coloridas, finíssimas, aparadas… Nos últimos anos, no entanto, com o advento das redes sociais (principalmente do Instagram), parece que duas possibilidades se firmaram mais categoricamente na cultura pop. De um lado fica a versão “naturalzinha” com gel para segurar os fios durante o dia e mais nada. Do outro, a micropigmentação, o preenchimento, o corretivo e o penteado minucioso; aquele que não deixa um fio fora do lugar, sabe?

Mas, antes de escolher o seu lado nessa briga, que tal fazermos uma incursão pela história e entender como é que chegamos aqui? Talvez, no meio do caminho, a gente encontre um meio termo. Ou, pelo menos, podemos descobrir outras propostas que fujam dessa dicotomia. Vai que…

Quando começamos a fazer a sobrancelha?

Para começar, vamos para as raízes dessa coisa de ficar arrancando os fios que saem do desenho mais geométrico das sobrancelhas. Já na antiguidade, em lugares como a Índia, a China e o Oriente Médio, a técnica era bem comum. No Egito Antigo, a maquiagem entra em ação. Em homenagem ao deus Hórus, seus fiéis pintavam os olhos com delineados poderosos e as sobrancelhas não ficavam atrás: bem marcadas, elas eram escurecidas, alongadas e arqueadas com a ajuda de materiais como o carbono e o óxido preto. Muito mais tarde, no século 8, no Japão, homens e mulheres arrancavam as sobrancelhas e as subtituíam por linhas desenhadas no alto da testa.

Linha do tempo dos estilos de sobrancelha

Bem depois, na década de 1920, auge do cinema mudo, as sobrancelhas de atrizes como Greta Garbo, Josephine Baker e Marlene Dietrich tinham uma função teatral. A ideia era marcá-las para que, em formato de arco e bem fininhas (pintadas com lápis), destacassem o trabalho de atuação nos olhares das profissionais das telonas.

Entre 1940 e 1950, a depilação exacerbada perde a força, mas não desaparece. Apesar de as sobrancelhas estarem mais cheias, elas continuam perfeitamente desenhadas, pinçadas até alcançarem resultados como os popularizados por estrelas como Audrey Hepburn, Marilyn Monroe, Elizabeth Taylor, Brigitte Bardot e Sophia Loren.

 

Josephine Baker e suas sobrancelhas fininhas que fizeram hist\u00f3ria

Josephine Baker e suas sobrancelhas fininhas que fizeram história Foto: Corbis via Getty Images

“Tudo é político, desde o que a gente come até a nossa sobrancelha. Eu sempre digo, quando falo de maquiagem, que ela tem um poder discursivo. É mais do que o que está à mostra”, Fabiana Gomes

Com a explosão da cultura jovem nos anos 1960, nada mais natural do que as sobrancelhas acompanharem a reforma estética que acontecia ao redor do globo. Mais finas e inclinadas, elas definiram os visuais semi-futuristas de ícones da época como Diana Ross e a modelo Twiggy.

Dez anos depois, a despretensão entra em campo e o jogo finalmente relaxa um pouco. As leituras de Farrah Fawcett e Lynda Carter raramente contavam com o preenchimento do lápis, e estavam nem aí para possíveis “falhas”…

No oitentismo, então, chega a época dos extremos. A sobrancelha da vez era grossa, geométrica e despenteada. Pense em Madonna e Malu Mader. “E é aí que surgem os temidos processos de pigmentação definitiva: técnica similar à da tatuagem”, relembra o expert Gil Oliveira, pós-graduado em história da arte e crítica.

Com o passar dos anos, a “nem tão definitiva”, contudo, vai desbotando e ganhando colorações azuladas ou esverdeadas. “Tanto que, hoje em dia, junto com a micropigmentação, também existe a despigmentação: uma maneira de tentar expelir essa tinta que fez muita gente sofrer”, continua.

A cantora Diana Ross (foto) e a modelo Twiggy foram \u00edcones de beleza da d\u00e9cada de 1960

A cantora Diana Ross (foto) e a modelo Twiggy foram ícones de beleza da década de 1960 Foto: Getty Images


Outro extremo da década de 1980 foram as sobrancelhas ultrafinas. Na contramão do visual grosseiro e cheio de atitude, havia uma oposição em nome da elegância nessa versão quase invisível. Será que foi aí que começou a dicotomia que vemos hoje? Provavelmente, jamais saberemos, mas fato é que tal como a pigmentação definitiva, as ultrafinas também deixaram traumas em quem adotou a tendência por anos sem parar.

São vários os casos de, principalmente mulheres, que, de tanto arrancar os fios, não conseguiram mais fazê-los crescer quando a moda passou. Não à toa, a micropigmentação contemporânea acaba sendo uma boa saída para parte delas. A tecnologia avançou muito nesse sentido e, atualmente, é possível encontrar mais de 60 tons para fazer preencher as sobrancelhas. E claro, os procedimentos são muito menos incisivos.

Madonna popularizou as sobrancelhas tipo "wild" dos anos 1980

Madonna popularizou as sobrancelhas tipo wild dos anos 1980 Foto: Peter Noble / Redferns / Getty Images

Jogo simbólico das sobrancelhas

O termo “visagismo” é derivado da palavra francesa “visage” (rosto) e foi criado em 1936 pelo cabeleireiro e maquiador francês Fernand Aubry. Segundo o livro Visagismo: Harmonia e Estética (no Brasil pela Editora Senac São Paulo, 2018) de Philip Hallawell, Aubry “fundamentava-se no princípio de que a imagem pessoal define a identidade exterior de uma pessoa, criando um método para exercê-lo baseado nos fundamentos da linguagem visual a partir da sua percepção de que os formatos e as linhas, os quais formam as imagens, são símbolos arquetípicos”.

Gil Oliveira nos ajuda a entender: “Eu acho legal pensarmos que, quando vamos caracterizar um personagem, e o personagem é maléfico, arqueamos a sobrancelha de uma maneira muito pesada. E por que a gente faz isso? Porque no inconsciente das pessoas, a gente vai levar esse símbolo de inclinação para um sinal de perigo”, exemplifica. Segundo ele, o visagismo trabalha para fazer com que o que você deseja dizer sobre si chegue ao seu interlocutor antes das suas palavras. A imagem está alinhada com o que se deseja transparecer.

Fabiana Gomes, veterana do mercado de beleza brasileiro com 17 anos de experiência, por sua vez, desafia esses conceitos e os quebra com a dicotomia “natural X micropigmentação” que acontece hoje. “Muitas vezes, a gente fica fixado em um padrão eurocêntrico idealizado pela classe A e B, mas quando se trata de tendência, precisamos incluir mais mundos”, argumenta.

Tudo é político, desde o que a gente come até a nossa sobrancelha. Eu sempre digo, quando falo de maquiagem, que ela tem um poder discursivo. É mais do que o que está à mostra. Tem uma camada social e uma camada cultural também”, diz antes de citar a sobrancelha na régua tão popular nas periferias de todo o Brasil, mas que, por vezes, fica ofuscado pelo debate maniqueísta entre o natural e o demarcado agressivamente.

“Se você for pensar que as sobrancelhas são molduras, elas servem para quê? Ela pode te aprisionar, te delimitar… Pelo caminho da experimentação, da curiosidade, da piração, você pode chegar em resultados que são lidos como bizarros ou, até mesmo, errados… Mas eu acho isso lindo. Acho muito legal que essa sobrancelha possa também provocar, intrigar. Por que não?”

Luciana de Deus é artista nacional de sobrancelhas da Benefit, marca referência no assunto. Ela acredita que, de 2015 para cá, um movimento de aceitação da própria sobrancelha está ganhando cada vez mais força. Pode ser que ele não esteja, ainda, em uma posição hegemônica, mas o debate acontece e pode ser muito positivo. Um primeiro passo para quem ainda não tem a autoconfiança para investir de cara em experimentações mais incensadas.

“Se antes a beleza tinha muito essa ideia de obrigar a gente a se transformar em outra coisa, agora isso está mudando. Principalmente, porque a individualidade ficou muito reprimida e não dá para viver assim. A sobrancelha acompanha esse movimento de autoaceitação. Até porque, quando temos a coragem de sermos nós mesmos, acabamos nos tornando singulares. É importante que consigamos olhar para nós mesmos e nos aceitarmos.”

Dicas para a sua sobrancelha

“Quando você desenvolve a sua autoestima, a opinião do outro até tem a sua importância, mas a sua tem muito mais porque você se torna a maior autoridade sobre a sua própria vida”, disse nossa colunista, a arquiteta e pensadora Joice Berth na reportagem “Por que beleza ainda importa tanto?” da primeira edição de nossa ELLE View, a revista digital mensal da ELLE Brasil exclusiva para assinantes. “É essa construção da relação de você consigo mesma que vai, em certa medida, te tornar independente da validação da sociedade”, explica.

Com isso, queremos lembrar que, sem estar bem consigo mesma, buscar uma sobrancelha com o seu jeito pode ser um caminho para a frustração e o desapontamento. Partindo da ideia de que essas escolhas serão tomadas à parte dos padrões normativos, pedimos para Fabiana, Gil e Luciana darem dicas de como adentrar esses caminhos pelo viés da independência, da autoconfiança e da aceitação da individualidade.

Sobre técnica: A primeira dica é olhar para si e entender o formato, a espessura, a cor, e todos os elementos que compõe a sua sobrancelha. Depois, passando para a maquiagem, você precisa descobrir o que quer fazer com elas. Dividi-la em três setores ajuda a entender o espectro de possibilidade com o qual você pode brincar ali: tem o início, o arco e o final. Lembrando o velho ditado: elas são irmãs, não gêmeas. Sem neurose, sem dilema. Para quem não tem muita habilidade, ou para quem não quer aquele visual super demarcado, com certeza, os produtos em forma de lápis como o Micro Filling Pen, e o Precisely, My Brow Pencil e o Goof Proof Brow Pencil funcionam bem, são mais intuitivos”, Luciana de Deus

Sobre armadilhas: “Um bom profissional de sobrancelha nunca vai te indicar produtos para crescimento, por exemplo. Embora saibamos que existem espaços dedicados às sobrancelhas que anunciam isso, é importante saber que esses produtos podem trazer problemas dependendo de sua composição. Principalmente, alergias. Nesse caso, é recomendável a procura por um dermatologista. Afinal de contas, o universo da sobrancelha, atualmente, está um pouco mais democrático. Não é um mundo de uma moda só”, Gil Oliveira

Sobre estilo: “É preciso entender de onde está vindo qualquer vontade. O que desperta esse desejo de mexer na sobrancelha? Como aquilo vai refletir na sua imagem? Por que isso te deixaria feliz? Primeiro, essa lucidez é fundamental. E, mais especificamente sobre sobrancelha é mais ou menos assim: pensa uma vez, pensa de novo, volta para a casa, toma um porre, deita, troca uma ideia com as amigas, tira foto… Mil coisas antes de decidir ou não fazer algo mais definitivo. No meu caso, voltei a usar um gel da MAC que pinta, penteia e fixa ao mesmo tempo. Então dá um pouco de volume. Tem sido bom, algo como: ‘Olha, existe essa versão da Fabiana, também’. Não precisa levar tão a sério”, Fabiana Gomes

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