Beleza asiática e a cultura do embranquecimento

Caroline Ricca Lee reflete sobre como o colorismo marca a relação das mulheres asiáticas ao redor do mundo e no Brasil


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Ilustração: Mayumi Ikemura Amaral



Na última década, as redes sociais tiveram um impacto profundo não apenas nas relações interpessoais e no ritmo da vida, mas também na maneira que enxergamos a nós mesmos e como nos organizamos em comunidade. Apesar de grandes avanços nos âmbitos de transformação social e organização política impulsionados pela internet, esse território carrega limites — principalmente, quando lembramos que a sua fórmula opera em paralelo à cultura do consumo. Neste caso, na busca por validação, talvez o que influencie nosso comportamento atualmente seja a possibilidade de moldar a visão dos outros sobre nós mesmos ou a de adentrar novos espaços aos quais esperamos pertencer.

Diante desse enredo ambíguo, a breve história da beleza nos últimos dez anos esteve também atravessada por alguns antagonismos em função das redes. Desde o levante de pessoas racializadas, corpos gordos e LGBTQIAP+ trazendo discursos sobre autoestima, versus a imposição de novos padrões sustentada por filtros de Instagram; O movimento #SkinPositivity e a normalização da acne, versus tendências de “blur” e ausência de poros; Ou até mesmo a slow beauty, versus o colecionismo de produtos para uma estante de beleza instagramável.

Entretanto, podemos destacar a beleza asiática (com a difusão da k-beauty e a febre por produtos vindos de diferentes regiões da Ásia) e a marca Fenty Beauty (na excelência de itens com alta performance em diversos tons e subtons de pele, especialmente para pele negra) sendo as maiores ondas da década, pois elas transformaram o jeito como consumimos maquiagem ou skincare no mundo, cada uma à sua maneira. Além disso, é notável como ambas estão profundamente relacionadas à busca por diversidade racial, não é mesmo? No limite, a possibilidade de vermos pessoas negras, amarelas e marrons como beldades icônicas ou trendsetters é extremamente recente. Até porque, a influência de pessoas não-brancas nas tendências de maquiagem e cabelo acontece com relevância apenas a partir dos anos 1970 (graças a personalidades como as estadunidenses Diana Ross e Donna Summer).

E pensando sobre tendências de beleza asiática, talvez o conceito “colorismo” não seja tão facilmente reconhecível nesse contexto. Porém, o desejo pelo branqueamento opera nas entrelinhas daquilo entendido como belo na Ásia, e isso afeta pessoas asiáticas em todo o mundo, inclusive no Brasil. Então, por mais que seja notável a adaptação do mercado às atuais demandas sociais, seria essa aparente representatividade o suficiente diante de todo esse tempo em que a desigualdade racial foi reforçada em nossa cultura estética? E mais, o mercado pode enxergar a nossa beleza, mas será que vemos beleza em nós mesmas?

Beleza asiática e colorismo

Em 1982, a escritora, ativista feminista e autora do premiado romance A cor púrpura (1982), Alice Walker utiliza pela primeira vez e cunha o termo “colorismo” em seu ensaio If the present looks like the past, what does the future look like?”, em tradução livre: “Se o presente se parece com o passado, como será o futuro?”. Apesar da nomeação moderna, o conceito também conhecido como “pigmentocracia” é uma categoria histórica e herança colonial que repercute até os tempos atuais por meio da discriminação e hierarquização de pessoas por seus tons de pele. No livro intitulado Colorismo (2021) — 9º título da coleção “Feminismo Plurais”, coordenado pela filósofa e colunista de ELLE Djamila Ribeiro —, a pesquisadora e advogada Alessandra Duvelsky expõe como a questão estrutura as relações raciais na sociedade brasileira e revela essa violência ainda presente como uma “tecnologia” do racismo para constituir processos classificatórios, excludentes e até mesmo antagonizantes para com a população negra.

O colorismo em cada sociedade depende das relações raciais de seus respectivos territórios. Ainda assim, é nítido o fato de que essa hierarquização está profundamente enraizada em processos de supremacia branca e antinegritude. Na Ásia, o contexto é intensificado por conta do imperialismo (com as dominações britânicas e europeias no Sul Asiático e Sudeste Asiático que impuseram padrões de beleza baseados na brancura), questões de classe (historicamente, o tom de pele está relacionado à status social, pois a pele clara carrega um signo de prestígio e nobreza, uma vez que, diferente dos camponeses, a pele clara designaria a não exposição de certos indivíduos ao trabalho árduo no campo sob o sol) e identidade étnica (comunidades tradicionais na Ásia sofrem maior discriminação racial em função do fenótipo lido como “indígena”).

“Com o tempo e com a aproximação da cultura indiana, comecei a ver beleza no que tanto tentei apagar. Passei a ver em mim uma completude que o sistema não oferecia”, Juily Manghirmalani

Em lares asiáticos, é costumeiro o cuidado excessivo com a pele ser uma tradição passada pelas mulheres mais velhas aos mais jovens, sendo o medo da exposição solar um aviso constante. Inclusive, lembro da minha avó comemorando como eu havia nascido com um “tom de neve”, e só entendi anos mais tarde o que isso significava. Ela, uma mulher japonesa que imigrou ao Brasil com apenas dois anos, veio junto de uma família grande com poucos recursos e, por esse motivo, passaram anos trabalhando em plantações. Eu vejo em sua pele uma cartografia linda de vida e emoção. No entanto, ela mesma enxerga no espelho apenas os sinais do tempo e os efeitos da escassez. Assim, comemora a ascensão social das novas gerações porque, elas sim, poderão usufruir do acesso à educação e formação no ensino superior, moldando para si novas oportunidades. Mas, mesmo que as migrações asiáticas ao Brasil sejam marcadas por histórias de assimilação e discriminação (vale lembrar aqui do período em que as elites chamavam amarelos de “degenerados” por não colaborarem com o projeto de “branqueamento da nação”), foi ofertado à esses grupos oportunidades de mobilidade social, resultando na maioria de seus integrantes hoje estarem em situações que os permitem usufruir de privilégios econômicos.

 

Contudo, essas passabilidades são temporárias. Atualmente, por exemplo, vemos como rapidamente isso cai por terra quando somos nomeados de “vírus” entre outros diferentes tipos de violência sofridos por pessoas asiáticas em meio à crise sanitária do novo coronavírus. Inclusive, acho importante mencionar que, “adorar” asiáticos considerando-os “loucos e podres de ricos”, como aparecem em filmes ou reality shows contemporâneos, não passa da positivação de um estereótipo que, por sua vez, promove a estética da desigualdade e ainda reforça uma cultura em que amarelos são vistos como “minoria modelo”. Isso, em paralelo, caminha de mãos dadas com os processos de falsa simetria na meritocracia que levam à manutenção de opressões estruturais vividas por negros e indígenas.

Clareamento na Ásia: uma indústria bilionária

De acordo com um relatório publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2019, o clareamento de pele é uma das indústrias com crescimento mais rápido em todo o mundo. Estima-se que, até 2024, o seu valor alcance US$ 31,2 bilhões, sendo o território asiático o detentor da maior porcentagem nesse segmento de consumo. Na Índia, produtos na categoria “whitening” representam 50% do mercado de skincare. Em entrevista à ELLE, a cineasta, ativista e comunicóloga indo-manaura Juily Manghirmalani analisa: “os diversos tons de pele característicos das etnias viventes na Índia não são, muitas vezes, equivalentes às poucas diversidades de produtos vendidos nos mercados e nem apresentados nas campanhas publicitárias”. Com isso, segundo ela, a cultura do clareamento torna-se, então, quase inevitável para qualquer pessoa que busque ascensão e reconhecimento social dentro do território indiano. “Especialmente se for mulher”, destaca a mestra em Imagem e Som de ascendência indiana que pesquisa o cinema da diáspora indiana com enfoque em gênero.

 

Em relatório divulgado pela Organização Pan-Americana da Saúde (PAHO), pesquisas realizadas com mulheres nacionais da China, Malásia, Filipinas e Coréia do Sul, revelam como 40% destas afirmam usar regularmente algum produto para clarear a pele. Cremes, loções, sabonetes, pílulas, e até mesmo fórmulas injetáveis, configuram a variedade de cosméticos com a proposta de alvejar peles consideradas “escuras”. De acordo com a dermatologista Anna Park, os clareadores disponíveis no mercado estão em uso há décadas. A médica descendente de coreanos de primeira geração explica que “esse tratamento é amplamente buscado por mulheres do continente asiático e africano. Na hierarquia racial (que é racista), ter a pele mais branca pode abrir portas tanto no âmbito pessoal quanto profissional”.

“Estar em um espaço de troca e cura, com enfoque nas vivências desse recorte coreano-brasileiro, me aliviou de muitas angústias”, Ing Lee

O desejo pelo clareamento de pele pode ser perigoso não apenas na perpetuação da desigualdade racial em padrões de beleza, como alguns de seus ingredientes provocam graves problemas de saúde. Os ingredientes mais utilizados para tratar hiperpigmentação são muitos. “Hidroquinona, corticoides, tretinoína, fenóis, ácido kójico, ácido azelaico e, antigamente, mercúrio”, lista Park salientando que todos esses ativos são supressores da melanina na pele. O uso indevido desses produtos pode acarretar efeitos colaterais como “dermatites, vermelhidão, prurido, problemas de cicatrização, supressão adrenal, a própria hiperpigmentação e ocronose. No caso do mercúrio, que hoje em dia é raramente usado, ocorrem efeitos tóxicos neurológicos, psiquiátricos, renais, pneumonite e irritação gástrica”. Quanto aos clareadores sistêmicos (orais ou intravenosos), ela lembra que eles não têm eficácia comprovada e consolidada. “O risco é você se utilizar de um tratamento custoso sem os efeitos benéficos, apenas os colaterais.”

Em um estudo conduzido em 2017 e 2018 pelo Zero Mercury Group, mencionado no relatório da OMS já citados nesta reportagem, foram coletadas 338 amostras de cremes para clareamento em 22 países. O intuito dessa pesquisa foi identificar o uso do mercúrio em produtos dessa categoria globalmente. Cerca de 10% das amostras apresentaram alto nível de mercúrio. Mesmo com a proibição deste ingrediente em diversos países, a sua venda continua sendo feita de forma ilegal por conta da alta procura. “Não consigo ver esse tipo de apelo estético vigorando em um sistema que não opera a partir do poder econômico do qual as indústrias farmacêutica e de cosméticos se beneficiam. Eles usufruem do sofrimento de uma população que está, há séculos, em uma baixa autoestima decorrente de colonizações e também de sistemas culturais que avaliam hierarquicamente os seres humanos baseados em colorismo e sobrenomes”, defende Manghirmalani.

K-beauty e soft power

Em meados de 2017, e-commerces como Soko Glam e Peach & Lily trouxeram a k-beauty para os Estados Unidos. Não demorou muito para que, depois disso, os produtos de beleza coreanos se tornassem uma febre mundial. Os vários “experts” que foram surgindo nas redes não possuem necessariamente ascendência coreana ou mesmo são nacionais da Coreia, mas, com certeza, são co-responsáveis pela difusão em massa desses itens, até então, inéditos fora da Ásia. Sheet masks ou essências, agora, são conhecidos globalmente. Antes de ser uma epítome no chamado “Ocidente”, a “pele de porcelana” já era um conceito considerado primordial para o padrão de beleza asiático. Atualmente, vemos desdobramentos da mesma ideia em outros termos, como a tendência de k-beauty chamada “glass skin” e rotinas de belezas semelhantes que levam ao acabamento sem poros e prezam principalmente por um efeito luminoso, hidratado, supostamente jovem. Porém, nem precisamos mencionar que a maioria dessas fórmulas chegam carregadas dos tais ativos clareadores

Apesar da k-beauty possuir uma narrativa própria e seus adeptos não necessariamente serem fãs de k-pop, com certeza esse apogeu se deu como também resultado da chamada Hallyu ou “onda coreana”. Esse movimento de influência vindo da Coreia do Sul difundiu não apenas um estilo musical ou seriados para televisão, mas atingiu profundamente a moda, a beleza e a gastronomia. “Diferente da coerção do hard power, que faz uso de recursos militares e econômicos para formar alianças e intimidar inimigos, o soft power se trata de uma estratégia mais subjetiva e branda, mas ainda assim, é uma expressão de poder”, explica Ing Lee, quadrinista coreano-brasileira e surda oralizada, pesquisa sobre a maneira que dispositivos culturais influenciam nossos imaginários através do soft power (termo das relações internacionais cunhado pelo ex-secretário de defesa dos Estados Unidos, Joseph Nye).

A popularidade de narrativas coreanas carrega uma mensagem positiva quando disputa os imaginários propondo vivências para além do referencial europeu ou americano. Mesmo assim, essa “comemoração” pode esbarrar em algumas problemáticas como a fetichização de pessoas asiáticas ou a objetificação da cultura tradicional. Nas palavras de Ing Lee: “É interessante notar que [a onda coreana] consiste em um processo de subversão de fluxos de informação e retorno às referências recebidas ou impostas de volta aos seus colonizadores. Mas, como tudo não é preto no branco, tenho ressalvas à Hallyu. No sentido de que ela reforça a fetichização de corpos amarelos, principalmente aqueles de ascendência coreana. A linha entre a admiração e o fetiche é muito tênue”.

A falta de discussão sobre o embranquecimento da aparência na maioria dos idols coreanos é assustadora, ainda que parte da comunidade já tenha pautado a discussão ao cobrar que a pele dessas personalidades não seja tão clareada nos veículos de comunicação. “Sinto que foi criada uma nova pressão estética para nós, mulheres amarelas (especialmente para as de ascendência coreana), mantermos uma pele ‘impecável’, uma ‘glass skin'”, compartilha a quadrinista a respeito da massificação da k-beauty antes de apontar para a ansiedade e insegurança causada por essa novo reforço de padrões.

Um percurso para o autorreconhecimento e amor próprio

Os relatos de Juily Manghirmalani e Ing Lee revelam situações de solidão e despertencimento. Ao mesmo tempo, contudo, eles reforçam a importância de nos vermos em sociedade: “Durante minha formação, da infância até o início da vida adulta, sempre me senti fora dos padrões. Entendi bem cedo que não faria parte do que era considerado desejável e isso acarretou em dificuldades no afloramento da minha subjetividade e sexualidade”, relembra Manghirmalani. “Com o tempo e com a aproximação da cultura indiana, comecei a ver beleza no que tanto tentei apagar. Passei a ver em mim uma completude que o sistema não oferecia. Estar em locais de diversidade e divergência me fizeram criar uma autoestima que foge aos parâmetros hegemônicos.”

Estar ao lado de outras pessoas que vivem processos semelhantes aos nossos é algo que nos fortalece. “Quando em contato com movimentos e coletivos asiático-brasileiros, pude reconciliar essas minhas questões e entender o lugar que ocupo, minha relação com meu corpo. Com a pandemia, passei a frequentar os encontros do Mitchossó [coletivo de feminismo coreano-brasileiro] o que eu não conseguia antes por conta da distância [os encontros ocorriam presencialmente, em São Paulo], porque eu moro em Belo Horizonte. Estar em um espaço de troca e cura, com enfoque nas vivências desse recorte coreano-brasileiro, me aliviou de muitas angústias”, conta Lee.

O nosso corpo é uma história palpável moldada em pele, ossos e músculos. Nesse território, estão contidos os percursos, curvas e marcas, de todas aquelas que nos trouxeram até aqui. O quanto o ódio ao corpo feminino é referente à construção de uma raiz patriarcal? O quanto a negação de um fenótipo é conveniente e produto da sociedade racista? Lamentar nossa existência, é negar a herança de resistência transmitida de geração em geração por nossas antepassadas. É preciso transcender tais imposições no entendimento de que nossos corpos são presentes e não fardos. Então, para além da pergunta sobre se enxergamos belezas em nós, a questão primordial seria: Será que amamos a nós mesmas? O auto-ódio é uma ferida colonial. Seu processo de cura nos é historicamente devido, mas o bálsamo para essa dor pode estar no constante exercício de autoamor quando nos olharmos, mesmo pelo avesso do espelho. Enquanto isso, seguimos na busca sobre como podemos criar lugares e momentos em que o belo esteja na diversidade e riqueza das múltiplas possibilidades do que uma única pessoa pode ser e existir.

Caroline Ricca Lee é artista interdisciplinar, pesquisadore e ativista do feminismo asiático. Sua produção pauta contextos perante gênero, memória, etnia, raça e estudos decoloniais.

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