Os raros, os luxuosos e os ‘cancelados’ da perfumaria

Aromas naturais milenares, suas histórias incríveis, misteriosas e também reprováveis.


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CONTEÚDO APRESENTADO POR O BOTICÁRIO

E se eu te dissesse que o perfume muito fino que você usa contém um toque especial de excremento de baleia? Ou que aquela sensualidade que você identifica e adora em muitas fragrâncias é (hoje) a versão sintética do aroma retirado de uma glândula de um veado? Pois é, até quem gosta muito de perfume – falo por experiência própria – costuma saber pouco ou quase nada sobre as matérias primas da perfumaria e suas histórias incríveis, misteriosas, milenares. E em alguns casos bem sombrias e reprováveis também.

Dê o play e confira:

Sabe que esse gesto de adicionar um aroma ao corpo, ao ambiente, existe há tanto tempo que dá para acompanhar a evolução da história da humanidade por ele. “A perfumaria é uma arte que nasceu quando o homem dominou o fogo. Com a queima das madeiras e das ervas, ele viu que saía uma combinação de aromas e passou a usá-los para dar sabor ao alimento, perfumar o ambiente, e também para agradecer os deuses. Não à toa a palavra perfume vem do latim per fumum, que quer dizer ‘por meio da fumaça'”, conta o especialista em perfumaria do Núcleo de Inteligência Olfativa do Grupo Boticário, Cesar Veiga. Ou seja: tudo começou com um bom incenso queimado ao calor de uma fogueira sob um céu estrelado, entre um e dois milhões de anos atrás.

Cleo, de Cleópatra

De lá para cá, muita água perfumada rolou. Os primeiros grandes usuários de perfume de que se tem registro foram os aristocratas do Egito Antigo, por volta de 3 mil antes de Cristo. Usavam o incenso em cerimônias religiosas, nas múmias de seus faraós, e também perfumavam o corpo com misturas em alguma base oleosa (os unguentos) tanto de resinas vindas de árvores, como a mirra, quanto flores, em especial rosa e jasmim, e especiarias, tipo canela e cardamomo, que aparecem nos perfumes até hoje. Cleópatra, milhares de anos mais tarde, ficou famosa por usar perfume para seduzir seus amantes. Ninguém sabe ao certo a fórmula da fragrância, mas os boatos históricos dão conta de que ela variava entre esse mix de mirra, cardamomo, canela e azeite de oliva – hit da elite egípcia da época –, e pétalas de rosa. Até agora, nada de muito inusitado. Quando entram os extratos de origem animal é que as coisas ficam mais estranhas e controversas.

Baleias, castores, veados e gatos: cancelados

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Ambergris: expelido naturalmente no mar pela cachalote, é o mais caro da perfumaria

Foi na Renascença (auge ali no século 16) que os perfumes com matérias primas de origem animal ficaram muito famosos. O tal do vômito de baleia do suposto perfume da blogueira Rafa Kalimann, que gerou polêmica no ano passado durante o BBB, é o único que, em algumas regiões do mundo e dependendo de como foi conseguido, não é ilegal. Explico: na verdade, trata-se de uma excreção expelida no mar por um tipo de baleia, a cachalote. Algo equivalente às bolas de pêlo dos gatos. Por séculos, a origem dessa substância permaneceu um mistério: quando chegava à praia, já seca, ganhava a textura de uma resina e um aroma entre marinho e amadeirado, adocicado, enfim, algo intrigante. Deram o nome de ambergris, ou âmbar-gris, que nada tem a ver com o âmbar, uma resina vegetal também usada na perfumaria.

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No fim do século 18, com o advento da caça baleeira, descobriram de onde vinha o âmbar-gris. Há até um capítulo inteiro no livro Moby Dick (1851), do escritor Herman Melville, dedicado à substância. Potente fixador, ele é usado até hoje na perfumaria de luxo, mas sua comercialização só é legalizada em alguns países, caso de toda a Europa, por considerarem a substância um excremento, encontrado naturalmente na beira das praias. Produzida por menos de 5% das cachalotes, é uma das matérias primas mais caras do mundo. Ainda que associações protetoras das baleias considerem improvável a caça aos animais exclusivamente em busca do âmbar-gris, elas questionam se transformar uma parte do animal num produto (ainda que uma secreção) não seria mercantilizar um ser vivo.

S, se sintético, S de (mais) sustentável

Proibida desde os anos 70, a versão animal do almíscar ou musk tem um aroma forte considerado sensual e aconchegante. Retirado originalmente de uma glândula do veado macho almiscareiro da região do Tibet, que secreta um odor afrodisíaco para a fêmea, o musk foi usado por milhares de anos até que ganhou sua versão sintética, num bom exemplo de como a tecnologia pode trabalhar a favor da sustentabilidade. “Costumava usar o perfume Musk, da Kiehl’s, mas até ele eu decidi abandonar (a fragrância é uma releitura da original, criada nos anos 20 com o musk animal). É um caminho sem volta, não dá mais para comprar esses produtos predatórios com ingredientes de origem animal”, acredita o cabeleireiro Marco Antonio de Biaggi, um verdadeiro aficionado da alta perfumaria. Ele abriu mão até do musk sintético, mas não abandona outro ingrediente raro, este de origem vegetal: o Oud, incenso feito a partir da Agarwood, a madeira mais cara do mundo. Ícone no Oriente Médio, tem um caráter histórico espiritual milenar.

Outras matérias primas de origem animal, como o castóreo e o civete (ambos com essa característica de dar sensualidade e fixação aos perfumes, extraídos respectivamente de glândulas do castor e do gato civeta do Tibet) foram canceladas da perfumaria moderna e substituídas por versões sintéticas. Cesar explica. “Os ativos sintéticos têm a vantagem, em muitos casos, de serem mais seguros contra alergias e irritações do que suas versões naturais. Também são mais sustentáveis, não só no caso dos extratos animais como também de alguns vegetais. O sândalo, por exemplo, é extraído de uma árvore hoje em extinção na Índia, seu país de origem.” Há sândalos naturais de fontes renováveis e sustentáveis, como o sândalo australiano, mas se alguém te oferecer um legítimo sândalo da Índia, já sabe…

A alternativa é recorrer a um mix de matérias primas sintéticas com naturais, o que, garante Cesar, pode resultar em uma fragrância até mais complexa do que as totalmente naturais. Um bom exemplo, segundo ele, é a linha de perfumes Lily, do Boticário. O extrato do lírio é conseguido por meio de uma técnica artesanal milenar chamada enfleurage, modernizada pelo Boticário, que preservou toda a liturgia do processo, mas trocou a gordura animal usada originalmente pela vegetal (obrigada!). Criada no Egito e revisitada na França do século 19, o enfleurage provoca a transferência do óleo aromático da flor por meio do contato das pétalas com uma gordura vegetal, que depois passa por um novo processo de transferência para o álcool até se transformar no absoluto, um óleo essencial concentrado 100% natural. A esse elixir conseguido por meio de um processo lento e artesanal, são combinados aromas sintéticos, caso do sândalo, além dos acordes de frutas, como mandarina, pêssego, pêra e damasco. “O lírio natural traz o componente orgânico, enquanto os aromas sintéticos oferecem facetas que talvez você não encontre na natureza.”

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