Estamos obcecados por simetria?

Desafios de simetria bombam no TikTok, mas ideia de um rosto proporcional é mais antiga do que parece.


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Foto: TikTok/Reprodução



Ao som da música “Deja Vu”, da nova cantora estadunidense queridinha da internet Olivia Rodrigo, uma pessoa exibe quão simétrica ela é usando o filtro de “invertido” do TikTok, para espelhar a imagem e mostrar se o rosto muda muito de um lado para o outro. Esta é apenas a brincadeira mais recente que viralizou sob a hashtag “Symmetrical face” (Rosto simétrico, na tradução literal do português), que tem mais de 73 milhões de visualizações na plataforma musical. Há um desafio semelhante sob a hashtag “Inverted” (Invertido, em português), com um remix da música “Talking to the Moon”, do Bruno Mars. Neste caso, o termo tem mais de 12 bilhões de visualizações.

Está claro que se mostrar simétrico na internet é uma brincadeira que bomba. Mas ela também pode ser um baque na autoestima. Nem todo mundo tem os olhos na mesma altura, o nariz centralizado ou as sobrancelhas semelhantes. E o challenge escancara isso. “Estou tendo uma crise depois de me ver invertida”, escreveu uma garota em um dos posts mais famosos do desafio. “Não acredito que as pessoas me veem assim”, comentou outra pessoa. Mas como, em uma época que estamos discutindo sobre o papel dos filtros de Instagram na nossa autoimagem, a valorização da simetria tem ganhado espaço?

Não se sabe bem quando é que surgiu a ideia de que algo simétrico é algo mais belo, mas ela está muito presente na arte, principalmente no Renascimento. Naquela época, se popularizaram as regras áureas ou proporções divinas, em que o nariz precisa estar posicionado em um certo lugar do rosto, assim como os olhos e bocas, para que ele seja “harmônico”, tornando a obra mais “visualmente agradável”. “A simetria é usada para criar equilíbrio na tela, mesmo que o corpo esteja contorcido. Essas proporções, que foram feitas pelo homem, criam uma visão idealizada do que seja o corpo humano”, explica Maria de Fátima Morethy Couto, professora livre-docente de História da Arte da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Não é a ideia de que todas as pessoas, para serem belas, precisam ser desse jeito, mas, na pintura, na representação visual, esta seria, supostamente, a melhor versão do ser humano e os pintores renascentistas procuravam pintar os retratados o mais poderosos, magnânimos possível.”

O que fascina na proporção áurea (ou número dourado), é que ela é, na realidade, uma constante real algébrica irracional. O valor arredondado da proporção é a de 1,618 e ela teria sido considerada divina porque estaria presente tanto no corpo humano como na casca de um ovo. Na Antiguidade, Phideas, arquiteto idealizador do Parthenon, na Grécia, teria usado a proporção para fazer o templo da deusa Athenas. No Renascimento, Leonardo Da Vinci lança mão da medida no “Homem Vitruviano” e em sua pintura mais famosa, a “Mona Lisa”. Ela também teria sido aplicada na obra “O Nascimento de Vênus”, de Botticelli, já que representaria a perfeição da beleza.

“A simetria é usada para criar equilíbrio na tela, mesmo que o corpo esteja contorcido. Essas proporções, que foram feitas pelo homem, criam uma visão idealizada do que seja o corpo humano”, Maria de Fátima, professora de História da Arte na Unicamp.

Mais atualmente, em 2016 para ser específica, a proporção áurea foi usada para rankear as mulheres mais belas do mundo. Tendo como base a constante, o médico Julian de Salva, que administra o Centro de Cirurgia Facial Cosmética e Plástica, em Londres, contou ao jornal Daily Mail que usou um programa de computador com tecnologia de mapeamento facial para medir as proporções de rostos mundialmente conhecidos e descobrir quem tinha a aparência perfeita. A atriz Amber Heard foi considerada a mais simétrica, seguida por Kim Kardashian e Kate Moss.

Ok, mas o que, psicologicamente falando, um rosto proporcional “engatilha” na gente a ponto de o acharmos mais atraente do que outros? De acordo com um relatório do Psychology Today, a explicação científica mais conhecida sobre o porquê de rostos simétricos serem considerados mais atraentes é chamada, às vezes, de “Teoria da Vantagem Evolutiva”. Em suma, o artigo de 2019 afirma que, apesar das leis da atração sexual entre seres humanos variarem radicalmente entre diferentes culturas e momentos históricos, um dos elementos entendidos como positivos mais constantes até aqui é a simetria facial e corporal por serem, inconscientemente, associadas à boa saúde física (ainda que não tenham relação direta com isso). Ao incluir isso no contexto ultraimagético e veloz das redes sociais, o frenesi pela simetria parece só crescer.

Não é à toa que a harmonização facial, um conjunto de procedimentos que procura tornar um rosto mais proporcional, é um sucesso nas clínicas de estética. A Pesquisa Estética Global, realizada anualmente pela Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS), aponta que foram realizadas 254 mil aplicações de ácido hialurônico, preenchedor usado na harmonização facial, no Brasil. Segundo o mesmo levantamento, o país é o segundo que mais faz procedimentos estéticos, atrás apenas dos Estados. E ter um “rosto de Instagram” não é uma aspiração apenas dos adultos. No Brasil, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica diz que, nos últimos dez anos, houve um aumento de 141% no número de procedimentos estéticos feitos por jovens de 13 a 18 anos.

Fora do padrão, mas nem tanto…

Já foi muito falado como a geração Z, grupo majoritário no TikTok, tem derrubado padrões de beleza antigos e normativos, como o corpo magro e o cabelo liso. Porém, isso não os impede de serem críticos sobre a falta de harmonia ou simetria de seus rostos. Eles abraçam o corpo gordo, as sardas ou a sobrancelha grossa, sem depilar, mas é necessário que este visual fora do padrão ainda assim seja estético, fique bem no TikTok ou no Instagram. “Pode não ser o padrão de beleza branco, classe alta. Mas tem a ideia do esteticamente resolvido que fica de fundo. Há uma noção de felicidade nessa harmonia e, por isso, mais ‘perfeito'”, diz Maria de Fátima. “Isto pode representar um fator de piora nos transtornos de ansiedade relacionados à imagem”, complementa Marle dos Santos Alvarenga, PhD em Nutrição pela Universidade de São Paulo (USP).

As pesquisas mostram que a pesquisadora tem razão: a University College London (UCL) fez, em 2019, um estudo que mostrou que redes sociais elevam a ocorrência de depressão em meninas adolescentes e que 75% delas sofrem de depressão também têm baixa autoestima e estão insatisfeitas com sua aparência.

É que, hoje em dia, estamos sempre em contato com a nossa imagem. Quando as fotografias eram analógicas, ficávamos semanas ou meses esperando para ver como ficamos nelas. Checávamos o nosso visual apenas quando podíamos nos ver refletidos no espelho, muitas vezes presentes no banheiro ou no retrovisor de um carro parado na rua. Agora, por sua vez, podemos nos ver muito rapidamente: basta uma tela de celular e uma câmera para fazer uma selfie. Isto dá espaço para sermos mais críticos sobre as nossas feições. “Você se olha mais e traz mais mecanismos de comparação. Com filtro, a pele fica melhor. Quando há uma manipulação com um aplicativo, fica mais simétrico. Há um aumento de autocrítica”, diz a pesquisadora.

Maria de Fátima lembra de uma coisa muito importante: “A fotografia também não é um retrato da realidade, ela pode ser utilizada de modo para favorecer um determinado efeito. Há o jogo de luzes, o jogo de poses, que ‘manipulam’ a imagem.” Ou seja, lembre-se: você não é a selfie que você tira no seu celular, nem mesmo o challenge que faz para o TikTok.

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