E se… a moda abraçasse a luta indígena?

Menos apropriação cultural, mais troca: já é tempo de sair de cima do muro e assumir compromissos a partir da compreensão ampla e profunda sobre a luta dos povos originários.


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Entre os dias 23 e 28 de agosto, cerca de 6 mil indígenas estiveram reunidos em Brasília no acampamento Luta Pela Vida, maior mobilização indígena da história, com objetivo de barrar o chamado Marco Temporal e o projeto de lei 490. A mobilização se estendeu com cerca de mil indígenas, que se uniram à Marcha das Mulheres Indígenas, em andamento até o final de semana (12.9). Estão em Brasília mais de 4 mil mulheres indígenas de cerca de 150 etnias e é possível acompanhar tudo nas redes sociais da organização ANMiga.

A tese do marco temporal ignora o histórico de expulsões e violência contra os diferentes povos, pois visa estabelecer que apenas os povos que estivessem em suas terras na data da promulgação da Constituição, em 1988, teriam direito de reivindicar a demarcação da área. Se aprovada, colocará centenas de povos em risco. A proposta é defendida por ruralistas, mas refutada por especialistas de diferentes áreas, sobretudo do Direito.

Agora, a tese está nas mãos do Superior Tribunal Federal (STF) por conta do julgamento da ação que busca assegurar a presença do povo Xokleng na Terra Indígena Ibirama-Laklanõ, no estado de Santa Catarina.

Frente à demora do julgamento por parte do STF, a Câmara avançou com o PL490 que busca, entre outras restrições às demarcações, instituir o marco temporal como parâmetro. A organização De Olho Nos Ruralistas mostrou que os frequentes adiamentos do julgamento no STF têm sido articulados por ruralistas interessados em aprovar a PL490 antes de sair a decisão dos juízes do Supremo.

Embora qualquer vitória por parte dos povos indígenas seja importante na disputa, o relator do projeto e membro da Frente Parlamentar Agropecuária, Arthur Maia (DEM-SP), afirmou à Folha que “o Supremo julga, nós fazemos a lei. Então, se o Supremo decidir que não tem marco temporal e, na semana seguinte, nós votarmos a lei dizendo que tem marco temporal, prevalece aquilo que nós estamos estabelecendo. O Supremo não é legislador, o legislador somos nós”.

A ameaça de Maia segue na esteira do desmonte de direitos aos povos originários que tem sido colocado em prática pelo governo Bolsonaro, o que tem aumentado conflitos no campo de forma exponencial, ao mesmo tempo que vem prejudicando ecossistemas cruciais para a questão climática no Brasil, como a Amazônia. Além do direito originário dos povos às suas terras, quando falamos de terras indígenas (TI) estamos falando também de uma das últimas barreiras entre nós e o total colapso climático e ambiental dado o nível de proteção da biodiversidade desses territórios.

A importância das mobilizações

Dado a importância do que está em jogo em termos de sustentabilidade quando falamos de TIs – e o quanto a moda tem falado sobre sustentabilidade nos últimos anos – fiquei me perguntando qual o papel da moda nesse debate? Ele sequer existe? Conversei com mulheres indígenas e mulheres fortemente ligadas à moda e à luta indígena. Papiõn Cristiane Santos, Julia Vidal, Day Molina e Amanda Santana conversaram comigo sobre o que a moda pode e deve fazer.

Primeiro, é preciso entender a importância da própria existência dos territórios indígenas. Para Day Molina, ativista indígena, criadora da Nalimo e cofundadora do Indígenas na Moda, “temos uma grande responsabilidade enquanto sociedade. O Brasil é terra indígena e lutar por direitos indígenas é lutar pela preservação do saber ancestral, da cultura originária e a proteção da natureza. A sociedade civil precisa somar forças, lutar agora para que exista futuro”. A fala de Day está embasada em dados e fatos. Nos últimos 40 anos, mais de 20% da floresta Amazônica foi desmatada. Por outro lado, todas as terras indígenas juntas sofreram um desmatamento de apenas 2% no mesmo período.

“Nosso processo de progresso – baseado no pensamento colonial – se desenvolveu gerando uma própria impossibilidade de existência das pessoas, da sociedade em si, pela alteração climática e por todos os danos que esse dito progresso traz para o nosso território. Então, preservar e deixar os guardiões da floresta continuarem com seu trabalho faz com que nossa própria existência, a existência da nossa própria sociedade, seja possível”, explica a designer Julia Vidal, designer da Julia Vidal Etnias e coordenadora executiva da Éwà Poranga. “Esses guardiões têm o conhecimento e a sabedoria – e eles não estão infectados por essa epidemia do progresso, portanto, têm habilidade para poder cuidar e preservar nossas riquezas”, completa.

Papiõn Cristiane Santos, ativista, palestrante e coordenadora do projeto Oca – Observatório Cultural das Aldeias e da Loja Oca Arte Brasileira, a primeira loja colaborativa indígena no coração do Rio de Janeiro, milita há décadas pelos direitos dos povos indígenas. Sua articulação contra a intolerância religiosa começou em 2008 e chegou até a criação do Conselho Estadual de Defesa e Promoção da Liberdade Religiosa (CONEPLIR/RJ). “Quando nos calamos somos refém do que recebemos, quando questionamos mudamos o mundo. Unir diferentes pessoas e etnias em busca de um interesse comum para elaborar políticas públicas com diversos temas muda os significados das demandas e amplia a cobrança aos governantes para atender os interesses da maioria”, explica ela.

Amanda Santana, da Tucum, responsável por conectar o trabalho de povos indígenas com consumidores interessados em todo o país, é enfática: “Só vamos realmente conseguir regenerar esse planeta se a gente se aliar aos povos indígenas. Não tem outro caminho. As unidades de conservação e áreas indígenas – onde têm ribeirinhos, quilombolas, indígenas – são as áreas mais preservadas do nosso país. É importante não só que a gente ouça, mas que estejamos juntos com esses povos nas movimentações”. Para ela, é urgente enterrar a tese do Marco Temporal, porque ele pode, de fato, significar o fim dessas áreas e um completo etnocídio.

E o que a moda tem a ver com isso

Julia traz a moda como ponte entre os dois mundos: o do capital ocidental (ou ocidentalizado) e o da ancestralidade. “Ao longo da existência dos povos indígenas, eles vêm se relacionando com essa cultura exterior através da produção e venda dos artesanatos. Então, o design indígena, a arte indígena, que vem para a gente em forma de artesanato, e hoje em dia também em forma de coleções de moda, são uma possibilidade de que a gente possa vivenciar, ter contato com um estilo de vida, com materiais, com uma forma de se relacionar com a moda e a beleza através dessa ferramenta. Porque eu digo que a moda é uma ferramenta de conexão”, explica Julia Vidal. “Eu vejo a moda como sendo um importante lugar – moda nesse sentido ampliado e consciente – de ferramenta de conexão entre esses dois mundos que precisam coexistir e tem coisas para aprender um com o outro”, completa.

Moda, nesse sentido, não é mera mercadoria para acumulação capitalista, mas ferramenta de conexão e comunicação e, portanto, ponto importante de inflexão. Sendo assim, é também sobre respeito e valorização cultural – algo que precisamos reconstruir depois de séculos de embranquecimento, europeização e norte-americanização da cultura e identidade brasileiras.

Day, Papion e Amanda foram igualmente enfáticas nessa moda enquanto ferramenta que ganha as ruas, estampa camisetas, levanta vozes – demarca demandas e territórios. É um grito de existência, resistência e identidade. Julia me disse sobre Dilmar Puri, filósofo indígena, Universidade Indígena Pluriétnica Aldeia Marakanà e educador na Ewa Poranga, que traz o conceito de corpo-território, que pode tangibilzar bem a fala de todas essas mulheres quando falam de comunicação e expressão enquanto corpo político. Trago aqui:

“O corpo não vive sem o seu território e o corpo é um próprio microcosmo político de luta pela sua própria existência – e a sua existência está conectada a esse território. Então, tendo em vista que a moda se faz presente em um corpo, e que a moda é a própria representação dessa existência da cultura, de todas as grafias em formas de grafismos, de toda a cosmovisão trazida para uma passarela, a gente entende essa moda como um lugar de luta política e de contato com essa existência”, conta Julia.

Construir junto, distribuir e não se apropriar

Verdade seja dita. A moda enquanto setor nunca esteve muito interessada no diálogo. A lógica da apropriação cultural sempre dominou e qualquer pessoa que trabalha na indústria com um pouco de ética vai admitir que sim, nunca houve muito espaço para trocas, tampouco para trabalhar junto. Esse espaço tem sido cavado com muito esforço pelas pessoas indígenas, sobretudo mulheres, que têm se esforçado também em destacar maneiras de fazer essa aproximação ser vantajosa para ambos os lados.

Para Papion, é preciso “levar as lutas sociais adiante, conhecer e reconhecer essa luta como sua também. Não só vender a moda indígena como uma causa entre outras, mas sim compreendê-la e abraçá-la realmente. É sobre gerar renda à etnia parceira e trabalhar junto – o saber tradicional e o designer”. Em outras palavras, a moda tem que largar de apenas surfar na onda, ficar em cima do muro e só descer para pegar o que quer quando convém. É assumir compromissos a partir da compreensão ampla e profunda sobre a luta dos povos originários.

Agora que a moda quer ser sustentável, regenerativa, circular, ou ela pula nesse barco e rema junto, ou ela vai ficar só na lavagem verde. “Não existe sustentabilidade real sem luta ancestral. Chega de silenciamento e apagamento histórico. Precisamos trazer essas vozes para dentro dos espaços midiáticos da moda. Especialmente as vozes de grandes lideranças. Se eu pudesse dar um conselho, eu diria: ouçam a voz de lideranças, formadores de opiniões, criadores indígenas”, alerta Day.

É sobre ouvir e aprender – e não cooptar. Nesse sentido, o que essas mulheres estão dizendo é que a moda e os povos originários não devem se relacionar a partir da lógica da tendência ou da coleção da temporada. “Isso é uma metodologia de trabalho que tem ali uma fonte de conhecimento que a gente deve buscar conhecer e que ela pode desenvolver uma linda parceria quando ela traz esse conhecimento, quando ela exalta e quando ela distribui riqueza através da sua produção, restabelecendo a própria possibilidade de existência desses saberes e fazeres”, detalha Julia.

Amanda traz também um ponto às vezes subpautado, mas extremamente urgente: a glamourização dos excessos e dos metais preciosos, como o ouro. Nesse sentido, ela alerta para como o garimpo ilegal está dizimando a floresta, contaminando os povos, a fauna e a flora. O Brasil é o país mais sociobiodiverso do mundo, mas toda essa sociobiodiversidade está perdendo espaço para o desmatamento, o garimpo e o agronegócio. Recentemente, a Repórter Brasil e Amazônia Real mostraram o avanço do garimpo ilegal de ouro na floresta Amazônica e como esse ouro se relacionada, na ponta, com grandes marcas de joalheria. A questão da dificuldade em rastrear a origem do metal também foi abordada pela repórter da ELLE Bárbara Poerner na matéria De onde vem o ouro da joalheria brasileira?

“A moda valoriza demais os metais preciosos, e chegou o momento de olharmos para esses metais preciosos e esquecer que isso tem valor. Isso não tem valor, o ouro destrói”, alerta Amanda. E é cirúrgica: “A gente precisa parar com essa fetichização das jóias. E as celebridades precisam parar de carregar coisas de mil quilates que são feitas a partir de sangue indígena e sangue africano. Essa ostentação precisa ter fim”, finaliza.

Marina Colerato é jornalista, diretora do Modefica, organização de mídia e pesquisa que atua por justiça socioambiental e climática por meio de uma perspectiva ecofeminista, e mestranda em Ciências Sociais pela PUC/SP.

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