A coragem e a alegria de Zé Celso

Capa da ELLE em dezembro de 2017, José Celso Martinez Corrêa falou com a editora Vivian Whiteman sobre a resistência do teatro, o amor pela arte e a luta para manter vivo o Oficina.


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Capa da edição da ELLE, dedicada à arte, em dezembro de 2017. Foto: Marcio Simnch



 

Este texto foi publicado originalmente na edição de dezembro de 2017 da ELLE.

José Celso Martinez Corrêa é na vida um homem de teatro e um desacovardado. Chega sozinho ao estúdio, onde o espero, já de noite, após uma série de compromissos de trabalho. Está cansado, mas não muito. Talvez um pouco mais do que de costume, pois, como me conta, recentemente começou a ficar velho. “Foi no ano passado, quando fui internado. Diverticulite, dores fortes, uma merda”, diz, analisando seu corpo aos 80 anos. “Mas aqui é diferente. Aqui é muito mais nítido”, diz, com as mãos sobre a cabeça. “Se você não fica doente, a velhice traz uma consciência do agora que muda tudo. Eu estou assim, a Fernanda (Montenegro) está assim, uma coisa maravilhosa. Estamos muito vivos.”

Veio da atriz Fernanda Montenegro o termo desacovardamento, que Zé Celso tem usado com frequência. Ela citou essa palavra em apoio ao movimento #342Artes, que se coloca contra a censura. Depois, escreveu uma carta emocionada, em que defende o Teatro Oficina e exalta o colega, sua trajetória e seu trabalho. “A partir desse Bexiga, dessa Oficina, o Zé nos traz o desassossego mais provocador, mais tonitruante, mais triunfante de São Paulo e do Brasil culturalmente falando. O Oficina dá ao Bexiga a dimensão da inquietação da Arte na vida e projeta esse bairro à altura da Cidade de São Paulo e do País. O Oficina é um marco histórico, cultural, visceral”, escreve ela em uma carta, respondida publicamente pelo diretor.

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Zé Celso em ensaio para a ELLE. Foto: Marcio Simnch

“Vivemos sob um golpe feito de uma série de golpes sucessivos. A favor dos rentistas, contra os direitos dos trabalhadores, contra os mais pobres”, explica Zé Celso, enquanto se prepara para a foto. “E faz parte do pacote a negação da arte, do potencial maravilhoso que ela tem e de que ela existe como matéria. Na área cultural, há uma campanha para convencer a população de que os artistas são vagabundos, que não produzem nada de importante.”

Zé Celso já foi chamado de muitas coisas, mas vagabundo não é algo que se aplica a ele. De muitas maneiras, a vida do ator, diretor, dramaturgo e encenador gira em torno de seu trabalho. Montagens de espetáculos, ensaios, formação de atores, administração, projetos com a comunidade do bairro do Bexiga, ações educativas e a própria defesa do Teatro Oficina estão entre suas atividades diárias. “Sou workaholic. A arte vem do corpo do artista. Ele empresta seu corpo à arte diariamente. É preciso disciplina, muita entrega. Eu sou artista e tenho dedicado minha vida a isso. Não quero acumular nada”, dispara.

Diferentemente do que dizem seus detratores, Zé Celso não sobrevive de dinheiro público nem é milionário. Mora num apartamento alugado no bairro Paraíso, junta dinheiro para férias no Nordeste, não tem uma rotina de gastos extravagantes. Mas produziu riquezas tremendas. Suas montagens únicas de textos como Hamlet, Os Sertões, As Bacantes, Pequenos Burgueses e O Rei da Vela, entre outros espetáculos, são consagradas e levaram todos os maiores prêmios dedicados à produção teatral brasileira.

Seus sonhos são grandes, mas não impraticáveis. O maior deles, transformar o entorno do Teatro Oficina em um parque público, tem, porém, um alto obstáculo pela frente. Há 30 anos, ele e o Grupo Silvio Santos disputam o terreno, que pertence ao empresário e dono do SBT, numa batalha tragicômica.

Em 2014, um acordo parecia se desenhar: Silvio receberia da União outro terreno e desistiria de construir ali torres residenciais de luxo. Recentemente, porém, como se observa no vídeo de uma reunião que viralizou nas redes, ele voltou atrás. “Só pensam em número, cifrão. Ficam agressivos quando digo que não quero nada para mim, que defendo a cidade, que precisa tanto desses respiros, de verde”, diz.

Ele pensa, gesticula e continua. “O projeto deles tem um papo de revitalizar a região. Mas isso é eufemismo para expulsar pobres, moradores antigos e os artistas que mantiveram o bairro funcionando por décadas. Frequento aquele pedaço desde criança no colo do meu avô, conheço cada canto, sei quem são as pessoas. Aquilo ali tem vida. Além disso, as torres vão descaracterizar a vizinhança, feita de construções baixas. Querem sufocar o bairro e o teatro.”

O Oficina parece mesmo uma entidade viva. É, em si, um sobrevivente, em sua terceira encarnação. O teatro surgiu em 1961 para abrigar a companhia criada por Zé e seus colegas, quando na Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco. Pegou fogo em 1966, num episódio criminoso, atribuído a paramilitares. No ano seguinte, surgiu a segunda versão.

A terceira veio de uma reforma idealizada pela arquiteta Lina Bo Bardi, que assina outros prédios históricos, como o Masp e o Sesc Pompeia. O projeto dela transformou uma das paredes do teatro num belíssimo janelão, que se comunica com a cidade. Estava na ideia original um teatro menor no fundo do terreno em que o Oficina se ergue como uma ilha, e jardins, um parque aberto ao redor. Tudo aberto e cheio de luz. Ela morreu em 1992, um ano antes da inauguração, e não pôde coordenar a sequência da obra.

Silvio Santos e seus advogados refutam o fato óbvio de que as torres vão tirar a iluminação natural do teatro. Também alegam que o prédio, que havia sido tombado em âmbito estadual em 1983, foi modificado por Lina e não tem valor arquitetônico. A afirmação, porém, está longe de ser verdadeira.

Arquitetos e urbanistas renomados, como Nabil Bonduki e Guilherme Wisnik, entre muitos outros nas últimas décadas, saíram em defesa do Oficina. O teatro, em sua versão atual, foi escolhido como o melhor do mundo pelo colunista de arquitetura do jornal inglês The Guardian e recebeu uma lista extensa de visitantes, que vai de Mick Jagger ao artista chinês Ai Wei Wei. O grupo SS obteve liberação do Condephaat para tocar as torres, mas ainda precisa passar por outros órgãos, como o Iphan, que tombou o teatro em 2010, na esfera federal. Estava programado para 26 de novembro um abraçaço em volta do prédio para envolver a população na luta pelo espaço.

Está quase na hora de Zé encarnar a pintura O Grito, de Edvard Munch, para a ELLE. Nesse ponto, ele surpreende, como quem vira o jogo. Fala animado sobre como a nova temporada de O Rei da Vela, que remontou após 50 anos, foi aplaudida de pé, com todos os ingressos esgotados. A obra de Oswald de Andrade, sobre um agiota que enriquece com a miséria de trabalhadores, foi um ponto de transição na carreira do diretor, seguida de Roda viva, sobre um artista manipulado pela indústria do consumo, que ele também remontará.

zé celso. josé celso martinez corrêa reproduz a pintura O grito

Na interpretação de Zé Celso, o grito de horror virou um grito de alegria. Foto: Marcio Simnch

Esta obra, de Chico Buarque, ficou na geladeira depois que, durante sua segunda temporada, em 1968, uma apresentação foi invadida por terroristas do grupo CCC, que destruíram cenários e agrediram atores, entre eles nomes como Marília Pêra e Rodrigo Santiago. Por causa da violência do episódio, Chico proibiu que fosse remontada.

Mas, dado o atual momento do país, reconsiderou e liberou o texto para o amigo. “Estou procurando atores para formar o novo coro de Roda Viva, que é a alma da peça”, diz Zé. “Mas não pode ser qualquer um que faça burocraticamente. Tem de ser gente forte, muito comprometida.”

No estúdio, ele anuncia que vai subverter o grito. Em vez de medo e horror, será um grito de alegria. Enquanto veste o figurino, joga no ar uma revelação. “Está em curso entre os artistas uma grande primavera. O teatro está germinando. Fomos acuados e ficamos unidos, ganhamos força, estamos juntos, dissipando a paranoia. É algo que vai se espalhar, florescer”, profetiza.

Diante das câmeras, tudo muda, sua boca se arredonda e a voz soa forte, reverbera como na pintura, alta, poderosa, ocupando a sala. O som é hipnótico e feiticeiro. Com atenção, presenciamos o momento em que o corpo se faz arte. É muito bonito de ver. José Celso Martinez Corrêa é um homem de teatro e um desacovardado na vida. É também alguém que, em tempos de terror, defende o sorriso que vem da coragem. Depois de um silêncio, ele nos olha com sua verdade de grande artista e cita Oswald de Andrade: “A alegria é a prova dos nove”.

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