A cultura independente pede socorro
Como os espaços Al Janiah, Aparelha Luzia, Casa de Francisca, Ó do Borogodó e Teatro Oficina lutam para sobreviver à pandemia
Fechada para o público há 13 meses, a rede cultural brasileira se vê crescentemente assolada pelos efeitos econômicos e sociais da pandemia de coronavírus. Em São Paulo, capital crucial para a economia da cultura no Brasil, já se anunciam fechamentos definitivos neste 2021, desde o gigante UnimedHall (antigo Credicard Hall) até espaços independentes de resistência cultural, como a Casa do Mancha, que por 13 anos abrigou na Vila Madalena grande parte da produção musical contemporânea autoral da cidade e de fora. “Cogitei fazer campanhas de arrecadação, estudei alguns modelos, analisei o resultado de amigos que fizeram e cheguei à conclusão de que iria apenas adiar o inevitável”, desanima-se o proprietário da casa, Danilo Leonel, mais conhecido como Mancha.
“Foi uma somatória de fatores que tornaram financeiramente inviável manter o espaço. Perder o principal funcionamento da casa, os shows, já é um abalo tremendo. Soma-se a isso a especulação imobiliária, que valida o aumento de aluguéis em pleno ponto mais alto da pior pandemia do século”, denuncia Mancha. Com as portas do espaço fechadas desde março do ano passado, o produtor cultural aceitou um convite para ocupar o cargo de coordenador de Centros Culturais e Teatros da Prefeitura de São Paulo, segundo ele para tentar ajudar a rede cultural a encontrar saídas para sobreviver. “Acho importante preencher outros espaços que dão suporte para quem poderá dar sequência ao que já foi estruturado.”
A situação geral é grave para quem tenta permanecer, como é o caso dos cinco exemplos de espaços culturais listados abaixo, onde se convive com a contínua ameaça de fechamento e o lançamento de campanhas de socorro (casos de Casa de Francisca, Ó do Borogodó e Al Janiah), o redirecionamento para o delivery de alimentos (Casa de Francisca e Al Janiah), a teimosia em resistir e permanecer desde muito antes da pandemia (Teatro Oficina) e a confiança em que a fase desesperadora será superada (Al Janiah e Aparelha Luzia). Quatro desses espaços seguem em vaquinhas virtuais e/ou aceitando colaborações de voluntários dispostos a ajudar. Saiba mais:
A Casa de FranciscaFoto: Life by Lufe
Localizada desde 2017 no Palacete Teresa, um edifício tombado no centro de São Paulo, a Casa de Francisca tornou-se espaço preferencial para a música brasileira contemporânea, e por causa da pandemia chegou a anunciar o fechamento definitivo, em março passado. Diante de intensa mobilização de frequentadores, voltou atrás e criou a campanha Avante, Francisca!, para arrecadar R$ 125 mil, dos quais haviam sido arrecadados até 3 de maio, R$ 91.576, de 983 apoiadores. Os prêmios aos doadores incluem agradecimento no site e placa na entrada da casa, playlists, participação em assembleia mensal online, cursos, cine-live, ingressos, compra antecipada preferencial, cartazes e ingressos para a festa comemorativa de retorno.
Artistas como Chico César, Emicida, Arrigo Barnabé, Juçara Marçal e Letrux se engajaram com lives semanais nas noites de quarta-feira. Também foi aberta a alternativa de contribuições diretas pontuais, via Pix ou PayPal. O espaço, que também servia refeições, iniciou um delivery de congelados e em seguida de pratos quentes, que sofre com a dificuldade de acesso para os entregadores (só é permitido chegar ao local a pé).
A situação não é nada confortável, mesmo que a meta venha a ser batida. “Para conseguirmos retomar diante de todos os empréstimos, compromissos trabalhistas e custos inevitáveis para a continuidade da casa, precisamos de uma arrecadação mensal de R$ 125 mil por mês durante os próximos meses”, afirma Rubens Amatto, cofundador e curador do espaço. “A casa vivia seu melhor momento, com cerca de 25 shows por mês e 8.000 frequentadores”, lamenta. Funcionários foram demitidos: “A Casa de Francisca manteve o maior número possível de sua equipe de cerca de 50 funcionários e gradativamente teve que iniciar um processo de desligamento de parte da equipe, honrando todos os compromissos e mantendo até o momento atual pouco menos da metade da equipe original. Seguiremos no imóvel até quando for possível”.
Imaginada como um quilombo urbano, a Aparelha Luzia se firma desde 2016 como uma comunidade cultural e política negra que abriga rodas de samba, shows musicais, mostras de filmes, lançamentos de livros e rodas de debates, num amplo galpão situado nos Campos Elísios, na região central de São Paulo. Está fechada desde março de 2020, à exceção de eventos episódicos para ações como o preparo de comida com distribuição para pessoas em situação de vulnerabilidade. Enquanto isso, sua idealizadora, a educadora e artista plástica pernambucana Erica Malunguinho, batalha para derrubar projetos reacionários na Assembleia Legislativa de São Paulo, onde ocupa o posto de primeira deputada estadual transexual do país.
Em dezembro de 2019, uma campanha de arrecadação de 120 mil reais foi lançada para custear obras de isolamento acústico (que continuam até hoje) e apoiar minimamente os colaboradores da associação cultural. Foram arrecadados R$ 149.533. “A despesa continuou, mas a Aparelha fechou. O que a gente faz é para mantê-la. E está sendo difícil”, define Erica, que adota um sistema de colaboradores voluntários em vez de funcionários. O aluguel do galpão ela diz estar “tentando” honrar, mas resiste à ideia de fazer novas campanhas. “Tenho muita dificuldade de fazer esse chamado, sabe? Às vezes é necessário, sim, mas resisti muito antes de fazer a primeira campanha. Eu não sei explicar, é uma questão pessoal. Sempre mantive a Aparelha no sentido econômico. É complexo, uma vez que eu tenho um cargo público, ficar movimentando esse tipo de situação.”
Erica não inscreveu a instituição na Lei Aldir Blanc, de auxílio emergencial a instituições culturais em meio à pandemia, por considerar o ato conflitante com o exercício parlamentar. Sobre o futuro, a ativista diz esperar algo bem simples: “É geladinha, dói quando entra e causa uma alegria danada. Se chama vacina. Espero que a população consiga ser vacinada a ponto de ter uma segurança sanitária para que a Aparelha possa reabrir e, obviamente, se refazer”. Esperançosa, ela projeta o momento pós-pandemia. “Vamos ter de recolher muitos destroços, porque o Aparelha é um espaço de sociabilidade negra e a gente sabe que o efeito da Covid na população negra, inclusive em relação à vacinação, é muito mais grave. Mas tenho muita esperança de que as coisas hão de melhorar. Acredito que no primeiro dia de reabertura vai ter 3 milhões de pessoas vindas de todos os lugares”, afirma, sem cogitar a possibilidade de encerrar atividades do quilombo urbano.
Espaço do Al JaniahFoto: Divulgação/Samia Teixeira
Al Janiah
Situado numa construção ampla de dois andares no bairro do Bexiga (São Paulo), o centro cultural, bar e restaurante árabe e palestino Al Janiah ficou notório pela diversidade social e cultural que passou a abrigar, com extensa programação musical ao vivo, exibições de cinema e fotografia, lançamento de livros, teatro e cursos. Autodefinida como “espaço político e cultural”, a casa se apresenta no site oficial como tendo mais da metade do quadro de funcionários ocupada por “refugiados da Palestina, da Síria, imigrantes de Cuba e Argélia, militantes antifascistas, nordestinos e sulistas”. “As dificuldades em migrar para o delivery foram grandes. Tínhamos nos shows e atividades culturais nossos carros-chefes, mas isso tudo foi cancelado”, expõe Lucas Martins, do Al Janiah.
A casa mantém ativa uma campanha de financiamento no site Abaca$hi, no valor de R$ 67,5 mil, dos quais até o dia 3 de maio havia arrecadado apenas R$ 2.840, de 36 doadores. Aceita também doações por Pix e oferece em troca vouchers para entradas gratuitas em eventos futuros e lanches ou bebidas do cardápio. “Temos orgulho de dizer que não demitimos nenhum funcionário”, afirma Martins, honrando os princípios ativistas do Al Janiah. “Atualmente, temos 16 funcionários registrados. Parte atua na cozinha e parte continua em casa, mas recebendo regularmente.”
Diante de uma ação de despejo do imóvel que ocupa no bairro de Pinheiros, o bar Ó do Borogodó foi outro que esteve à beira de fechar (e com uma dívida de R$ 120 mil só de aluguel). Num espaço despojado aberto desde 2001, a casa consolidou-se como palco privilegiado para o samba de São Paulo (antes de ser conhecida nacionalmente, Fabiana Cozza cantava regularmente no Ó). Hoje convive com uma realidade sinistra, segundo a proprietária, Stefania Gola: “A rede de músicos que vive da noite, do samba, está se desmantelando. Somos um bar fechado, um palco vazio, triste demais”. Uma vaquinha virtual vitoriosa de R$ 300 mil estancou, por ora, a decisão de fechar o bar. “Esse valor garantiu o pagamento do aluguel atrasado desde março de 2020 e até março de 2022”, explica Stefania. “Estamos garantidos ali até março do próximo ano, mas não exatamente tranquilos. Estamos aqui pensando em maneiras de sobreviver, porque sabemos que neste ano a gente não reabre para o público.”
A campanha foi encerrada, mas o bar mantém canal aberto para doações via redes sociais. Os planos imediatos privilegiam o samba. “A gente ama o boteco, mas agora não dá, e talvez não dê por um bom tempo. Mas juntar os músicos e fazer música a gente consegue, não do mesmo jeito, mas de algum jeito. Estamos arrumando o Ó para fazer algumas rodas de samba lá, sem público, para juntar os músicos naquele espaço, circular as ideias, encontrar, desenferrujar”, planeja Stefania. O futuro ela mira com otimismo: “Eu ainda pretendo encostar naquele balcão vermelho, sem máscara, pedir uma cachaça e cair no samba”.
Zé Celso, em apresentação do OficinaFoto: Divulgação/Jennifer Glass
Com uma média de 65 atores em cena a cada montagem e intensa interação com a plateia, o Teatro Oficina sentiu o agravamento de um baque que já vinha grave desde 2016, quando o grupo perdeu um patrocínio de 11 anos da Petrobras. A companhia capitaneada pelo encenador Zé Celso Martinez Corrêa vive hoje “muito comprimida financeiramente”, nas palavras de Camila Mota, diretora teatral e vice-presidente da Associação Teatro Oficina. No ano passado, o coletivo optou por uma campanha de venda de ingressos solidários via Sympla, que garantem idas ao teatro ao final do período de isolamento. Depois de mil ingressos vendidos, a campanha foi interrompida, devido às limitações para honrar essas entradas no futuro. “Mil ingressos solidários equivalem à arrecadação de um final de semana da peça Roda viva“, compara Camila.
O Oficina mantém ativa uma campanha de doações via Pix, uma forma de “passar o chapéu” adaptada e atualizada para o mundo virtual. O sufoco afrouxou um pouco em dezembro, quando a companhia foi contemplada com R$ 280 mil pela Lei Aldir Blanc. “Quando o dinheiro chegou, tinha bastante conta atrasada. Cobriu mais ou menos um período que foi de outubro até março. Agora estamos descobertos de novo”, afirma Camila. “A situação atual é calamitosa.”
A diretora orça em cerca de R$ 33 mil mensais as despesas fixas, sem contar remuneração de atores, produtores e outros funcionários. Um efeito negativo da quarentena foi a desagregação do grupo, que hoje mantém em plena atividade um “núcleo duro” de cerca de 30 pessoas empenhadas em manutenção, produção, ensaios, lives de diversas naturezas e encenações via Zoom. Camila sublinha que o estrangulamento é anterior ao coronavírus e é político antes que pandêmico. “Os 11 anos de patrocínio da Petrobras nos deram uma fama de companhia rica. Não é fácil conseguir patrocínio. Somos ricos em paixão e vigor. Isso não está certo. Não está certo numa companhia como esta, que existe há 60 anos, as pessoas serem tão precarizadas’, lamenta.
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