A expressão tropical de Ivald Granato

A jornalista Alice Granato conta como é crescer em meio à arte e cuidar do legado do pai, Ivald Granato, cuja mostra será inaugurada este sábado na Dan Galeria.


Obra de Ivald Granato
Blu, sem data, de Ivald Granato. Foto: Divulgação



Um tempo atrás, eu tive um sonho bonito com meu pai. Estávamos conversando em uma mesa retangular de madeira no meio de um lugar calmo, com árvores e folhas caídas no chão. Só nós dois, um de frente para o outro. Eu disse pra ele que sentia muito a sua falta. Ele sorriu e foi se levantando, circundando a mesa e gesticulando. “Está tudo bem, Alice, minha energia está aqui”, falou, abrindo as mãos e me mostrando. Quando ele passou por trás do lugar onde eu estava sentada, minha blusa esvoaçou, como se tivesse batido um vento.

alice em foto trabalhada por ivald granato

Alice bebê, com o artista Artur Barrio, em foto trabalhada por Ivald Granato com tinta acrílica e berol.

Pra mim, sonhos como esse são encontros, e não tenho dúvida dessa mensagem, que chegou lindamente e sempre me conforta. Perceber a energia dele, na vivacidade de suas obras, nos traços de suas telas e no rosto dos meus irmãos, dos meus filhos, na imensidão de arte, amor e amizade que espalhou, me faz um bem danado. Desfruto muito de amizades herdadas com os pintores que hoje também já são minhas. E, no convívio com eles, também estou com meu pai. Cresci em casa-ateliê, entre tintas, pincéis e muitas intensidades. Naturalmente, um dos meus programas preferidos de toda a vida é estar nos ateliês, aquele universo mágico onde mora a alma do artista. Um mundo paralelo que tenho passagem para entrar. Posso passar horas conversando sobre os processos com mestres como José Roberto Aguilar, Luiz Aquila, Cláudio Tozzi, Carlos Vergara, Antonio Peticov, Gregório Gruber, Leo Laniado, entre tantos outros…Todos grandes amigos do meu pai, com quem tracei uma relação estreita de amizade estendida. Entrevistei a geração desde novinha, ainda entrando na faculdade, e hoje, já com 30 anos de jornalismo, continuo os acompanhando cada vez mais admirada.

Ivald Granato, Alice e Claudio Tozzi

Ivald, Alice e Cláudio Tozzi. Foto: Arquivo pessoal

Sempre pautei minhas viagens a trabalho e férias pela arte, por museus e ateliês. Assim, estive em vários museus Picasso pelo mundo, com destaque para o de Málaga, sua cidade natal, na Andalucia. Um museu com acervo particular, criado com a generosidade de sua nora, Christine Ruiz-Picasso (que foi casada com Paul) e o neto de Picasso, Bernard Ruiz-Picasso. Eles conseguiram realizar o sonho do maior artista do século 20 cinco décadas depois dele ter manifestado o seu desejo de ter suas obras ali. Sim, tem muita coisa no caminho quando se mexe com legado de arte. É um trabalho árduo, com muitas camadas, mas o tempo vai ajudando… E eles conseguiram! O museu é fascinante. Estive lá com o ator espanhol Antonio Banderas, conterrâneo de Picasso, quando fui o entrevistar na sua volta ao trabalho com Pedro Almodovar, em “A Pele que Habito” para a Folha de S. Paulo. Banderas é um dos mantenedores do museu. E viveu Picasso (numa atuação brilhante!) para na série “Genius” da Nathional Geographic.

Essa minha visita a Málaga causou especial comoção no meu pai, que tinha em Picasso uma forte referência de arte e vida. Ele mandou por mim um livro e um trabalho de presente para o Banderas, que retribuiu colocando no rosto a pintura como se fosse uma máscara e posando para fotos. Ficou incrivelmente próxima da capa do série que seria lançada anos depois… Meu pai adorava a comparação e, de fato, foi chamado pelo respeitado crítico de arte Frederico Morais de “Picasso Brasileiro”. Ele logo traçou um paralelo bem-humorado de Málaga com Campos dos Goytacazes, onde nasceu. E, sim, também manifestou um desejo de ter um museu em Campos. Vamos realizar…(!)

Antonio Banderas com trabalho de ivald granato

O ator Antonio Banderas com um trabalho de Ivald Granato. Foto: Marcos Ramos

O universo cromático do meu pai está hoje no reunido no Acervo Ivald Granato, com a reserva técnica e arquivos, com tudo acondicionado e cuidado por uma equipe de conservação, coordenada por Talita Desserie Santos, com ajuda preciosa de Fernanda Gonçalves e Roberto Pereira, que foi braço direito do meu pai em seu ateliê. Desde sua partida, em 3 de julho de 2016, passamos a cuidar imediatamente de tudo. Catalogar as obras, conservar, preservar, digitalizar e difundir ao máximo. Acabamos de inaugurar a nova sede na Vila Madalena, espaço institucional para pesquisa e memória desse grande artista, que se dedicou com afinco, paixão e liberdade total por 50 anos para as artes plásticas do Brasil. Múltiplo, fez de tudo, desenho, pintura, litografia, serigrafia, colagens, livro de artista, escultura, arte gráfica, pintura em cerâmica, em parceria com sua mulher, a psicóloga e ceramista Laïs Granato, além de precursor da arte performance.

ivald granato e Alice

Ivald com Alice na performance Mitos Vadios, em 1978. Foto: Loris Machado

O lugar foi reformado e adaptado para receber as obras pelo arquiteto Luiz Florence, amigo de longa data do meu irmão Pedro, que acompanhou de perto toda a reforma. Acaba de ganhar tintas da nova linha Terracor criada pelo arquiteto, paisagista e pintor, Leo Laniado, um dos melhores amigos da vida toda do meu pai. Leo escolheu três tons pastel, dois verdes claros e um tom de orquídea (rosa clarinho) para “dar palco para as obras brilharem”. Finalizamos com a ajuda de mais um querido amigo, Flavio Gelman, que fez o letreiro com a assinatura do meu pai. Era o toque que faltava para abrimos as portas com chave de ouro, para visitas pré-agendadas.

53010094472 1d3708bc39 c

Sem título, 1995, de Ivald Granato. Foto: Divulgação

ivald granato

Estranho, 1989, de Ivald Granato. Foto: Divulgação

Já se passaram sete anos dessa ausência tão presente. E hoje a dor já bate em outro lugar, mais madura e transformada. Vou fechar esse texto com mais um sonho, dessa vez do meu filho Valente, de 10 anos. Ele sonhou ter entrado na máquina do tempo do filme De volta para o Futuro para jogar futebol com o avô ainda criança. E disse pra ele: “Você sabia que no futuro eu serei seu neto?”, indagou. Jogaram partidas juntos (meu pai nasceu na rua do craque Didi, em Campos, e também era louco por futebol na infância). Depois do jogo, Valente apertou o botão para 2016 a tempo de salvar o avô da morte. “Mamãe, conseguimos mudar tudo no hospital”, me contou com os olhos brilhantes. O sonho termina com ele, seu irmão Benício e as primas Sofia e Rosa, fazendo guerra de água com meu pai num gramado. Esses são os pequenos Seres, Granatinhos. Conviveram muito pouco com o avô, mas têm um grande encontro com sua obra e legado pela frente. Desfrutem de “Seres”, que eles são tudo que meu pai via e sentia. E se possível, vejam de perto, ao vivo e a cores, pois a arte é feita para emocionar.

Ivald granato e o neto valente

Ivald com o neto Valente. Foto: Arquivo pessoal

A exposição Seres Ivald Granato será inaugurada neste sábado (19.08), na Dan Galeria, em São Paulo. Com curadoria de Daniel Rangel, a mostra reúne obras do Acervo Ivald Granato, com foco nos trabalhos figurativos produzidos de meados da década de 1980 aos anos 2000. São possíveis autorretratos, além de esboços, cadernos do artista, anotações e objetos.
Seres Ivald Granato fica em cartaz até 21 de outubro, de segunda a sexta-feira, das 10h às 19h; sábado, das 10h às 13h, na rua Estados Unidos, 1638, São Paulo, SP. A entrada é gratuita.

Leia também:
Marta Minujín convida do público a vivenciar a arte

 

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes