Coletivo Guerrilla Girls expõe em site artistas abusadores

Grupo anônimo de mulheres que denuncia o machismo nas artes completa 35 anos de trajetória com seu maior projeto nas ruas do Reino Unido e endereço virtual que compila a desigualdade de gênero nos museus pelo mundo.


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Paul Gauguin abandonou a mulher e cinco filhos para viver no Caribe. Lá, casou-se com uma adolescente de 13 anos. Morreu de sífilis aos 55 anos – e provavelmente passou a doença para muitas parceiras. Das mulheres que tiveram longos relacionamentos com Picasso, duas se suicidaram, duas tiveram crises nervosas e uma escreveu sobre sua experiência. Lucian Freud admitiu ter 14 filhos de 12 mulheres e costumava dizer que elas ficavam decadentes depois dos 16 anos. Já Chuck Close convidava suas alunas para posar no estúdio. As que se recusavam a tirar a roupa recebiam 100 dólares e eram dispensadas. As que aceitavam tinham de responder a perguntas obscenas sobre suas vidas sexuais enquanto se exibiam nuas.

Essa lista de “mau comportamento masculino” entre artistas integra o projeto mais recente das Guerrilla Girls, o grupo anônimo de mulheres que, desde 1985, vestem máscara de gorila e apontam o dedo para o machismo no mundo das artes, da produção à exibição de obras nos museus. The Male Graze, um site lançado em 2020 com dados sobre os históricos de abusos dos homens nas artes, está no centro do maior trabalho das artistas estadunidenses já apresentado no Reino Unido. Desde o mês passado, elas têm outdoors espalhados por 13 cidades britânicas, incluindo Londres, e convidam o público a entrar no site não só para conhecer mais sobre os abusos na história da arte, mas também para colaborar com estatísticas.

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Em entrevista à ELLE, Käthe Kollwitz, uma das fundadoras das Guerrilla Girls, pede que brasileiros também participem da coleta de dados. “Estamos pedindo aos espectadores de todos os lugares, do Brasil também, e não apenas do Reino Unido, que vão a museus, façam uma contagem das obras de mulheres nuas em comparação com o número de obras feitas por mulheres artistas em exibição. Pedimos que postem suas descobertas e comentários no site. Lá, também examinaremos o mau comportamento na vida real de muitos artistas amados que não apenas ‘olharam’ para as mulheres em seus trabalhos, mas ‘pisaram’ sobre elas em suas vidas reais”, diz Kollwitz – o nome, aliás, não é o dela. Käthe Kollwitz (1867-1945) foi uma importante artista alemã. Para manter o anonimato, além das máscaras de gorila, as Guerrilla Girls adotam nomes de artistas consagradas já mortas, como Frida Kahlo, pseudônimo adotado por outra fundadora do grupo.

Quando começaram a protestar pela igualdade de gênero nas artes visuais, as Guerrilla Girls não tinham um plano a longo prazo. Era 1985, o grupo se reuniu para responder a uma exposição que o MoMA de Nova York abriu um ano antes. A mostra Panorama internacional de pinturas e esculturas recentes reunia 165 artistas – e apenas 13 eram mulheres. A ideia então era distribuir alguns cartazes pela cidade questionando o baixo número de artistas mulheres, expondo o sexismo dos curadores, diretores e financiadores de museus. A reação foi imediata. Elas receberam centenas de cartas, telefonemas de artistas indignadas com o machismo no meio das artes e convites para falar à imprensa.

Desde então, as Guerrilla Girls fizeram mais de 120 projetos – em forma de cartazes, anúncios em outdoors, vídeos e panfletos. Entre seus trabalhos mais celebrados, estão os cartazes da série “As mulheres precisam estar nuas?”, que surgiu em 1989 com dados do Metropolitan Museum, de Nova York. Naquele ano, embora 85% da nudez das obras fosse feminina, os trabalhos feitos por mulheres artistas representavam apenas 5% do acervo. Usando a linguagem da publicidade para traduzir em dados concretos o machismo nas coleções, elas já expuseram na Bienal de Veneza (em 2005), na Tate (em 2006 e 2016) e no Masp (em 2017). No ano passado, lançaram Guerrilla Girls: The art of behaving badly, primeiro livro-retrospectiva dos 35 anos do coletivo.

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As Guerrilla Girls, em uma apresentação em 2017, na Grécia.Foto: Getty Images

Ao repassar essa trajetória de ativismo do grupo, Kollwitz não soa muito otimista com relação à igualdade de gêneros nos museus. “As estatísticas mais recentes dos Estados Unidos não são boas”, lamenta. “Alguns museus estão tentando recuperar o atraso e buscando coletar mais trabalhos feitos por mulheres e negros, mas, nas principais coleções de museus estadunidenses, as obras de mulheres artistas ainda representam menos de 14% do total.”

Com o convite à colaboração do público pelo site do projeto The Male Graze, as Guerrilla esperam ter mais dados sobre o sexismo nas artes visuais em todo o globo. O projeto começou com a ideia de questionar, para além das estatísticas, como a própria história da arte é fundamentada no machismo. “Aquilo que os historiadores da arte chamam de the male gaze – a perspectiva masculina e heteronormativa na arte europeia e estadunidenses, principalmente de homens brancos que retratam as mulheres como objetos sexuais para o prazer do espectador masculino –, nós chamamos de the male graze (em tradução livre, algo como o ato de pisotear, massacrar, como o rebanho faz sobre o pasto numa fazenda)”, diz Kollwitz.

“Nas principais coleções de museus estadunidenses, as obras de mulheres artistas ainda representam menos de 14% do total”

“Muitas mulheres estão nuas na arte ocidental pós-colonial. Algumas ficam passivas: dormindo, esparramadas em camas e sofás, relaxando com os amigos, tomando banho e talvez até dançando. Quando estão ativas, geralmente há um elemento sexual presente: são cenas de voyeurismo, sedução, assédio, agressão, estupro e até assassinato”, explica ela. “Quando vimos como alguns artistas homens venerados usaram e abusaram das mulheres em suas vidas reais, encontramos muito esse ato de pisar, massacrar, e não apenas o gesto de olhar. Portanto, queremos perguntar: a arte imita a vida ou a vida imita a arte?”

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Assim, as Guerrilla Girls sugerem que os museus passem a informar com clareza o histórico de artistas abusadores nas etiquetas das obras. O site The Male Graze faz, inclusive, sugestões. Por exemplo: para a obra The weeping woman (1937), de Pablo Picasso, a etiqueta da Tate traz a seguinte descrição: “Weeping woman é uma obra inspirada na imagem de uma mulher segurando seu filho morto. Foi retirada do mural antiguerra de Picasso, Guernica. Picasso pintou ambas as obras durante a Guerra Civil Espanhola”. As Guerrilla Girls propõem outro texto: “A Tate Modern acredita que esta mulher está chorando por causa da bomba em Guernica, mas em 1937 havia muitas mulheres chorando na vida de Picasso. Casado ainda com Olga Khokhlova, Picasso estava indo e vindo com a jovem amante Marie Therese Walter, enquanto tinha um caso com Dora Maar. Ele dizia que as mulheres são ‘máquinas de sofrimento’ e gostava de vê-las brigando por sua causa”.

Kollwitz reconhece que é pouco provável que os museus adotem as etiquetas críticas – ainda mais em casos de artistas vivos, como o pintor hiper-realista Chuck Close, acusado de assediar alunas. Por outro lado, ela afirma que “alguns museus estão começando a escrever etiquetas de parede mais honestas, embora alguns ainda estejam tentando omitir ou desculpar o comportamento abusivo”. As Guerrilla Girls, segundo ela, “acreditam que quanto mais você souber sobre arte, melhor”. Kollwitz diz ainda que “The Male Graze não é sobre censurar obras de arte ou condenar a sexualidade como imoral: trata-se de enfrentar o fato de que a arte ocidental é e sempre foi obcecada por corpos femininos, sexo e violência”.

“Mas sejamos realistas”, ela diz, para completar em seguida: “O sistema de arte é uma porcaria! Claro que existem colecionadores, curadores e museus que defendem um mundo da arte diferente e que colecionam todos os tipos de trabalhos, de diversos artistas. Mas é um meio que também está cheio de esnobes, jogadores, sonegadores de impostos, comerciantes e até criminosos. E o mercado de arte não é regulamentado. Na verdade, é descrito como o quarto maior mercado ilícito do mundo – depois de drogas, armas e diamantes.” Kate defende que o sistema de arte funciona sob uma lógica comercial, sem o interesse de democratizar a arte. O coletivo, enfim, tem ainda muito pelo que lutar. A guerrilha continua.

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O primeiro livro-retrospectiva dos 35 anos do coletivo, lançado no ano passado.Foto: Reprodução

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