Livro traz o lado entrevistadora de Clarice Lispector
Nova edição da Rocco traz 35 entrevistas adicionais, entre elas, uma conversa com Elke Maravilha, que você confere aqui.
Exibida pela TV Cultura em 1977, a entrevista de Clarice Lispector no programa Panorama é um dos poucos registros em vídeo da escritora disponíveis na internet. Na conversa com o jornalista Julio Lerner, ela não se nega a responder nenhuma pergunta, mas também não sorri em momento algum nem se alonga nas respostas. Não disfarça sua aversão ao papel de entrevistada.
Já na pele de entrevistadora a história era outra. Curiosa, Clarice ia das questões mais prosaicas às mais profundas (“Quem é Deus?”, indagou a Pablo Neruda) e acabava revelando um pouco de si nos encontros.
Esse lado jornalista da autora pode ser deliciosamente explorado na nova edição de Clarice Lispector entrevista (420 págs), recém-lançada pela editora Rocco. São 83 entrevistas – 35 delas não faziam parte das edições anteriores – publicadas entre 1968 e 1977 pelas revistas Manchete e Fatos & Fotos: Gente e também pelo livro De corpo inteiro (1975), que reuniu textos publicados na Manchete e no Jornal do Brasil. Além dos novos nomes, a obra traz uma introdução de Claire Williams, chefe do Departamento de Literatura e Cultura Brasileira do St Peter’s College, Universidade de Oxford, e especialista na obra de Clarice Lispector.
Capa do livro Clarice Lispector entrevista.
Os entrevistados pela escritora são das mais variadas áreas: vão do cantor e compositor Chico Buarque (com 24 anos!) ao cirurgião plástico Ivo Pitanguy, passando pelo escritor Érico Veríssimo, o ator Tarcísio Meira e o então jogador de futebol Zagallo. Entre as personalidades acrescentadas à edição, estão o paisagista Roberto Burle Marx, a cantora Maysa e a modelo, atriz e apresentadora Elke Maravilha, cuja entrevista você confere a seguir.
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Clarice Lispector entrevista Elke Maravilha
Trecho do livro Clarice Lispector entrevista (editora Rocco).
Quando telefonei, marcando um encontro em minha casa, às nove e meia da manhã, perguntei:
– Você é pontual?
Respondeu-me logo com voz macia:
– Sou mineira, nunca perco um trem.
Apareceu-me ela com um vestido longo de cetim branco, com pala de brocados, sobrancelhas raspadas e pintadas de quase vermelho até as têmporas. Ela é linda e se finge de tola, quando na verdade é muito inteligente e criativa. Cria suas próprias roupas que, se parecerem malucas, não importa: tem uma grande beleza exótica. Tudo a enfeita.
– Vi você na leitura prévia da peça de Heloisa Maranhão, A rainha morta. Quando você falava, a plateia e eu caíamos na gargalhada só ao ouvir o som de sua belíssima voz cantante. Você tem consciência de que tem um grande talento histriônico? Você roubou o papel de todos!
– Olha, amor, eu acho que eu como Elke me garanto. Aprendi a jogar minha pessoa para fora. Mas lendo um papel nas mãos, como Inês de Castro ou Clarice, aí já é outro papo. É uma coisa muito mais difícil para mim. Sobretudo porque não tenho prática de atriz.
– Você não precisa de prática, Elke.
– Você acha mesmo? Eu tenho minhas dúvidas.
Aí veio minha Geny-cozinheira com um cafezinho e perguntou: “Quer mais açúcar?” Elke respondeu: “Não, amor, eu já sou doce.” E continuou:
– Porque eu não sei a medida exata das pessoas, sou mais artista do que atriz e tenho medo de desrespeitar os outros, de não compreendê-los.
– Qual é seu nome verdadeiro?
– Elke Georgievna Grünupp.
– Onde é que você nasceu?
– Em Leningrado, 22 de fevereiro de 1945.
– Onde se criou?
– Em Minas Gerais, em Itabira, Acesita, Governador Valadares, Jaguaraçu, Belo Horizonte. Depois, Bragança Paulista, depois Atibaia, depois Porto Alegre e, agora, Rio. Morei dois anos e meio na Europa, trabalhei na Alemanha e na Grécia. Viajei pela Europa inteira.
(Fiquei pensativa por um instante diante desse monstro-sagrado, que tem algo de genial.)
– Eu quase não vejo televisão, de modo que não sei se você está trabalhando em algum programa.
– Faço parte do júri do Silvio Santos. Só. Gosto de televisão, mas mantendo certa distância para não ser muito envolvida e para haver respeito mútuo. Assim, eu só tenho um patrão no fim de semana. Nos outros dias sou a minha própria patroa.
– Há quanto tempo você mora na República do Leme? E por quê?
– Moro aqui há quatro anos e meio. Gosto muito porque o Leme é uma cidade dentro de uma cidade. É bairro de pessoas conservadoras e que me respeitam. Prefiro as pessoas conservadoras às falsas loucas, às falsas adiantadas.
– Quantas vezes você se casou?
– Uma vez me casei em igreja, assinando papéis e tudo o mais. Depois disso casei duas vezes.
– Diga-me como é que se conquista um homem?
– Essa é ótima! Cada pessoa tem a sua metade. Para mim a única coisa a fazer, depois do primeiro impacto, é dizer a verdade. A verdade, acima de qualquer coisa. Pois a verdade traz o resto.
– Você sabe cozinhar?
– Não, sou péssima cozinheira. Só sei bordar e costurar.
– Você já pensou na morte?
– Na morte? A morte é uma coisa muito presente. Quando eu era pequena tinha medo dela. Agora aceito-a como uma coisa absolutamente natural.
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– Você é religiosa?
– Muito. Tenho todas as religiões do mundo dentro de mim porque a minha religião é o ser humano. E, apesar de ter nascido cristã, não tenho barreiras dentro de mim. Sou mística. E mistifico algumas pessoas. Conheço-as em vários lugares: freiras, atrizes, prostitutas, pobres e ricos, loucos de hospício. Muitas dessas pessoas me tocaram profundamente e para mim estão acima do Bem e do Mal.
(Elke está casada com um arquiteto de 20 e poucos anos, de cor negra e 1,90 de altura. É o Júlio César.)
– Este seu novo marido é para durar ou não?
– Todos os casamentos são para mim para durar a vida inteira. Eu não começo nenhum casamento se não for para sempre. Às vezes não dá certo, mas vou tentando.
– Você vai à praia?
– Não gosto porque prefiro nadar. Detesto ficar lagarteando.
– Foi você que se inventou a si mesma?
– Fui eu mesma, mas com a ajuda das pessoas. Quanto ao meu temperamento, já nasci com ele, meus pais me deram a estrutura interior para enfrentar qualquer situação. De modo que para mim não é difícil ser eu mesma.
– Você tem pais vivos?
– Vivíssimos, e avós também vivos. Só um avozinho meu é que morreu. Você me perguntou se minha família me aceita. Aceita, sim; mas às vezes não compreendem a minha forma, pois os conceitos de estética da família são mais clássicos, mais helênicos.
– Qual é o seu perfume preferido?
– Tabu, Dana. É um perfume que as pessoas acham vagabundo, mas que eu adoro.
– Você tem tempo para ler?
– Parei por uns tempos, mas agora estou recomeçando. Anos atrás eu lia bastante e estudava muito. Parei porque quis descobrir minhas próprias coisas, minhas próprias ideias. Agora vou recomeçar meus estudos e leituras para saber em que pé estão as ideias dos outros.
– Que atitude toma quando é reconhecida na rua? Quanto a mim, nego que sou eu. Digo: sou prima dela.
– Adoro quando sou reconhecida porque sou muito vaidosa; e sou reconhecida sempre porque não dá para disfarçar. É um dos modos de conhecer outras pessoas, de me dar a elas e delas receber alguma coisa em troca.
– Você já tentou escrever?
– Na minha cabeça há compêndios, mas não tenho talento para expressar-me no papel.
– Você gosta de viver?
– Adoro! Viver é minha única obra de arte e nela trabalho todos os dias com ardor para me construir toda, inteira, na vida.
– Já a magoaram muito?
– Todas as pessoas já foram magoadas. Mas eu compreendo as que me magoam.
– Você tem medo de envelhecer?
– Adoro a velhice. Acho-a muito bela, cada idade tem a sua graça e rugas nunca tiraram a beleza de ninguém.
– Se você não fosse Elke Maravilha, o que gostaria de ser?
– Clementina de Jesus. Clementina é uma deusa.
– Você costuma rezar?
– Sim, embora não sejam preces comuns.
– Você é supersticiosa?
– Não sou. Mas vejo que você bate na madeira.
– O que é mais importante para você: o amor ou o trabalho?
– O amor está ligado a tudo. Sempre trabalhei com amor e é por isso que sempre me dei bem em todas as profissões que tive. Já fui bancária, secretária, professora, bibliotecária, tradutora.
– Você gosta de bichos? Para mim são essenciais.
– Gosto sim, mas mais de gente. Tenho uma gata que se chama Frineia.
– Diga a coisa mais linda do mundo.
– Você.
Fatos & Fotos: Gente, nº 801, 26 de dezembro de 1976.
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