Livro de Natalia Timerman mira na história familiar e acerta na coletiva
Em "As pequenas chances", a autora do best-seller "Copo vazio" narra a morte do pai e a busca pelas próprias origens.
Natalia Timerman é médica psiquiatra e mestre em psicologia. Mas seria injusto creditar o sucesso de Copo Vazio, lançado em 2021, apenas à sua experiência em consultório – o romance narra uma história prato cheio para análise do comportamento contemporâneo, o famigerado ghosting.
Agora, com As pequenas chances, seu novo livro, a autora se volta para outro assunto dos divãs, o luto. Mas, desta vez, de uma forma mais íntima, que se encaixa na categoria de autoficção, gênero que ganha cada vez mais espaço na literatura.
É sobre sua família que Natalia coloca a lupa. Mas também sobre todas as famílias, como deixa claro já no epígrafo, ao citar uma frase de Annie Ernaux, vencedora do Prêmio Nobel de literatura: “História familiar e história coletiva são uma única coisa”.
Natalia Timerman Renato Parada
O luto é uma luta pela sobrevivência
O livro começa com um encontro inesperado no mais genérico dos lugares, um aeroporto, onde Natália encontra o médico de cuidados paliativos que acompanhou seu pai, Artur, nos momentos finais de sua batalha contra o câncer.
É o estopim para que a personagem narradora relembre não só o que aconteceu no quarto 1065, onde Artur passou os últimos dias internados, mas nos conte também quem era esse homem e, mais importante, a marca que sua ausência deixa nos que ficaram.
Mas, first things first.
Antes de adentrar nesse terreno vazio da morte, é nas primeiras páginas, com um bom bait, que Natalia fisga os leitores – os momentos iniciais, que trazem notícias da saga de Gabi, sua irmã, engenheira náutica, para voltar ao Brasil e conseguir encontrar o pai ainda com vida, são um soco.
Você não para de torcer para que dê certo, não para de encontrar esse desespero interior para poder se despedir de alguém que você ama e está de partida. Uma viagem sem volta misturada a uma viagem longuíssima. Uma viagem de todas as famílias.
“A viagem segue longa à sua frente, percurso infinito, o tempo se multiplicando em dimensões que não conhecia. O tempo. O tempo. O tempo. Cada onda que bate no casco do barco, cada marola que o faz oscilar, é a batida do coração do mundo. As pessoas vivas, mas pessoas morrem (sic.). O pai.”
É aí que conhecemos também a relação de afeto entre o patriarca e a caçula, além dos atritos, do estranhamento do irmão com a madrasta, das pequenas coisas que ficam minúsculas diante da morte.
O resgate das origens
São nessas primeiras páginas ainda que Natalia faz as pazes com o judaísmo, religião que não seguia, mas cujos rituais trazem algum tipo de apaziguamento, algum tipo de pertencimento a algo supostamente maior do que a perda.
E, novamente, faz um link com os leitores – até os mais agnósticos conseguem se identificar com o desejo de ver tudo fazer algum sentido, com o desejo de seguir vivendo a despeito dos que já não vivem.
“Achei bastante sábio da parte dos meus ancestrais que houvesse regras a ser seguidas ao se chegar do enterro de alguém tão próximo (…). É necessário cortar o cordão umbilical, disse o rabino, e isso é um disfarce da religião para que, sem culpa, o enlutado possa seguir a própria vida (…).”
E também, no caso da autora, de tentar driblar a morte ao tentar resgatar as origens da vida, a ancestralidade do pai e, portanto, a sua também.
Entre chegadas e partidas
Lembra que eu disse aqui no começo deste texto que tudo começa a se desenrolar num aeroporto? Essa é uma grande sacada de Natalia, algo como “olha o trem”, de Raul Seixas, pra quem se lembra.
Grande parte de tudo o que acontece no livro, dos dias anteriores e posteriores à morte, da relação de Artur com os netos, com o teatro, com os pacientes (ele também médico), com a vida, acontece enquanto a narradora viaja de São Paulo a Romênia, onde seu filho vai participar de uma olimpíada de matemática (não vou dar spoilers aqui).
Fato é que todas essas viagens, de Gabi, de Artur (metaforicamente), de Natália, dos judeus que vieram para o Brasil, dos brasileiros para cidadezinhas como Shargorod (Ucrânia), são entrelaçadas em pouco mais de 200 páginas.
E, no decorrer do livro, o leitor também se sente saindo um pouco da dor da ausência, do quarto 1065, para o resgate da vida, o resgate de entender esse vai-e-vem que nos forma de alguma maneira. Outra grande sacada da escritora.
Por fim, não podemos ignorar a própria costura que Natalia faz entre o real e o “real”, que só pode ser completado com a ajuda da literatura.
Livros são diálogos, ninguém sai de um da mesma maneira que entrou, ninguém escreve um de autoficção ou memória (ouso dizer) sem de alguma forma fazer as pazes com seus fantasmas.
Uma pequena grande chance de nós, leitores e escritores, percebermos que não estamos sozinhos, mesmo no mais abominável dos lugares.
As pequenas chances, Todavia, 2023, R$ 69,90.
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