Elza Soares comemora 91 anos de luta e voltas por cima

Nos últimos anos, o trabalho da cantora tem se pautado pela resistência feminista, antirracista e anti-homofóbica.


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Foto: Carl de Souza/AFP via Getty Images



Elza Soares costuma contar com gosto a épica história de sua vida, com exceção de três detalhes que se mantêm em permanente mistério: o dia, o mês e o ano em que nasceu. A data oficial do aniversário é 23 de junho, como consta em todas as enciclopédias musicais, mas a própria artista deixa ventilar outra possibilidade, o dia 22 de julho. Quanto ao ano, as obras de referência se dividem entre duas hipóteses: Elza nasceu em 1930, segundo o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira e a Wikipédia, ou em 1937, de acordo com a Enciclopédia Itaú Cultural e o Observatório do Negro, da Universidade Zumbi dos Palmares. Ela não desfez o enigma nem para os biógrafos José Louzeiro (autor de Cantando para Não Enlouquecer, de 1997) e Zeca Camargo (Elza, 2018), que optaram, ambos, por contornar o assunto em seus livros e deixar à parte a idade real da biografada. Há quem diga que o registro de nascimento foi perdido e, portanto, a verdadeira data é irrecuperável.

Deixando a correnteza seguir seu curso, Elza não protestou diante das comemorações de seus supostos 90 anos, em 23 de junho do ano passado. Neste 2021, a data foi celebrada pela BeyGood, projeto social de Beyoncé. A depender do ano, seria mais velha ou mais nova que seu grande amor de juventude, o mitológico jogador de futebol Mané Garrincha (1933-1983), com quem viveu por 17 turbulentos anos, entre idas e vindas. Filho único do casal, Garrinchinha morreria aos 9 anos, em 1986, num acidente automobilístico.

Garrincha e Elza Soares, em 1970, na It\u00e1lia

Garrincha e Elza Soares, em 1970, na ItáliaFoto: Keystone-France/Gamma-Keystone via Getty Images

Os altos e baixos têm se alternado em 62 anos de atividade musical, e as sucessivas voltas por cima tornam ainda mais altiva uma trajetória que, em anos recentes, tem se pautado fortemente pela resistência feminista, antirracista e anti-homofóbica. O disco Deus É Mulher, de 2018, tornou explícita a militância feminina, mas a veia lutadora é antiga e se esparrama, desde o início, por trabalhos suingados de títulos eloquentes como A bossa negra (1961), Somos todos iguais (1985) e Planeta fome (2019). As palavras de ordem de Elza jamais são proferidas da boca para fora e vêm emolduradas por um dos maiores vozeirões da história da música brasileira. Os fatos comprovam:

Planeta fome: Nascida na favela de Moça Bonita, no bairro de Padre Miguel (Rio de Janeiro), Elza casou-se pela primeira vez aos 12 anos. Tinha seis filhos, quando aos 21 anos, ficou viúva. Duas das crianças morreram de fome, segundo ela conta. Essa tragédia ecoaria numa das primeiras oportunidades que teve de se apresentar ao vivo, no programa Calouros em desfile, do mestre Ary Barroso, autor de “Aquarela do Brasil”. Mal-ajambrada em uma roupa simples e bem maior que seu corpo, Elza assustou Ary, que perguntou: “De que planeta você vem?”. “Do planeta fome”, ela respondeu, calando os risos de deboche da plateia. O espanto se repetiu quando começou a cantar, mas dessa vez por causa da voz que explodiu ao microfone.

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Foto: Reprodução

Eu sou a outra: No início dos anos 1960, do alto de sua primeira fase de grande sucesso, Elza se apaixonou por Garrincha, que era legalmente casado e tinha nove filhas. O romance ganhou ares de escândalo, e Elza, emaranhada nas artimanhas mercadológicas da gravadora Odeon, gravou o dramalhão explícito “Eu sou a outra”, de versos como “ele é casado/ e eu sou a outra na vida dele/ (…) eu sou a outra que o mundo difama/ que a vida ingrata maltrata/ e sem dó cobre de lama”. A cantora foi execrada pela opinião pública, e o casal acabou por se exilar em Roma, na Itália. Garrincha já vivia as consequências do alcoolismo, que o mataria em 1983, aos 39 anos.

Elza versus Clara: Durante a ausência de Elza, ganhou relevo na Odeon e nas paradas de sucesso uma cantora de samba que ela própria apresentara à gravadora, a mineira Clara Nunes. De volta ao Brasil, Elza perdeu o contrato com a Odeon, ao mesmo tempo que Clara popularizava sambas de terreiro modernos como “A deusa dos orixás” (1975). Na pequena gravadora Tapecar, Elza abandonou o samba-jazz que a caracterizava até então e tentou se moldar às referências de terreiro e candomblé trazidas por Clara, em discos como o africaníssimo Elza Soares (1974), sem grande sucesso.

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Foto: Reprodução

Tina Turner brasileira: Após a morte de Garrincha e à deriva no meio musical, Elza cogitava abandonar o ofício de cantora até ser acolhida por Caetano Veloso numa participação especial e abrasiva na canção “Língua” (1984), que abriu caminho para a volta por cima do álbum Somos Todos Iguais (1985). Ali, pela primeira vez, ela teve a liberdade de experimentar e misturar, sem pudores ou purismos, gêneros como samba, jazz, blues e o rock’n’roll de Cazuza. Era tempo do estouro pop de Tina Turner, e Elza foi alçada à versão brasileira da estrela estadunidense, com as pernas à mostra e uma vasta peruca de inspiração black power. O novo voo foi abatido pela morte do único filho que teve com Garrincha, num acidente automobilístico, aos 9 anos, em 1986.


Língua

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Dura na queda: Um tombo de um palco de dois metros de altura em 1999 trouxe consequências que se prolongam até hoje, atrapalhando a mobilidade da antes elétrica performer. O acidente serviu de inspiração para mais uma volta por cima, o álbum Do cóccix até o pescoço (2002), orientado pelo erudito compositor Zé Miguel Wisnik. A faixa de abertura, “Dura na queda”, era um samba torto composto para ela por Chico Buarque, em versos sarcásticos de superação: “Bambeia, bamboleia/ é dura na queda/ custa a cair em si/ largou família/ bebeu veneno/ e vai morrer de rir”. O mesmo disco contém “A carne”, de Marcelo Yuka e Seu Jorge, que abrirá a trilha desbravadora da Elza Soares dos anos 2000, a partir da denúncia racial de que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. Do combate a essa constatação, nasceram canções-símbolo dos anos 2010, como “Deus é mulher” (2018) e “Maria da Vila Matilde (Porque se a da Penha é Brava, imagina a da Vila Matilde)” (2015), um ataque frontal à violência feminicida: “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”.

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